Em entrevista à Carta Maior, o economista defende a redução dos juros e o aprofundamento do PAC, sobretudo em investimentos sociais e na geração de emprego. Para o ex-presidente do BNDES, o governo deveria também centralizar o câmbio. “Nós temos que reforçar nossas defesas. Se perdermos 50 bilhões e tivermos, em 2009, uma balança comercial altamente deficitária, as reservas brasileiras acabam”.

por Clarissa Pont

Para o economista Carlos Lessa, a análise das conseqüências que a crise financeira internacional pode ter sobre a economia brasileira é uma grande aula. Nesta entrevista à Carta Maior, Lessa aponta os possíveis caminhos para que o Brasil possa minimizar os efeitos da falta de crédito mundial nos setores produtivos locais, afirma que o PAC é o grande trunfo sobre a crise e projeta a centralização do câmbio no país. “A idéia do planejamento não é a idéia de uma economia de mercado: planejar é construir o futuro que você deseja pessoalmente enquanto a economia de mercado pensa no futuro que será bom para o mercado”, defende.

Ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Lessa acredita que importante para o Brasil é discutir o futuro, especialmente porque “todos os projetos de infra-estrutura de grande porte são públicos”. Autor de dezenas de livros e artigos especializados, Lessa integrou as equipes do Instituto Rio Branco, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e do Instituto Latino-Americano e do Caribe de Planificação Econômica e Social, além de ter atuado em instituições do Chile, Nicarágua e El Salvador.

Carta Maior – A atual crise vem se estruturando desde quando?

Carlos Lessa – A crise do capitalismo é, na verdade, mais antiga que o próprio capitalismo industrial. Se nós formos olhar para o passado, encontraremos a famosa crise holandesa cujo estopim foi o preço da tulipa. Montou-se uma especulação colossal com as tulipas e a lenda é de que um marinheiro entrou numa casa onde estavam dois bulbos de uma tulipa hiper valiosa e as comeu, achando que eram duas cebolas. O fato gerou uma crise de confiança tal que houve uma quebra da bolha especulativa que havia se montado na Holanda do século 17.

As crises que nos interessam mais, no entanto, são aquelas que surgiram depois que o capitalismo industrial se instalou. É famosa a crise que vai de 1870 até 1893, que marca o início do declínio inglês e só se resolve, de certa maneira, na I Guerra Mundial. A grande depressão de 1929, que atravessou todos os anos 30, só foi superada com a reanimação da economia mundial com a II Guerra Mundial.

“Toda crise é um produto histórico único. As crises não se repetem, elas se sucedem”.

Carta Maior – As comparações com a Grande Depressão têm pipocado em muitas análises de economistas e na mídia. É correto traçar esse paralelo?

CL – Nós estamos vivendo uma crise com as mesmas proporções dessas crises do passado, porém é necessário entender que toda a crise é um produto histórico único. As crises não se repetem, elas se sucedem. Em benefício ao entendimento, eu gostaria de lembrar que, quando termina a II Guerra Mundial, há uma conferência regulatória das finanças mundiais, Bretton Woods. Ali é derrotada a sugestão de Lord Keynes de uma moeda reserva internacional gerida por um sistema plurinacional de administração. E é adotado o dólar, que se propõe a ser a reserva internacional com um argumento pragmático e altamente contundente de que, naquele momento, 90% das reservas do mundo estavam nas mãos do Tesouro norte americano e, por conseguinte, sendo o dólar conversível em ouro numa paridade definida, estava simplesmente restaurado o ouro como fundamento último de confiança das finanças internacionais em reconstrução. Em 1971, numa manobra unilateral, o Governo norte americano cancelou a conversibilidade do dólar e, a partir desse momento, o dólar virou o valor oficial de sustento.

