O expurgo na Universidade de São Paulo
A revolução de 64, alterando radicalmente a constelação política da sociedade, repercutiu imediatamente sobre a estrutura de poder dentro da Universidade. O Reitor Gama e Silva, que havia conspirado contra o regime anterior e se identificava com o novo sistema, desenvolveu imediatamente uma intensa atuação política a nível federal e estadual no sentido de ser incorporado ao novo governo. Suas ligações com o movimento eram tão estreitas que, antes da definição do novo ministério, ocupou provisoriamente, por alguns dias, as pastas da Justiça e da Educação. A partir desse momento, pode-se dizer que sua ação na Universidade passou a ser instrumento para realização de suas ambições políticas. Utilizando as ligações que possuía com o Governo revolucionário, isto é, estribado em fontes de poder alheias à Universidade, o Reitor Gama e Silva pôde dispensar o apoio e livrar-se do controle do grupo que o elegera, atuando na Reitoria como porta-voz da revolução. Mais ainda, certamente não por coincidência, o mecanismo repressivo que se abate sobre a Universidade tem como alvo favorito o grupo renovador da Universidade e obtém, como resultado, seu esfacelamento.
Em primeiro lugar é necessário apontar que a repressão policial que se dirige contra a Universidade imediatamente após trinta e um de março não encontrou nenhuma resistência por parte da Reitoria, mas se fez com a sua conivência. A forma violenta pela qual foram realizadas prisões de professores e alunos, a invasão e a depredação da Faculdade de Filosofia configuravam, claramente, a intenção de intimidar antes que investigar e não sofreram o mais leve reparo por parte do Reitor. Deste modo, a ação repressiva externa pôde agir livremente na Universidade e criar uma atmosfera de temor generalizado provocada por atos de violência e pela ameaça permanente de prisões e detenções arbitrárias.
"Caça às bruxas"
Infelizmente, não se trata apenas de denunciar uma omissão ou conivência da Reitoria ante uma violência externa que se dirige contra a Universidade. Muito mais grave, do ponto de vista da integridade da instituição, foi o estabelecimento, pelo Reitor, de um mecanismo interno de "caça às bruxas", reunindo, na própria Universidade, um grupo que buscava, pela ligação com os órgãos de segurança, realizar um expurgo pautado sobre critérios pessoais de "pureza revolucionária" e feito sob medida para permitir aos setores conservadores o monopólio do poder na USP.
Com efeito, o Reitor Gama e Silva nomeou uma comissão especial para investigar atividades "subversivas" na USP, formada pelos professores: Moacyr Amaral dos Santos, da Faculdade de Direito, Jerônimo Geraldo de Campos Freire, da Faculdade de Medicina e Theodureto I. De Arruda Souto, da Escola Politécnica. Esses representantes das "grandes escolas" eram todos elementos de confiança do Reitor.
De tal modo repugnante foi a constituição dessa comissão, e contrária à tradição universitária, que sua existência foi mantida em segredo e dela não foi informado o Conselho Universitário. Tratando-se de uma comissão secreta, coloca-se em questão, imediatamente, o modo pelo qual realizou suas investigações. A manutenção do segredo implicou em ouvir, de preferência, testemunhas coniventes com o processo espúrio pelo qual a comissão atuava. Pode-se com segurança afirmar que não ouviu nenhum dos professores que terminou por acusar.
Mesmo assim, sua existência acabou por transpirar e foi denunciada na imprensa. Em 26 de julho de 1964, a "Folha de São Paulo" num artigo intitulado "Dedo Duro na USP", tornava pública a suspeita.
A lógica do expurgo
Instaura-se, assim, o processo, absolutamente inédito na história da Universidade, do terrorismo cultural interno promovido pelo próprio Reitor.
