Marilza de Melo Foucher: Outono neoliberal no Norte, primavera no Sul? Nada será como antes
A crise financeira e econômica deslanchada no templo do capitalismo neoliberal, talvez seja salutar para a social-democracia e a esquerda democrática, e lhes levem a pensar na redefinição do papel do estado no socialismo democrático. O capitalismo, como previu Marx se fez universal e hoje assistimos a sua explosão. Entretanto, devemos tirar lições do acontecido no século passado e não ceder a certas falsas verdades, tendo em vista que devemos admitir que toda teoria pode ser contraditória, e que um pensamento deve estar aberto a outros pontos de vista, na perspectiva da consideração de suas contradições. O momento é de balanço e de busca de alternativas para o enfrentamento da globalização excludente. Isto vai depender da capacidade da esquerda de criar um novo universo político de transformação social de re-politização global da realidade.
A esquerda européia não deve se contentar de fazer o diagnóstico da crise financeira. Ela deve ter capacidade de reagir e fazer proposições face à desordem internacional deixada pela governança mundial, ditada pela doutrina neoliberal. Infelizmente durante os anos 1980/1990, durante os quais a democracia social esteve no poder em vários países europeus, a reação crítica à globalização econômica foi mínima. Tampouco houve oposição ao modo de governança mundial não compartilhada que será consolidada no inicio dos anos 1990 pelas grandes organizações internacionais, lideradas pelo FMI e Banco Mundial. Os governos das grandes potências mesmo ditos socialistas ou social democratas preferiram legitimar esse novo imperialismo que, operado em forma de consórcio internacional, passou a ditar normas diretivas como referencias maiores da doutrina econômica neoliberal. O novo imperialismo passou a ser multilateral (retomo o que já escrevi nesse sentido).
As agências multilaterais prescreveram o receituário da “boa governança” que refletia o poder hegemônico das finanças dos detentores do capital, principalmente americanos e em seguida europeus. Eles pretendiam administrar o aparelho de Estado dos países do Sul, pelo centro do sistema do capitalismo mundial, neutralizando desta maneira o poder dos Estados como entidades reguladoras. Os Estados do chamado Sul, incluindo os países emergentes passaram a ser mais e mais desconsiderados no cenário internacional.
O mundo global no receituário neoliberal
O mundo global no receituário neoliberal teria somente dois atores principais: as empresas e os consumidores. A concepção do Estado-Nação para os teóricos da governança mundial deveria ser enterrada. O Estado passa a ser visto pelos novos teóricos como intruso, devendo no seu lugar aparecer o Estado Empreendedor, um bom acionista. Nesse sentido se analisamos a reação do Presidente Bush dos EEU e Sarkozy como Presidente francês e da União Européia, eles agem dentro da coerência com a lógica neoliberal: o Estado intervém para salvar os Bancos comerciais e passa ser acionista. Enquanto isso, na França, Sarkozy privatiza os serviços públicos e vai suprimir 13.600 postos de trabalho no setor da educação nacional. O resto é retórica para ocupar o espaço da cena internacional e fazer esquecer o resultado nefasto de sua política econômica destinado aos ricos.
A verdadeira solução para a crise não está em salvar a arquitetura atual do sistema financeiro. As medidas tomadas pelo poder central (Estados Unidos e Europa) para investir recursos públicos nos bancos comerciais que alimentaram a especulação financeira reforçam ainda mais a concentração de capital que se encontra em patamares nunca vistos. Os recursos públicos devem ser investidos nos Bancos de desenvolvimento. Não existe razão para que os Bancos comerciais privatizem os lucros e o Estado seja chamando ou se ofereça para socializar junto a toda sociedade, as perdas oriundas da especulação financeira.
A governança mundial perde seu Norte
A governança mundial foi criada para defender os interesses do mercado global, uma quase estratégia de guerra econômica, onde os mais bem instrumentalizados dominam e impõe suas regras. Uma minoria governa sem legitimidade para uma maioria. O resultado das reformas adotadas pelo Estado neoliberal foi desastroso para o interesse geral das populações dos países do Sul. Quem pode esquecer do receituário do FMI imposto aos países da América do Sul recém saídos das ditaduras, tais como Brasil, Chile, Argentina, Paraguai e Uruguai? Os atores globais do neoliberalismo tentaram legitimar a idéia de que a sociedade e a economia podem por si mesmas se organizarem sem a presença do Estado. Ressalta-se nesse sentido o papel da mídia (em geral controlada por grupos econômicos) na difusão desta concepção de governança por atores globais.
