Brasil – Crise, alimento e valores
Uma família brasileira joga fora, em média, meio quilo de comida por dia. Um hipermercado pode desperdiçar por mês até 2000 quilos de alimentos bons para o consumo, mas não para a venda. A perda de alimentos nas feiras livres de São Paulo é estimada em 1000 quilos por dia.
Uma família brasileira joga fora, em média, meio quilo de comida por dia. Um hipermercado pode desperdiçar por mês até 2000 quilos de alimentos bons para o consumo, mas não para a venda. A perda de alimentos nas feiras livres de São Paulo é estimada em 1000 quilos por dia.
Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), no Brasil ocorre o desperdício de 26 milhões de toneladas de alimentos por ano, volume suficiente para alimentar bem 35 milhões de pessoas. De 100 caixas de produtos alimentares colhidas no campo, 39 não chegam à mesa do consumidor. Das 43,8 milhões de toneladas de lixo geradas anualmente no Brasil, 26,3 são de comida. 60% do lixo urbano produzido no Brasil é composto por restos de alimentos.
O desperdício total de alimentos no Brasil é de cerca de 14 milhões de toneladas anuais de frutas, hortaliças, grãos e outros alimentos. Do total de desperdício, 10% ocorrem durante a colheita, 50% no manuseio e transporte de alimentos, 30% nas centrais de abastecimentos e os últimos 10% diluem-se entre supermercados e consumidores.
Os alimentos eliminados indiscriminadamente poderiam ser aproveitados no combate aos efeitos da fome, da desnutrição e subnutrição. As perdas na cadeia produtiva alimentariam 1/3 dos famintos brasileiros, sem se gastar nem mais um centavo com a produção de alimentos.
Por outro lado, segundo José Graziano da Silva, representante da FAO para a América Latina e Caribe, "a alta dos preços dos alimentos elevou em 75 milhões a população subnutrida em 2006/07. O número de pessoas com fome deve ter subido ainda mais em 2008, porque os preços dos alimentos continuaram subindo em média cerca de 40% ao ano" (A Fome e a Crise no Dia Mundial da Alimentação, Valor Econômico, 16.10.08, A12). "Os seres humanos que passam fome no mundo aumentaram de 80 milhões, em 1960, para 800 milhões. Só nos últimos dois anos, de acordo com a FAO, aumentou em mais 80 milhões o número de famintos. Ou seja, agora são 880 milhões" (Soberania Alimentar e a Agricultura, João Pedro Stédile e D. Tomás Balduíno, FSP, 16.10.08, A3).
Como explicar todos estes números e que fazer?
É preciso discutir o modelo de sociedade e de desenvolvimento dominantes no mundo, baseados na financeirização da economia, no acúmulo de riquezas, em valores de competição e de consumo desenfreado, onde poucos têm muito e a maioria quase nada. Estes modelos geraram uma crise econômica de conseqüências e duração imprevisíveis, que está deixando em pânico os governos do mundo e levando-os a tomar medidas emergenciais até então impensáveis. Mas segundo Muhammad Yunus, economista indiano que criou o Banco dos Pobres, "quem tinha um bilhão, continuará tendo um bilhão. Quem tem vários milhões, continuará tendo alguns milhões. Já os pobres, aqueles que não tinham como pagar uma refeição inteira, em pouco tempo se darão conta de que poderão pagar apenas metade. E são esses os que mais sofrerão com a crise".
Urge mudar o modelo de sociedade e o modelo de desenvolvimento e seus valores. E considerar "o alimento um direito de todo ser humano e não uma mercadoria, como, aliás, já defende a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Cada povo e todos os povos devem ter o direito de produzir seus próprios alimentos. Isso se chama soberania alimentar. Não basta dar cesta básica, dar o peixe. Isso é a segurança alimentar, mas não é a soberania alimentar. É preciso que o povo saiba pescar!" (João Pedro Stédile e D. Tomás Balduíno).
Para José Graziano, "o incentivo à agricultura familiar tem-se mostrado essencial para alcançar o objetivo de enfrentar a crise e a alta dos alimentos, porque transforma um aspecto do problema em parte da solução. O Brasil é um dos países mais avançados nessas políticas de apoio à agricultura familiar com programas como o Pronaf e o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), que garantem crédito para os investimentos e o mercado necessário para a venda local da produção obtida. A combinação de compras locais da agricultura familiar para alimentar as redes sociais existentes – em especial a merenda escolar – é considerado um dos mecanismos mais promissores para dinamizar as economias locais. O momento também requer repensar o papel do Estado na agricultura. É preciso fortalecer, mas também renovar a institucionalidade rural e agrícola. Disso depende o apoio à agricultura familiar e a implantação de políticas que permitirão o retorno dos investimentos, incluindo pesquisa, que sejam acessíveis a um maior número de produtores".
Além de mudar as estruturas econômicas e sociais, é preciso criar nas comunidades e nas pessoas uma nova consciência e novos valores. Hoje o problema não está na produção. A economia brasileira é a quarta maior exportadora de alimentos no mundo. A agricultura brasileira é forte e suficiente para atender as necessidades internas e ainda gerar divisas com exportações. Não se justifica, portanto, que milhões de brasileiros/as ainda estejam em insegurança alimentar nutricional. O que falta é solidariedade, partilha, distribuição de renda e um sentimento ético de que todos e todas têm direito à vida, ao alimento e à segurança alimentar e nutricional.
Isso se faz não apenas com vontade ou decisão pessoal. Os governos e a sociedade, em parceria, devem criar programas e propostas concretas que viabilizem o fim da fome, o fim do desperdício e o acesso regular aos alimentos na qualidade e quantidade necessárias. Por isso, é importante aprovar o Estatuto do Bom Samaritano e são necessários os Bancos de Alimentos, as Cozinhas Comunitárias, os Restaurantes Populares, as hortas comunitárias, a agricultura urbana, instrumentos e iniciativas que estão sendo implantadas em todo país, com apoio do governo federal e de governos estaduais e municipais, em parceria com movimentos sociais, pastorais, ONGS e instituições da sociedade civil.
Muito há por fazer e o tempo urge.
Selvino Heck é assessor especial do Presidente da República do Brasil