CM – Ou seja, o dólar vale porque ele vale e ponto…

CL – E a confiança é de que ele vale porque ele vale e isso permite que ele seja o fundamento de todas as reservas em última instância do sistema financeiro mundial. A China, que é o emergente mais dinâmico do planeta, acumulou imensas reservas em títulos do Tesouro norte-americano. Os bancos centrais europeus tentaram evoluir até para uma moeda única, o Euro, porém, os bancos centrais têm suas reservas em bônus do Tesouro norte-americano. Então, esse valor que se auto-sustenta é o fundamento de todo edifício financeiro do mundo. E um detalhe extremamente importante, isso representa um instrumento de poder incomensurável porque ser o fundamento último de sustentação do sistema financeiro mundial é mais importante pros Estados Unidos que ter um dispositivo militar que é – sozinho – maior que os nove outros orçamentos militares que o sucedem. Da mesma maneira que é mais importante que dominar corações e mentes desde Walt Disney até os enlatados, passando pelas agências de notícias. Eu diria que dos três fundamentos do poder norte americano, inquestionavelmente, o instrumento mais importante é o dólar.

“A longa prosperidade americana foi acompanhada de uma equação financeira duvidosa: déficit fiscal e desequilíbrio na balança comercial”.

CM – A prosperidade estancou quando exatamente?
CL – Esse instrumento permitiu que, nos últimos 25 anos, os Estados Unidos vivessem uma política curiosa em que houve um certo despojamento da sua economia real em nome de um imenso edifício de prosperidade e um imenso edifício de ampliação do padrão de vida de seus nacionais. Essa longa prosperidade norte-americana, que teve pelo menos um quarto de século de intensa e inequívoca prosperidade, foi acompanhada de uma equação financeira duvidosa. Um déficit fiscal e um desequilíbrio na balança comercial permanentes. Porém, tanto o déficit comercial quanto o déficit fiscal eram modos pelos quais era possível, com emissão de dólares e emissão de títulos nominados em dólares, dar sustentabilidade a esse processo.

Eu diria que os principais protagonistas deste processo e aqueles que mais prosperaram com ele foram os bancos e as grandes organizações financeiras norte americanas. Ganharam uma expressão mundial e se desdobraram por todos os recantos acompanhando um discurso geopolítico que surgiu depois da queda do Muro de Berlim. A história acabou e agora iremos para a prosperidade prometida que é o fim de todas as guerras e é o império do mercado como o grande e único princípio de regulação mundial. Isso foi particularmente importante para o sistema financeiro que, curiosamente, se desregulou completamente.

CM – Qual lição se pode tirar da crise e das teorias sobre a desregulamentação do mercado que agora vão por água abaixo?

CL – Existe uma coisa que qualquer economista aprende no segundo período de formação que é uma irresponsabilidade permitir que haja uma criação de moeda escritural a partir da possibilidade dos bancos emprestarem 100% dos depósitos que recolhem. Porque, se houver quem tome isso em empréstimo, como o dinheiro será devolvido aos bancos, a sucessão de emissões de moedas é infinita e o sistema geraria uma quantidade ilimitada de moeda escritural. Por isso mesmo, desde o século 18, se previne esse risco estabelecendo regras pelas quais o sistema bancário é obrigado a manter certos percentuais de recursos em caixa ou certos percentuais dos depósitos que obtém sob a forma de depósitos em um Banco Central. Isso para reduzir essa geração de dinheiro escritural. Só que os bancos, no ambiente desregulado dos anos 80 e 90, conseguiram criar um neologismo chamado produto. O banco deixou de operar empréstimos e passou a dispor de produtos. E os produtos não ficaram limitados por nenhuma regra significativa.

“Nos Estados Unidos, já há quem fale num número do qual o Tio Patinhas gostaria muito. Um quatrilhão”.

CM – Na prática, isso gera o quê?

CL – Eu vou passar os números do Bank for International Settlements, que é a fonte mais confiável para tentar ter uma idéia do tamanho da criação desses produtos. A economia real, ou seja, a economia que corresponde aos processos que, em última instância, dominam a natureza e multiplicam formas de energia e o fluxo de produtos e bens de serviços, é estimada para todo o mundo entre 57 trilhões e 65 trilhões de dólares. Isso seria a economia real. Sobre ela, existe um patamar chamado ativos financeiros. Eu vou sintetizar os ativos financeiros denominando de dívidas primárias de empresas, de famílias e de governos. Os ativos financeiros andam em torno, ainda na estimativa do International Settlements, de 130 a 140 trilhões de dólares.

