Muito do que poderia ser dito sobre a cobertura jornalística que a grande mídia realizou do recente seqüestro de Santo André, certamente já foi dito – neste Observatório (1) e nos mais diferentes meios e fóruns. Mas não há como um observador semanal se omitir de fazer ainda alguns comentários sobre importantes lições do episódio. Valerá pelo menos o registro.

Muito do que poderia ser dito sobre a cobertura jornalística que a grande mídia realizou do recente seqüestro de Santo André, certamente já foi dito – neste Observatório (1) e nos mais diferentes meios e fóruns. Mas não há como um observador semanal se omitir de fazer ainda alguns comentários sobre importantes lições do episódio. Valerá pelo menos o registro.

Omissão, incapacidade de aprender e responsabilidade legal

Primeiro, chega a ser patética a capacidade que a mídia tem de se excluir de tudo que se desenrola ao seu redor e colocar-se na posição de mera observadora, como se nada daquilo tivesse qualquer relação com sua presença e centralidade na sociedade brasileira contemporânea.

É difícil acreditar que essa ‘auto-exclusão’ decorra apenas do eventual despreparo profissional de jornalistas, sejam editores ou repórteres. A natureza da atividade jornalística exige que coberturas como as que são oferecidas à população sejam decididas em nível de direção, e contem com a aprovação de quem quer que seja o responsável último pelo jornal, rádio ou TV.

No que se refere às emissoras de rádio e televisão – serviços públicos cuja exploração é concedida pela União – não seria hora de se discutir o seu papel na sociedade, sua responsabilidade em relação ao interesse público? Para além do discurso de ‘bom mocismo’, sempre presente nas falas de executivos nas (muitas) solenidades em que a mídia autocomemora os enormes benefícios que a sua presença traz para o país, não seria hora de se criar um programa (mensal?) de debates no qual fatos como a cobertura jornalística do seqüestro de Santo André pudesse ser analisada por especialistas de diferentes áreas? Quem sabe o papel da mídia não devesse ser investigado e discutido da mesma forma que a própria mídia se propõe, por exemplo, a discutir a ação policial no episódio?

Segundo, ao contrário do comportamento das pessoas, é interessante que não se cobre das instituições de mídia que aprendam com suas próprias experiências vivenciadas no passado, recente e/ou remoto. Esta não foi a primeira vez no Brasil – e certamente no mundo – em que seqüestros ocorreram e a cobertura jornalística do evento se revela a posteriori como fundamental para o seu desfecho. Onde estão os ‘manuais’ básicos a serem seguidos em casos semelhantes, discutidos e negociados com as autoridades de segurança pública e que visam a proteção dos reféns, a preservação da vida e o interesse público?

Terceiro, é indispensável que se criem mecanismos de responsabilização legal das coberturas jornalísticas em episódios como o seqüestro de Santo André. Da mesma forma que J. B. Thompson mostrou que sem a mídia não pode haver o que ele denomina de ‘escândalo político midiático’ (EPM), creio ser possível mostrar que existe um tipo de criminoso que se inspira na mídia para sua existência e depende da cobertura dela para o sucesso de sua ação criminosa.

Nos EPM, o capital simbólico da mídia é a sua capacidade de destruição da reputação pública de políticos profissionais e, portanto, de interferir diretamente no jogo de poder. Já em certos crimes, o criminoso não só se inspira na ‘cultura do sucesso a qualquer custo’ – patrocinada 24 horas, sobretudo, mas não somente, pela televisão –, como se nutre da certeza de que será transformado instantaneamente em celebridade disputada por microfones e câmeras em função da espetacularização midiática regida pela disputa desmedida pelos índices de audiência.

Lógica perversa

A lógica que domina a mídia privada transforma o sucesso de mercado na única condição de sobrevivência empresarial e provoca conseqüências perversas para o conjunto da sociedade. Já se disse, corretamente, que não foi a mídia e nem a ação da polícia que mataram Eloá Cristina Pimentel e feriram Nayara Rodrigues da Silva. Foi Lindemberg Fernandes Alves que praticou o seqüestro e deu os tiros assassinos. Esta é uma parte da verdade. Seria tapar o sol com a peneira não considerar as responsabilidades indiretas da cobertura jornalística da mídia em todo o episódio – e em episódios semelhantes.

O alcance e o significado das questões envolvidas certamente vão além do debate em torno dos princípios da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, até aqui limites sempre evocados quando se discute questões que envolvam as coberturas jornalísticas e o conteúdo veiculado pela mídia.

É preciso, no entanto, que se dê um passo à frente. Mais cedo ou mais tarde, outros seqüestros como o de Santo André ocorrerão. Será que presenciaremos novamente ao triste espetáculo midiático que quase sempre termina em tragédia e, em um interminável circulo vicioso, alimenta outras mentes criminosas e outras tragédias?

(1) Artigo publicado no Observatório da Imprensa


Venicio A. de Lima
, Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília. Autor/organizador, entre outros, de ‘A mídia nas eleições de 2006’ Editora Fundação Perseu Abramo – 2007.

Publicado no portal Vermelho em 31/10/2008