Luiz Gonzaga Belluzzo: “Cortar gasto público? Foi essa receita que empurrou a Alemanha para o nazismo em 1933”
Redação – Carta Maior
Retoma inestimável atualidade nos dias que correm – ou talvez fosse mais honesto dizer, nas horas que urgem – a frase bordão proferida pelo presidente Franklin Delano Roosevelt no famoso discurso de posse, em março de 1933. Em meio à Grande Depressão, que destruiria 25% dos postos de trabalho nos EUA, o político de origem conservadora, mas que passaria à história por ter abraçado instrumentos heterodoxos que permitiram tirar os norte-americanos do fundo da recessão, inaugurou seu mandato com uma advertência que, 79 anos depois, presta-se como uma luva a seus pares de hoje, igualmente assombrados por uma crise de gravidade equivalente, ou pior, que a de então. “A única coisa da qual devemos ter medo é do próprio medo”, disse o líder democrata à Nação, a si mesmo e, agora vê-se, à posteridade.
O economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor-titular da Unicamp e Presidente do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento – que fará um seminário com economistas de todo o mundo para discutir a crise, nos dias 6 e 7 de novembro, no Rio – está preocupado com a semeadura “insandecida” do medo no debate econômico do país no momento.
“O governo”, adverte cuidadosamente o sempre afável professor da Unicamp, “está sendo acossado, assim como toda a sociedade, pela demência de um certo pensamento econômico que pode imobilizá-lo”. Aquilo que ele caracteriza como sendo “o pior produto da metafísica ocidental” materializa-se nas últimas horas em editoriais de jornalões conservadores e repercute em discursos de altos decibéis orquestrados pela oposição parlamentar ao governo Lula.
“As pessoas simplesmente abstraem a realidade; divagam sobre uma dimensão que não existe mais: o mundo mudou. Radicalmente”, sublinha.
Ao que parece, não para todos. Na última terça-feira, por exemplo, o PSDB levou para questionar o ministro da Fazenda Guido Mantega, em sua fala no Congresso, uma plêiade de exemplares do que há de mais ortodoxo em termos de raciocínio econômico, matéria-prima como se sabe generosa nas trincheiras tucanas e na de seus aliados de palanques e idéias, os assim chamados “democratas”.
O seleto plantel formado por economistas de banco e de corretoras foi proibido de argüir o ministro. Por certo, Mantega ouviria aquilo que os editoriais vociferavam no mesmo dia em conhecida orquestração: alertas contra a famigerada gastança pública. A escolha da bancada tucana mereceu pelo menos de um alto coturno da agremiação paulista um desabafo não propriamente elogioso às leis de bronze da sabedoria econômica ortodoxa : ”Partido de merda”.
“A situação é muito séria e o governo não pode ter medo de agir”, continua Belluzzo em tom pausado. O professor não costuma se empenhar nos decibéis mas é contundente nas assertivas quando o momento exige: “A demência ensandecida insiste em recitar seu mantra dos livre mercados num momento em que os mercados encontram-se virtualmente pedindo socorro ao Estado”. Nesse ponto seu tom de voz se altera: “Estamos numa corrida contra o tempo: não basta acertar as respostas, é crucial não errar o timming. A resposta adequada ontem poderá ser inútil amanhã – ou hoje”, adverte em entrevista à Carta Maior.
O professor da Unicamp trata sumariamente a ofensiva ortodoxa que já reúne uma fornida trincheira na qual se aboletam impressos quatrocentões, agrupamentos tucanos e demos e que, agora, acaba de receber a chancela do inefável FMI. Das cinzas de uma falência ideológica e financeira, depois de quebrar países urbi et orbi, e a si próprio, por gestão equivocada, o Fundo Monetário, que não encontra mais audiência nem no gabinete de Hank Paulson, o mais novo keynesiano do quarteirão, não hesita em lançar advertências ao governo brasileiro… contra a expansão do “gasto primário”.
“Cortar investimento público em meio a uma crise como essa é reeditar a mesma receita que jogou a Alemanha ao nazismo, em 1933”, qualifica Belluzzo, recordando a obsequiosa gestão pró-mercados do chanceler Brünning, na instável República de Weimar dos anos 20/30. Chefe de gabinete da coalizão católica/social democrata, sob a Presidência do Marechal Von Hinderburg, Brünning tangeu então a economia e o povo alemão rumo a um suicídio histórico perpetrado com doses letais de cortes de gastos públicos; erosão das reservas externas; fuga de capitais e conseqüente desemprego galopante.
Em seu livro “Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX” (vencedor do prêmio Juca Pato- 2004) o professor da Unicamp lembra que a contrapartida desse fiasco estratégico foi o avanço fulminante do até então obscuro Partido Nacional Socialista. Nas eleições de setembro de 1930 ele saltou de 12 para 104 cadeiras no parlamento. Hjalmrar Schacht, um banqueiro nacionalista (havia disso no século XX), que depois seria nomeado presidente do Reichsbank, o BC de Hitler, observou então que “a política passiva” do gabinete Brünning, de imobilização pró-cíclica do Estado, endossando o mergulho da economia, não poderia jamais resolver o problema de uma sociedade em meio a uma hecatombe mundial.