Bem, sobre isso, vêm os derivativos, os produtos, que são de uma engenhosidade e de uma complexidade crescente e estão estimados em 640 trilhões de dólares. Porém, nos Estados Unidos, já há quem fale num número do qual o Tio Patinhas gostaria muito. Um quatrilhão. Foi a primeira vez que eu ouvi quatrilhão sendo usado por alguém que não fosse o Tio Patinhas.

CM – Alan Greespan disse recentemente estar “em estado de descrença e choque” e reconheceu publicamente que errou durante o período em que comandou o Banco Central estadunidense. Gente como Greespan não viu a crise chegando?

CL – Eu vou construir uma imagem que é muito singela e corresponde a nossa experiência quando crianças de montar um castelo de cartas. Quanto mais alto, é mais fácil ele cair ou cair uma sessão inteira. E todos acham que um ventinho de alguém mexendo em uma porta já coloca em risco o castelo. A imagem do castelo me permite construir a seguinte hipótese. Se eu tivesse um tubo de Araldite, eu poderia construir um castelo de cartas com dezenas de andares. Cola de Araldite é impecável e isso nas relações financeiras é a confiança recíproca que existe entre os agentes. Fidúcia, confiança, não é certo? Se eu mereço a confiança dos meus pares, eu tenho condições para criar um produto e comercializar esse produto. E o meu produto se incorpora às potencialidades de quem o detém para, sobre ele, emitir outros produtos.

É um pouco como se fosse uma seqüência, a empresa pode emitir ações, alguém pode adquirir ações e emitir fundos de ações, os fundos de ações podem por sua vez dar origem de um fundo de fundos. Eu estou contando a história pelas ações, mas podem ser contratos na bolsa de mercadoria futura, podem ser operações, eu posso até combinar ações e contratos de futuro. Poso fazer o que eu quiser, se houver confiança, se tiver assinatura. A Sadia não aplicou 250 milhões de dólares da sua reserva no banco americano Lehman Brothers? Valeu até o momento em que pfff…, o Lehman Brothers sumiu. Virou pó.

“As crises são parceiras da história. No sentido de que dão origem a novas hierarquias, a novas configurações..”

O que eu quero dizer é o seguinte. Pense nos antigos que praticavam alquimia. Imagine que a crise é uma perversa alquimista que converte cola de Araldite em cuspe. Isso significa que todo esse enorme edifício começa a se colocar sob suspeita. Eu disse que nenhuma crise é igual à outra, historicamente elas são sempre muito diferentes e se resolvem de formas diferentes. Porém, a verdade é que a humanidade, depois de uma grande crise, nunca reproduz as configurações anteriores. Num sentido muito amplo, as crises são parceiras da história. No sentido de que dão origem a novas hierarquias, a novas configurações, novos padrões de comportamento. Mas não é um parto sem dor. A única coisa que se pode afirmar sobre essa crise é que não passaremos pela dor de uma guerra.

CM – Como a economia que deu inicio à queda do castelo de cartas consegue estar, no final das contas, mais forte que o resto do mundo?

CL– Nós estamos vivendo um paradoxo que é impressionante, mas ao mesmo tempo expressa o que é o significado do dólar como instrumento de poder. Vinte e seis moedas do mundo se desvalorizaram em relação ao dólar sendo que a moeda que mais desvalorizou foi, infelizmente, o real. Vinte e seis moedas! Aí você dirá é uma crise que começa nos Estados Unidos e que golpeia de maneira poderosíssima pilares fundamentais do edifício financeiro mundial, não é certo? Ela começa no subprime, migra para os fundos imobiliários, passa pelo desaparecimento da maior seguradora do mundo, os bancos de investimento literalmente desapareceram e os que sobreviveram agora vão virar bancos comerciais, a bolsa de valores de Nova Iorque acumula perdas que também só o Tio Patinhas conhece a magnitude.

Agora, com tudo isso, o dólar se valoriza em relação às maiores moedas do mundo. Isso é, aparentemente, um enorme paradoxo, não é mesmo? Mas não tem nada de paradoxal nisso. A imensa expansão da economia norte americana se deu por uma aquisição mais ou menos generalizada de ativos e aplicações financeiras em escala mundial. Na medida em que balança o centro do castelo de cartas e surge uma crise de liquidez, o que os perdedores são obrigados a fazer? Reintegrar os dólares que os Estados Unidos haviam mandado para fora. Assim, o real está se desvalorizando em uma velocidade razoavelmente assustadora porque um pedaço muito grande da nossa bolsa estava com aplicadores estrangeiros. É que, rigorosamente, na seqüencia desta crise, haverá uma dúvida generalizada de confiança na capacidade de se gerir o mundo com uma instituição como o dólar e com um padrão de gestão típico deste passado recente.