Esse processo obedecia à lógica própria de todo expurgo. Em primeiro lugar, o que está basicamente em questão é a existência de idéias. Trata-se de afastar e punir portadores de idéias consideradas marxistas ou subversivas, duas qualificações notoriamente elásticas e imprecisas, o que torna o julgamento obrigatoriamente subjetivo. O próprio de todo expurgo é o vício fundante de envolver necessariamente no processo as referências pessoais, os ódios e antipatias, a parcialidade dos acusadores. Por isso mesmo é que o expurgo possui uma afinidade estrutural fundamental com o fascismo. Dependendo de denúncia anônima e da calúnia, mobiliza a mesquinhez, o espírito vingativo e abre espaço para todo tipo de oportunismo. Por sua própria natureza, o processo do expurgo constitui instrumento político que favorece a ascensão às posições de mando, de um lado, dos espíritos mais tacanhos e intolerantes, de outro, de oportunistas, com o que não queremos dizer, obviamente, que as duas coisas sejam excludentes.
Os alvos da denúncia
Uma análise, mesmo superficial, dos alvos da denúncia revelam claramente o alcance desastroso desse processo ignóbil.
Na Faculdade de Filosofia é atingido, em primeiro lugar, Mário Schenberg, um dos maiores físicos brasileiros, que sempre se declarou abertamente comunista, mas do qual nunca se poderia dizer, obviamente, que lecionasse uma Mecânica Racional e Celeste de inspiração marxista e, se existisse tal coisa, seria justo que a lecionasse. Segue-se um grupo de três professores, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Nuno Fidelino de Figueiredo; os dois primeiros são os sociólogos mais notáveis de suas respectivas gerações e, o terceiro, um economista do qual sequer se poderia dizer que fosse de esquerda. Une-os o fato de pertencerem todos ao CESIT – Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho, uma experiência inovadora no campo das ciências sociais no sentido de pretender fundar, na Universidade, um centro dinâmico de pesquisa sociológica voltado para a realidade brasileira. E, finalmente, João Cruz Costa, professor de Filosofia, cujo passado de lutas contra o integralismo e o getulismo, assim como sua posição contrária à influência do catolicismo tradicional na orientação dos estudos filosóficos no Brasil, haviam-lhe granjeado uma sólida hostilidade dos setores mais conservadores da intelectualidade paulista. É acusado também um líder dos estudantes, Fuad Daher Saad, mais tarde processado e absolvido e que hoje, apesar da insistência do Instituto de Física, tem seu contrato inexplicavelmente retido na Reitoria da USP.
Na Faculdade de Medicina, que é a mais atingida, são acusados diversos grupos de professores: o da Parasitologia, congregado em torno de Samuel Pessoa e que compreende, além dele, Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Erney P. de Camargo; o de Bioquímica, formado por Isaias Raw e Júlio Puddles; dois professores que haviam se desentendido com a cadeira de Histologia, Michel Rabinovitch e Thomas Maack; o chefe do setor de Genética Humana, Pedro Henrique Saldanha; um assistente de Fisiologia, Abram B. Fajer; e todo um conjunto de médicos dos setores clínicos, a saber, Roland Vera Saldanha, Reynaldo Chiaverini, José Barros Magaldi, Israel Nussenzveig, Antonio Branco Lefèvre e José Maria Taques Bittencourt, além de dois estagiários, Humberto Maffei e Bernardo Vargafitg. Fora do quadro docente, as acusações incluem um funcionário, Arnóbio Washington, uma enfermeira, Feiga Langfeldt e dois estudantes, Eunofre Marques e Eduardo Manzano. No conjunto, pode-se dizer que as acusações incidem justamente sobre professores que, na Faculdade de Medicina, defendiam a pesquisa básica e a preocupação com os problemas de Saúde Pública e se opunham àqueles que viam na cátedra apenas o aval de um consultório rendoso. Pode-se dizer também que a lista consegue reunir uma boa parte dos médicos e professores de maior prestígio intelectual no campo da Medicina.
