O fim do neoliberalismo não se dará na economia, mas na luta política.

Estamos no olho do furacão. Como um vendaval descontrolado, a crise arrasta negócios, governos e países a situações-limite, quebrando parâmetros até ontem tidos como imutáveis. O mercado, onde está o mercado que a tudo regula e enquadra? Que fim levou a mão invisível e sua insuperável sabedoria na alocação de investimentos?

A liberdade absoluta de movimentação de capitais e a desregulamentação financeira, elevadas à categoria de valores democráticos ao longo das últimas duas décadas, impossibilitam qualquer avaliação objetiva sobre as dimensões ou mesmo o ritmo do desastre.

Apressadamente, alguns analistas difundem a idéia de que as intervenções dos bancos centrais de vários países, injetando dinheiro em instituições financeiras em vias de quebrar, representariam o fim das chamadas teses neoliberais, que se baseiam na absoluta superioridade do mercado como organizador sistêmico. A volta do Estado interventor garantiria, assim, o fim de uma era.

Na verdade, não é esta a essência do modelo, embora seja uma de suas pedras de toque. Ou seja, sua contradição principal não se dá entre liberalismo e intervencionismo ou aquela estabelecida entre mercado e Estado, mas na absoluta subordinação do público ao privado. Entenda-se privado, no momento atual, como todas as formas de capital, sob a hegemonia de sua vertente financeira. E pode-se também entender como público o espaço dos interesses coletivos.

O que se assiste em diversas economias do mundo – EUA à frente – é, na verdade, o setor público – do Tesouro, mantido pela população – atuando como garantidor último dos interesses privados. É o que deve estar no cerne da discussão sobre o socorro de mais de US$ 3 trilhões, realizados por governos de todo o planeta, a bancos e agentes financeiros. Não se está estatizando nada, o que ocorre é a privatização da riqueza pública em favor da especulação financeira. A clássica socialização dos prejuízos, marca histórica de qualquer sociedade capitalista.

A lógica é explicitada quando se despejam quantias astronômicas para salvar o sistema financeiro, sem que se ouçam duas clássicas perguntas, formuladas sempre que políticas de combate às desigualdades sociais são aventadas: 1) “De onde sairá o dinheiro?” e 2) “Esta injeção de dinheiro na economia não provocará pressões inflacionárias?”

O grau de subordinação do setor público é tamanho, que as engrenagens das finanças turbinadas colocam sobre as sociedades a seguinte disjuntiva: “Salvem-nos ou arrastamos vocês junto”.

Hegemonia acontece quando os interesses de um setor são apreendidos como sendo os interesses gerais. Quando a parte alega sintetizar o todo. Agora o conceito funciona de maneira perversa. Os interesses de uns chantageiam a vida de todos. A dura realidade é que se a banca não for salva, sua capilarização sobre a economia produtiva, sobre os trabalhadores e sobre a população levará o mundo de roldão. O pressuposto básico segue então mantido: salvar o setor financeiro significa salvar a coletividade.

Seria precipitado falar em fim do neoliberalismo em uma situação dessas e no meio da tormenta. A crise final do capitalismo já foi alardeada outras vezes e o sistema demonstrou incrível elasticidade, surpreendendo até mesmo seus exegetas, para sobreviver e se expandir.

O neoliberalismo, a forma de gestão atual do capitalismo, não acabou e, possivelmente terá uma longa sobrevida. Talvez um pequeno ciclo histórico de supremacia especulativa tenha se encerrado. Mas nenhum dos outros cânones neoliberais – além do aprofundamento da subordinação do Estado aos interesses particulares – saiu de cena. Continuam intocáveis a liberdade de movimentação de capitais, o livre comércio, a redução do caráter público do Estado, as empresas e serviços públicos privatizados, os desvios de imensos recursos públicos em favor de uma minoria rentista, as flexibilizações nas legislações de vários países, dentre outras medidas adotadas nos últimos anos. O modelo segue funcionando não apenas nos EUA, mas em boa parte da Europa e da América Latina.

A crise proporciona condições objetivas para seu questionamento. Mas sua superação não se dará por conta de suas hecatombes financeiras. Isso acontecerá quando alternativas adquirirem consistência e legitimidade. Em outras palavras, sua resolução não ocorrerá no terreno da economia, mas da luta política.

A situação atual pode produzir o efeito pedagógico de colocar em pauta mudanças em políticas monetárias e fiscais restritivas e por dar curso a orientações industriais e agrícolas desenvolvimentistas. Algumas medidas no campo da política monetária foram tomadas, como a redução do compulsório, a intervenção no mercado de câmbio, o crédito para bancos e exportadores. São paliativos para contornar efeitos adversos e pontuais.

É hora de reagir com rapidez e fazer com que o dinamismo do mercado interno não esmoreça e que uma possível situação de perda de milhares de empregos possa ser minimizada. Iniciativas como redução dos juros, maior oferta de crédito aos produtores e consumidores, redução de impostos em setores estratégicos, aumento das compras do governo, dos investimentos do PAC e das transferências de renda da Previdência e do programa Bolsa Família podem ter poderosos efeitos para evitar que a crise atinja o país de uma forma muito severa.

Falar agora em cortar de despesas do Estado em setores sensíveis equivale a dar um tiro no pé. A hora é de gastar em atividades que revertam a espiral descendente da economia real.

As crises econômicas internacionais de 1929 e dos anos 1970 provocaram uma reação criativa do Brasil. Foram deflagradas diretrizes industrializantes e desenvolvimentistas, com forte presença do Estado. As saídas para a crise atual podem ir além, proporcionando desenvolvimento com justiça social. Isso poderia abrir novas perspectivas de futuro para aqueles que sempre pagaram a conta dos sucessos e das falências do capitalismo. Deixado ao seu livre arbítrio, o mercado seguirá provocando caos econômico e social.

Denise Lobato Gentil é professora de Economia do IE UFRJ, diretora-adjunta de Estudos Macroeconômicos do Ipea.

Gilberto Maringoni é historiador, pesquisador do Ipea, professor da Faculdade Cásper Líbero e autor de “A Venezuela que se inventa, poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo, 2004).

Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico em 27/10/2008