Abre-se uma crise geopolítica colossal cuja preliminar foram as declarações do primeiro-ministro francês e do presidente da Rússia de que é necessário um novo Bretton Woods, para reorganizar o sistema de reservas internacionais. Muito bem, eu vou parar aqui no que diz respeito à crise mundial.

“No Brasil, a primeira e mais direta manifestação desta crise acontece na balança comercial”.

CM – A grande discussão do momento é se a queda do castelo de cartas atingirá o Brasil também…

CL – Pois bem, se o processo de crise financeira fosse apenas a desmontagem do castelo de cartas, haveria a desaparição de imensas fortunas que estão no território da ficção, são fumaça. Se a base produtiva permanece intocada, se o volume de empregos se preserva, se as relações comerciais estabelecidas existem, se as estruturas de comercialização não forem danificadas, o mundo pode continuar a viver com suas glórias e suas mazelas. Porém, essa crise tem variadas incidências sobre o circuito real. Porque o castelo de cartas, apesar de ser ficção, é inerente e indispensável ao funcionamento da própria economia real.

No Brasil, a primeira e mais direta manifestação desta crise acontece na balança comercial. Nós estávamos começando a viver um ciclo expansivo dos investimentos com importações de máquinas e equipamentos e nós estamos enfrentando uma queda significativa nos preços dos nossos principais produtos de exportação. O que não quer dizer uma situação crítica para os produtores primários, porque uma desvalorização cambial gera uma receita em reais confortável. Mas, do ponto de vista do país, a nossa receita cambial sofre um baque pesado. Nós já vínhamos com problemas iniciais de balanço comercial e isso vai se agravar muito nos próximos anos. Quanto eu não sei, mas não será pouco.

A crise mundial é uma crise de liquidez. Ninguém sabia ao certo a extensão que organizações brasileiras ou organizações sediadas no Brasil estavam atreladas ao sistema de crédito internacional. Porém, sabe-se que 10% das operações bancárias dos bancos privados brasileiros estão apoiadas em financiamentos externos. Você tem um problema sério de financiamento das exportações e um problema sério em toda cadeia de crédito que sustenta o esforço comercial brasileiro.

“Ninguém tem a menor idéia da extensão em que as organizações economias brasileiras entraram no jogo mundial de especulação”.

CM – O senhor disse que ninguém sabe ao certo a extensão do atrelamento de organizações brasileiras ou organizações sediadas no Brasil ao sistema de crédito internacional…

CL – É uma caixa preta. Eu vou tomar a Aracruz como referência. Estoura uma notícia de que a Aracruz teria perdido 1,5 bilhão de reais. Esse primeiro anúncio fez com que as ações da Aracruz virassem pó aqui e em Nova Iorque também. O grupo Antônio Ermírio de Moraes declarou que não ia mais comprar um parcela expressiva das ações da Aracruz Celulose, parece que isso tem implicações até em um projeto no qual o Rio Grande do Sul estaria interessado. Os bancos se reúnem para discutir com a Aracruz um esquema e aí o resultado saiu já na mídia. O prejuízo não era mais de 1,5 bilhão de reais, mas de 2,5 bilhões de dólares.

Ninguém tem a menor idéia da extensão em que as organizações economias brasileiras entraram no jogo mundial de especulação. O que se diz é que 200 grandes empresas brasileiras estão com problemas deste tipo. Quais são? Às vezes elas próprias não sabem.

CM – Então como ficam os planos da iniciativa privada no Brasil?

CL – Eles vão, muito provavelmente, dar um tempo. Haverá uma tendência à contração do investimento privado, estou falando em investimento do ponto de vista macroeconômico, não estou falando do investimento como aplicação financeira. Eu não preciso lembrar que a taxa de investimento macroeconômica do país está muito baixa, em torno de 21% do Produto Interno Bruto. Historicamente, quando o Brasil está bem, esta taxa fica em torno de 24 ou 25% do PIB. Ela vinha melhorando nestes últimos anos, porem não chegou ainda aos 25%, que seriam a nossa garantia de reprodutibilidade. O processo de crescimento que a economia brasileira viveu, provavelmente, vai ser interrompido por esse recuo empresarial.