No momento em que a democracia triunfa na América do Sul, e, que seus povos sonham com a constituição de um Estado-Nação que supere práticas ditatoriais, populistas e intervencionistas, praticando de vez a democracia para a manutenção da coesão sócio-econômica e política, os principais atores globais da “governança mundial” optam por um modo de organização da sociedade, centrada em torno do funcionamento “soberano” do mercado, sem regulação do Estado.
Como responder aos desafios da democracia quando o papel do Estado se enfraquece no atendimento do cidadão e se fortalece para responder aos reclamos da política financeira sob controle dos grandes organismos internacionais e dos agentes transnacionais?
Enquanto isto, crises econômicas se transformavam em crises estruturais (sócio-econômica, política, cultural e ambiental) e atingiam seu patamar nos países periféricos. Raros foram os governos dos países do Norte que manifestaram sua solidariedade e solicitaram mudanças nas regras de regulação comercial internacional. Todavia, uma governança mundial que governa sem governo, buscando “construir legitimidade” sem democracia representativa e resolve os conflitos internacionais sem necessidade de dispor de maioria, não pode perdurar diante do avanço da cidadania política dos países em crise que elegeram governos de esquerda e centro esquerda no continente sul-americano.
Pela primeira vez as grandes potências percebem que a bola especulativa navega pela rede mundial de computadores numa velocidade tal que os trilhões de dólares e euros se evaporam em segundos! Por falta de regulação mundial a economia virtual se entupiu de vírus que só o doutor Estado pode curar. Seus dirigentes aos poucos tomam consciência da desordem mundial, onde eles foram os principais protagonistas. Daí as duras reações dos governos sul-americanos. O Presidente do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva, de modo muito irônico disse aos jornalistas em Angra dos Reis: “Quando era o Brasil que tinha problemas, todo dia tinha banco dando palpite. Toda semana uma equipe do FMI dizia: faz isso, faz aquilo. E o coitado do Brasil quebrava. Cadê os palpites que eles estão dando agora na crise americana? Cadê o FMI? Por que o FMI não está lá dando palpite agora? Por que não estão na Europa dando palpite? É porque a crise é deles”. Na abertura da 63ª Assembléia da ONU. Lula disse que a euforia dos especuladores transformou-se em angústia dos povos e acrescentou : Está em curso a construção de uma nova geografia política, econômica e comercial no mundo. No passado, os navegantes miravam a estrela polar para “encontrar o Norte”, como se dizia. Hoje estamos procurando as soluções de nossos problemas contemplando as múltiplas dimensões de nosso Planeta. Nosso “norte” às vezes está no Sul.
Reconstrução de um Estado democrático
As condições propícias para a expansão do mercado global foram criadas, mas quem usufruiu desse sistema? Os mesmos que hoje decretam sua falência. Restou a ruína do Estado Providência, o último suporte de uma vida coletiva! O neoliberalismo nunca foi um modelo de desenvolvimento, mas de dominação. “O ser humano deixou de ser centro para ser periferia!” Como dizia o sociólogo suíço Jean Ziegler membro do comitê consultivo do Conselho dos Direitos Humanos da ONU. Com a crise financeira, a consciência humana vai despertar, sobretudo nas democracias. A opinião pública vai entender a loucura deste neoliberalismo, desta poderosa potencia de mão invisível do mercado que baniu o homem como sujeito coletivo ou individual da história ou da economia «.
Os que contribuíram na formulação do dogma anti-Estado voltam hoje a defendê-lo, não para que o Estado volte às funções para as quais foi criado, mas para salvar os bancos, transformando-se em Estado acionista. Dai os discursos de Bush e Sarkozy soarem como hipocrisia. Certamente a regulação mundial dos fluxos financeiros é necessária, entretanto a realidade demonstra que o esfacelamento do Estado como da coletividade cedeu ao determinismo das bolsas de valores.
