Esta é uma crise extraordinária que demanda medidas extraordinárias. Para superá-la é necessário superar o medo, as hesitações e, acima de tudo, os dogmas ortodoxos que a geraram.

A História assim o ensina. Há 79 anos, a quebra da bolsa de Nova York anunciava o começo de um longo ciclo de retrocesso das economias norteamericana e mundial. No primeiro momento crucial, o temor de Hoover em adotar medidas audazes para reativar a economia amplificou dramaticamente os impactos do crash financeiro. Entre 1929 e 1933 a produção industrial despencou 30%, 11.000 bancos faliram, as importações caíram 70% e o desemprego atingiu 25% da população ativa.

Com Roosevelt, que temia apenas o medo, tudo mudou. Seu programa de massivos investimentos em infra-estrutura, suporte à agricultura e aos desempregados, regulação e controle das instituições financeiras, estímulo à sindicalização e seguridade social, “o New Deal”, fez a economia reagir. A ordem mundial erigida no pós-guerra possibilitou crescimento sem precedentes da economia mundial por quase três décadas. Foi um período de transformações do sistema capitalista, que tem no Estado do bem-estar e no acordo de Bretton Woods suas grandes expressões simbólicas.

A crise mundial atual, deflagrada pelo estouro da bolha imobiliária norteamericana, é a culminação de um ciclo que tem suas raízes na ruptura do padrão construído naquele período. As políticas de liberalização e desregulamentação econômica e financeira, generalizadas em escala planetária, induziram extraordinária expansão e desregulamentação do sistema financeiro. O capital financeiro desterritorializou-se e passou a operar descolado das economias reais, com níveis de alavancagem sem precedentes. Com a falta de transparência das operações financeiras, criou-se uma gigantesca caixa-preta.

Por isso a crise atual tem dimensão que recorda 1929. De fato, esta é uma crise do capitalismo global, originada no coração do sistema, que não tem comparação com as crises periféricas da década de 90. O crash financeiro é só seu primeiro estágio. Não podemos subestimar sua extensão e impactos. Como em 29, ela contagiará a economia real. A recessão nas economias avançadas é inevitável. O que não se pode prever é sua duração e se ela irá transformar-se em uma depressão.

O impacto da crise no Brasil foi atenuado, mas é cumulativo. Algumas de suas manifestações já são evidentes: a redução das linhas de financiamento das exportações, o esvaziamento do mercado de capitais, a escassez de crédito, a subida da taxa de câmbio e a queda do preço de commodities relevantes na pauta de exportações do país.

No entanto, o Brasil construiu linhas de defesa importantes. Política econômica consistente possibilitou acumular reservas internacionais elevadas, que somam mais de US$ 230 bilhões. Gerou-se um colchão de reservas em reais, via depósitos compulsórios, da ordem de R$ 259 bilhões. Conseguimos zerar o componente da dívida pública indexado ao dólar, manter a inflação sob controle e reduzir o endividamento externo público. Paralelamente, diversificou-se o comércio externo, reduzindo a dependência das exportações dos mercados norte-americano e europeu. Preservamos os mecanismos de fiscalização e controle do sistema financeiro, que é mais regulado e menos alavancado que seus congêneres norteamericano e europeu. A mais sólida defesa foi, porém, a reativação da economia puxada pelo mercado interno de consumo de massas.

É fundamental limitar a extensão dos impactos financeiros da crise e prevenir desde já seus desdobramentos na esfera real. Nessa perspectiva, é preciso reconstituir o sistema de crédito e a liquidez da economia; utilizar de maneira anticíclica os instrumentos de política monetária e fiscal; incentivar o investimento e o emprego; estabilizar a taxa de câmbio; assegurar a realização dos investimentos previstos no PAC; desenvolver amplo programa de habitação popular; manter os exitosos programas sociais e melhorar a qualidade do gasto público, reduzindo despesas correntes. Clamar genérica e dogmaticamente contra o gasto público não resolve.

Mais importante, porém, é restaurar a confiança e não perder a perspectiva do futuro. A crise traz dificuldades, mas também abre possibilidades de avançar na criação de condições para a retomada, em um outro patamar, do processo de desenvolvimento. E o Brasil tem condições, como no passado, de transformar tais dificuldades em vetor de transformação econômica e social. Mas, para isso, é necessário imaginação e audácia.

Publicado no jornal O Globo – 2/11/2008