Na Faculdade de Arquitetura, além de um estudante, são acusados dois professores, João Villanova Artigas e Abelardo Riedy de Souza. Contra o primeiro, reconhecido como um dos grandes arquitetos brasileiros, pode-se lhe imputar a responsabilidade pela orientação inovadora que presidiu a fundação da FAU (desmembrada da Escola Politécnica) e que se caracterizava pelo abandono da concepção extremamente tecnicista até então dominante no ensino da Arquitetura, enfatizando o conteúdo artístico e social do currículo. A mesma visão do que deveria ser uma Faculdade de Arquitetura e o mesmo esforço para transformá-la em realidade caracterizam igualmente o segundo acusado.
Na Faculdade de Ciências Econômicas, são atingidos três professores: Mário Wagner, Paulo Singer e Lenina Pomeranz. Todos eles faziam parte do antigo Instituto de Administração, também um órgão criado com a preocupação de desenvolver a pesquisa na área sócio-econômica.
Da Faculdade de Direito, além de seis estudantes, uma figura é atacada: Caio Prado Júnior, livre-docente, que não era sequer membro regular da escola. Neste caso, não cabe dúvida de que sua importância no desenvolvimento da História Econômica brasileira e o significado contestador de sua obra o tornaram personagem incômodo aos setores reacionários daquela Faculdade.
Em Ribeirão Preto, a comissão denuncia dois instrutores: Luiz Carlos Raya, que havia sido líder estudantil e Clarismundo de Souza Filho, assistente de Radiologia, tendo o primeiro sido preso posteriormente. Na POLI é acusado Paulo Guimarães da Fonseca, catedrático de Química Tecnológica Industrial e Marco Antonio Mastrobuono.
O significado das acusações
A análise do significado dos nomes que compõem esta lista é muito importante porque engloba boa parte daqueles que foram posteriormente acusados nos inquéritos policial-militares, processados e inocentados. Mas, apesar disso, demitidos ou aposentados. Dessa análise fica patente que as acusações não englobam todos os professores considerados, na USP, como sendo "de esquerda". Inclui, por outro lado, muitos que nunca o foram. Mas certamente, consegue atingir todos os grupos que poderiam ser considerados como os mais inovadores e aqueles que apoiavam a orientação da gestão Ulhôa Cintra. No conjunto, a denúncia procura destruir a influência intelectual dos professores e cientistas mais brilhantes da Universidade (afirmação esta que pode ser facilmente comprovada pela simples leitura do "curriculum vitae" de cada um deles).
Um outro comentário se faz ainda necessário: a especial predileção do processo repressivo pela Faculdade de Medicina. Nesta, como em todas as ocasiões posteriores (IPMs, processos, demissões, aposentadorias), essa escola é a mais duramente atingida. É difícil acreditar que a Faculdade de Medicina abrigasse um número muito maior de "subversivos", que as demais. Por isso somos levados a acreditar que a explicação reside no fato de se tratar da escola onde se concentrava o núcleo que apoiou a eleição de Ulhôa Cintra e inspirou a política de renovação universitária que marcou sua gestão. É justamente nessa Faculdade onde o processo de polarização política interna se manifestou com maior intensidade, opondo ferozmente renovadores e tradicionalistas.
As acusações (*contidas no relatório final da comissão) não eram destinadas ao Conselho Universitário, nem se buscara, com elas, a constituição de um processo administrativo. Todo o relatório da comissão foi encaminhado diretamente aos órgãos de segurança e sua própria existência só foi confirmada quando, através da indiscrição (ou, talvez, indignação) de algum funcionário federal, o Correio da Manhã obteve uma cópia do documento e publicou as suas conclusões.
Em todo esse lamentável episódio, quando poucos podiam falar e os acusados não tinham como se defender, há que ressalvar a atitude de Paulo Duarte que, logo após as primeiras denúncias pela imprensa, levanta-se no Conselho Universitário para, mais uma vez, denunciar o terrorismo cultural na USP.
* a expressão que aparece entre parênteses foi inserta por Zilah Wendel Abramo, porque essa explicação, necessária ao entendimento do texto, está num parágrafo do documento que não foi transcrito neste resumo.