Na verdade, o famoso tripé da governança mundial, Banco Mundial, FMI e OMC, integrante do sistema multilateral das Nações Unidas, sob controle das grandes potências, se encontra prisioneiro de suas próprias contradições. Os neoliberais querem socializar as perdas com aqueles que nunca foram convidados a compartilhar da mesa quando esta era farta. O pior é que eles se encontram diante de um vazio institucional, com contornos mal definidos. O FMI não sabe como reagir diante da crise dos países ricos, e as reuniões da OMC continuam sendo diálogos de surdos. A governança mundial de ideologia neoliberal é morta e ninguém quer carregar seu caixão. Diante da impossibilidade da gestão da crise do sistema econômico mundial pelo neoliberalismo, os discursos proliferam para re-fundar o capitalismo. Os políticos e os economistas que abandonaram o Keynes por Milton Friedman, precursor do neoliberalismo, preferem ressuscitar Keynes para salvar a desordem mundial deixada pela prática neoliberal que postulava às cegas a idéia de que a força do mercado por si só iria gerar progresso e impulsionar o desenvolvimento econômico. Agora a tendência se inverte: o Estado deve ser reabilitado para regular o mercado e para pagar a conta da derrocada do capitalismo neoliberal. O paradoxo é buscar no nível local, soluções para a crise global. A resposta exigida agora é política e não mais econômica.
A maioria das grandes potências hoje está confrontada às crises econômicas sucessivas, ao desemprego crescente, a exclusão social, ao descontentamento e desencantamento político de seus concidadãos. Se a esquerda chega ao poder, o desafio maior é de regatar e reinventar as funções do Estado e da autoridade publica. A perda cada vez maior de soberania do Estado reduziu consideravelmente sua capacidade de ação, enfraquecendo suas funções e liberdade de agir na direção da integração política e social fundada sobre o direito elementar de acesso a educação de qualidade, habitação, saúde e saneamento, enfim ao usufruto do bem publico, do público, da sociedade.
Como transformar a fatalidade em oportunidades?
Os governos de esquerda e centro esquerda que estão no poder, ou, que se preparam para assumi-lo devem aproveitar as ambigüidades do discurso da direita sobre a volta do Estado, para propor uma nova engenharia do Estado republicano e democrático. Um Estado que guarde todos os fundamentos de seu papel como regulador da coesão territorial, política, econômica, social e ambiental. Um Estado que possa assegurar um eco-desenvolvimento consentâneo com cada realidade, construído dentro de uma visão sistêmica em que o econômico não seja predominante, e simplesmente inserido num sistema de produção de utilidade social e ambiental.
As instituições do Estado não podem permanecer imóveis diante de uma sociedade em plena mutação e em um mundo globalizado. Daí torna-se urgente redefinir o papel do Estado que nos últimos anos na Europa e América Latina foi enfraquecido pelo lobby da governança mundial das agências internacionais. O Estado deve se fortalecer para responder aos desafios da crise estrutural deixada pela ideologia neoliberal.
Por isso cabe ao Estado republicano e democrático instaurar uma governabilidade que esteja a serviço de um desenvolvimento economicamente eficiente, socialmente eqüitativo e ecologicamente sustentável. Este tipo de desenvolvimento se funda na busca de integração e de coerência das políticas setoriais. Por esta razão o eco-desenvolvimento territorial exige um tratamento conjunto dos efeitos econômicos, sociais e ambientais de todas as ações governamentais. Este procedimento holístico exige que a realidade seja diagnosticada a partir da visão pluridisciplinar.
A elaboração e execução de qualquer programa, plano, projeto e atividades concernentes ao eco-desenvolvimento territorial, devem ser viabilizadas através de relações de parcerias múltiplas, a partir de contratos de objetivos precisos na definição do papel de cada ator envolvido. Seu sucesso depende da reciprocidade da cooperação entre diferentes áreas do conhecimento, entre elas a economia, a sociologia, a geografia a ecologia, a biologia e a antropologia, bem como de diversos setores tais como o dos transportes, do saneamento básico, da infraestrutura urbana, do meio ambiente, da assistência social e o da organização territorial. Tudo com a presença de categorias e seguimentos sociais representativos (seguimento empresarial, instituições associativas, órgãos institucionais, e não governamentais, sindicatos), agindo em níveis de escalões territoriais diferentes, seja em termos local, regional, nacional e internacional. Não existe eco-desenvolvimento territorial sem visão integrada da realidade e sem participação ativa da cidadania política. A mobilização e o envolvimento de todos os atores da sociedade civil não significa instrumentalização, mas, colaboração na co-gestão do eco-desenvolvimento territorial. Todos os atores sociais devem ter a possibilidade de engajamento nos processos de decisão. Será somente através da participação da cidadania e de um procedimento integrado e articulado que o desenvolvimento garantirá sua sustentabilidade.
A utopia compartilhada é que faz avançar a história, e nos faz avançar na concepção de um mundo mais solidário. O socialismo democrático é possível.
Marilza de Melo Foucher, drª em economia, especializada em planificação regional e desenvolvimento/Consultora Internacional
23 de outubro de 2008