“O PAC é intocável, tem que colocar dinamismo no Programa”.

CM – E o Plano de Aceleração do Crescimento?

CL – Eu digo para investir no PAC porque é um enorme programa de usinas elétricas, de petróleo, de construção naval, de reconstrução de estradas, recuperação de portos. Eu gostaria que fosse um grande programa de metrôs e trens urbanos. Tinha que se lançar um grande programa para municípios e estados saírem por aí construindo escolas, tinha que se elevar o salário dos professores. Professor ganhando mais pode comprar mais goiabada e a fábrica de goiabada produz mais. Nós temos que mudar o modelo que o Brasil viveu, não dá para segurar o Brasil nesse festival de dívidas das famílias de classe média. Se eu pudesse resumir minha opinião sobre isso, diria que o PAC é intocável, tem que colocar dinamismo no Programa.

Segundo, as administrações municipais devem ser amparadas em programas de melhoria da rede escolar e da rede primária de saúde. As administrações estaduais devem ser apoiadas para melhorar os programas de saneamento básico. O salário básico do pessoal de educação deve ser elevado. O gasto público tem que aumentar adoidado para segurar esse pepino. Porque nós estamos segurando esse pepino em cima da ficção, da riqueza fácil em cima da dívida das pessoas. Não é da produção. Agora se, por exemplo, todo o pessoal da rede primária de educação tiver um salário melhor, se os prédios escolares forem melhorados, os hospitais e os postos de saúde também, você está fazendo o quê? Bom, você está consumindo coisas que existem dentro do Brasil, que é mão de obra brasileira que está disponível, o cimento, o aço, a madeira que a gente tem. Não temos grandes desafios tecnológicos, temos desafio de coordenação de programa.

CM – É o investimento público que vai deixar o Brasil longe da crise, então?

CL – O PAC significa uma retomada do investimento público, que poderia ser um sinal forte para que setores da economia brasileira preservassem seus investimentos. Porém, o nosso ministro do Planejamento já declarou que vai meter a faca no PAC, cortar o que for necessário. Não foi dado ao país um sinal inequívoco de que o PAC será preservado. A verdade é que nesse ano só 40% do que foi programado foi realmente gasto. Num cenário em que a confiança está enfraquecida, o discurso ambíguo só faz aumentar a desagregação da cola que é a confiança. E eu acho que esses investimentos devem ser sociais. Tentar injetar novamente na economia brasileira algum horizonte possível de defesa do nível de emprego, isso é fundamental.

CM – E existe dinheiro para tanto investimento?

CL – Sim. Tem que empurrar o juro para baixo. Vocês sabem quanto o Brasil esta gastando em juros? O Dr. Henrique Meirelles paga 170 bilhões de juros, enquanto todo o programa de educação do país não chega a 40 bilhões. É o festival financeiro. O Meirelles reduziu os depósitos compulsórios e os bancos aumentaram a compra de títulos do Tesouro Nacional e não emprestaram. Você não resolve isso por um mecanismo financeiro.

Uma coisa que a gente aprende em economia: com uma corda eu te enforco. Se eu te puxar, eu te enforco. Mas com uma corda te empurrando, eu não te levo para lugar nenhum. Entende? O crédito é uma corda. Quando você está eufórico, você aperta a corda e diminui a euforia. Mas quando o pessoal está deprimido, você pode empurrar crédito à vontade que não há recuperação. Pegou a imagem da corda?

“Você acha que dá para segurar a economia brasileira vendendo automóvel em 90 prestações? A resposta é não”.

CM – O senhor fala bastante sobre o endividamento familiar brasileiro. Em que medida esse fenômeno tem relação com a crise mundial?