De fato não resolveu. Refém de uma prisão ideológica semelhante àquela com a qual o “não intervencionismo nativo” quer capturar e imobilizar o governo Lula nos dias de hoje, a Alemanha protagonizou o pior flagelo da Depressão dos anos 30 em todo o mundo. Sem controle cambial, suas reservas foram exauridas por capitais em fuga. O marco sofreu um esfarelamento que redundou na hiperinflação e na derrocada da República de Weimar – que não encontraria, recorde-se, da parte de comunistas e social-democratas, clareza política para erguer uma barreira à ascensão nazista. O gabinete Brünning –seguido depois pelos de Papen e Schleicher– delegou os destinos da sociedade ao salve-se quem puder dos mercados. Dois anos e seis milhões de desempregados depois, zero de reservas e inflação galopante, Hitler chegaria ao poder.
A seguir trechos da conversa de Luiz Gonzaga Belluzzo com Carta Maior em que o economista aponta três medidas para o Brasil enfrentar a crise: administração discricionária das reservas cambiais; estatização do crédito direcionado à produção e expansão do investimento público:
É preciso defender as reservas do país com uma administração centralizada.
“Os capitais estão se bandeando em todo o mundo. Não é um problema brasileiro. Está ocorrendo a mesma coisa da Turquia à Lituânia; do Burundi ao Azerbaijão. É um movimento de fuga para a moeda reserva e para títulos do governo norte-americano. Uma diáspora em busca de segurança e liquidez. A Rússia já decretou o controle cambial; a China, que nunca abriu mão dele, aprofundou a defesa das suas reservas. E o Brasil? O governo deve agir também de forma serena para preservar nossas reservas. Trata-se de adotar uma administração discricionária dos dólares penosamente acumulados nestes anos. Insisto, não é um problema do Brasil. O país está bem, apresenta indicadores mais saudáveis do que a maioria dos outros, inclusive de alguns entre os ricos. Mas é necessário entender que o cenário mudou radicalmente. Acabou o mundo que existiu até meados de setembro de 2008: os investidores querem liquidez e zero de risco. Para eles, hoje, isso significa proteger-se na moeda reserva que é o dólar: vão buscá-la onde estiver. Nas nossas reservas, inclusive. A menos que fixemos barreiras contra isso”
A ilusão dos fundamentos e do equilíbrio via liberdade da conta de capitais
“Diante de uma manada em movimento não adianta acenar o boletim de boas notas nos fundamentos. A manada, como sabem os vaqueiros experimentados, após o estouro, não obedece a qualquer tipo de coerência. A crise é o estouro. Estamos diante de uma dinâmica regida por impulsos irrefletidos, portando, infundamentados. Esqueçam a blindagem dos fundamentos. A lógica agora é a falta de fundamentos – não do Brasil, da dinâmica mundial. O Brasil fez tudo direitinho; tem um superávit robusto, inclusive. Mas se não agir de forma defensiva receberá da manada o mesmo tratamento de uma economia com déficit público de 10%. O governo não pode dar ouvido aos que insistem em lutar a guerra do dia anterior, pior, com armas obsoletas. Quem acha que o equilíbrio das contas correntes do pais pode ser delegado ao livre fluxo de capitais não entendeu ainda o que se passa. Quando vier a entender talvez seja tarde demais. A idéia liberal de que você pode gastar mais do que exporta, por exemplo, porque o ingresso de investimentos externos fechará as contas do país pode até ser verdade. Mas eu pergunto: em que circunstâncias? Lamento informar que as circunstâncias mudaram. Vamos esperar o equilíbrio prometido até o dólar atingir qual cotação? Ao custo de bilhões em sangria nas reservas, esse é o risco. E mesmo assim, sem estabilizar o câmbio.
Expandir o crédito e investimentos públicos que maximizem dinâmicas produtivas
O governo brasileiro não pode sacrificar o PAC em nome de uma religião de superávit primário. Economia não é metafísica (se fosse o banco do Vaticano não acumularia prejuízos…). O PAC não apenas deve ser preservado: o governo deve expandir o gasto em investimentos que maximizem efeitos multiplicadores para trás e para frente, na forma de emprego, encomendas às cadeia produtivas e expansão de uso de capacidade instalada. Ninguém está falando aqui em gasto com a máquina pública. Não é gasto de custeio. É para injetar recursos adicionais em projetos e áreas que rapidamente possam irradiar seus efeitos em todo sistema. Trata-se de reverter a dinâmica da desaceleração em curso na economia.
Numa hora dessas não podemos gerar emprego para os chineses
As ações devem ser coordenadas; uma resposta requer a complementação de outra, ou não funciona. Se vamos investir recursos públicos para gerar empregos e renda aqui dentro, não podemos deixar esse esforço escapar para o exterior. Daí por que é indispensável uma administração firme das reservas. Caso contrário, o dinheiro público aportado aqui vai abrir vagas no mercado de trabalho chinês, via importações que podem perfeitamente ser atendidas pela nossa cadeia industrial. Dentro dessa mesma lógica, a política de exportações não pode ignorar o mundo da crise. A China tentará furiosamente preservar seus empregos e o PIB invadindo todos os mercados com seus produtos. Eles já criaram inclusive um subsídio para azeitar ainda mais a engrenagem comercial do país. A partir de agora os exportadores chineses contam com um prêmio de 13% sobre a receita obtida no exterior. É algo semelhante ao nosso crédito prêmio para exportação. O que não pode acontecer numa hora dessas – e está acontecendo – é a nossa burocracia falar em extinguir o crédito-prêmio aos exportadores brasileiros. Em nome de quê? Corte de gastos público? De novo cabe informar, o mundo econômico está conflagrado. O governo deve esquivar-se daqueles que ostentavam certezas graníticas nas virtudes da auto-regulação dos mercados. Suas lições maciças, esféricas eu diria, geraram, entre outros rebentos, a crise monstruosa que hoje nos ameaça.