CL – Enquanto, nos Estados Unidos, a bolha de crédito foi ao redor dos empréstimos imobiliários que foram comprados com a alta de preços dos imóveis e uma expansão da margem de financiamento e, logo, de endividamento das famílias, no Brasil nós temos uma bolha que eu chamo de Casas Bahia. É o seguinte, as delícias do sistema de Tabela Price combinadas com longos períodos de pagamento permitem, pela matemática de juros compostos, construir um juro embutido elevadíssimo.

Nós crescemos muito em cima de endividamento familiar. Estavam vendendo automóvel em 90 prestações sem entrada no Brasil, com Tabela Price. Como as pessoas não sabem matemática financeira, não sabem que a Tabela Price é construída por juros compostos. Não sabem que, quanto mais dilatado o prazo, mais alto é o juro efetivo que é cobrado. Há um endividamento em massa das famílias brasileiras em cima do automóvel. Há um mês, eu estive em Juiz de Fora, uma cidade que tem 520 mil habitantes e 140 mil veículos. É um veículo para menos de quatro habitantes da cidade. Então, não acho que seja correto apoiar carteira de montadora de veículo, por exemplo. Você acha que dá para segurar a economia brasileira vendendo automóvel em 90 prestações? A resposta é não.

Você vai segurar isso com o quê? Com o BNDES? O BNDES não segura. Não pode substituir os milhões de pessoas que compram automóvel a prazo. É aquela experiência que todos já viveram. Tem um lugar que vende alguma coisa em oito prestações sem juros. Você vai com dinheiro e diz que quer pagar à vista. Não tem desconto. Sabe qual é o significado disso? Eu não estou interessado em vender a coisa, estou interessado em que você se endivide. E pague o juro embutido colossal nas prestações, eu quero você como devedor. Aí as Lojas Americanas, as Casas Bahia se convertem em financeiras. Entendeu?

“Vou horrorizar os jovens economistas com o que vou dizer…Sou favorável a centralizar o câmbio”.

CM – O senhor poderia resumir uma programa de curto prazo para a economia brasileira frente à crise?

CL – Eu vou horrorizar os jovens economistas com o que eu vou dizer, mas eu sou um velho economista, um dinossauro e posso dizer essas coisas. Eu sou favorável a centralizar o câmbio, ou seja, todas as operações cambiais no Brasil passam a ser realizadas pelo Banco do Brasil. Todas. Significa dizer o seguinte, abre-se um período de registro para que todas as entidades brasileiras declarem suas posições em dólar e nas diversas modalidades que interessam. O Banco Central comandará, então, a administração dessas operações cambiais. Por uma razão muito simples, porque a blindagem que o país dispõe são as reservas de dólares, as reservas internacionais brasileiras.

Eu quero ser o mais otimista possível. Se nós perdermos 50 bilhões e tivermos, no próximo ano, uma balança comercial altamente deficitária as reservas brasileiras acabam. Ponto. Aí tem o segundo problema. Há um festival de ingenuidade praticado no país sobre como enfrentar essa crise. E eu acho que, no momento, nós temos uma franquia ideológica para fazer o que nós acharmos que deve ser feito. Estão absorvendo ações nos bancos, proibindo distribuição de dividendos, demitindo e reduzindo salários dos executivos dos bancos e isso tudo em um dos paraísos da liberdade, na Inglaterra, país que deu início a isso tudo com a senhora Thatcher.

“O governo norte americano vai indenizar a Sadia pelos 284 milhões de dólares que perdeu com o Lehman Brothers?”

Eu também não devolveria dinheiro de especulador que veio para o Brasil. É quebra de contrato? É! O governo norte americano vai indenizar a Sadia pelos 284 milhões de dólares que perdeu com o Lehman Brothers? É risco de mercado. Resumindo, existem duas questões, com tempos históricos diferentes para o Brasil. Uma é a discussão de como é que nós vamos segurar o emprego e como nós vamos preservar minimamente o crescimento da nossa economia. É uma questão de discutir uma coisa que saiu de moda chamada projeto nacional. Não basta botar o Mangabeira Unger a pensar nisso que não sai projeto nacional dele. Ou a sociedade civil discute isso, ou não dá.

Segundo, a curto prazo, nós temos que reforçar nossa defesas. E por isso eu sou completamente favorável à centralização do câmbio. E isso é um neologismo para cobrir moratória. Na verdade, é uma moratória.

Publicado na Agência Carta maior em 31/10/2008
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