29 anos: a medalha do olvido?
A reconstrução democrática brasileira deve a si mesma esse exercício de “compreender” a que se refere Hannah Arendt, como condição para consolidar o país como nação civilizada. E incorporar os anos da ditadura militar, os anos de chumbo com as perseguições, a brutalidade, o arbítrio, a delação, a censura à imprensa e às artes, o medo, a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos, o exílio, o rosário de horrores perpetrados pelo estado ditatorial à exata dimensão histórica que lhe cabe: uma realidade incontestável e irrecusável que continuará a deitar sua sombra sobre a face futura do Brasil, até que seja resgatada.
Sobrevivente. Não encontro outra palavra para definir a geração de militantes – neste momento encarnada pelos Ministros Tarso Genro e Paulo Vannuchi – que lutou contra a tirania e passadas quase três décadas se põe diante da sociedade brasileira com testemunha contra essa condenação histórica que nos persegue: o esquecimento.
Quarenta anos depois dos fatos registrados por Jorge Semprún em “A Grande Viagem” denunciando a violência, a deportação e o encerramento no campo de concentração de Buchenwald, publiquei o poema “Os Esperados” escrito durante os anos de prisão (No 10º. Batalhão de Caçadores, em Goiânia, Pelotão de Investigações Criminais – PIC, no Setor Militar Urbano, em Brasília, OBAN/DOI-CODI do 2º. Exército, DOPS, Presídio Tiradentes, Presídio do Hipódromo, Casa de Detenção e Penitenciária do Estado de S. Paulo, no Complexo Carandiru e Presídio Romão Gomes, no Barro Branco, em S. Paulo) com a dedicatória: “Este poema é dedicado a todas as mães, filhas, esposas, órfãos, que procuram, sem resposta a vida ou a morte dos seus”. Aqui, noutras latitudes, a tirania produziu tragédias semelhantes às do fascismo e as prolongou para atormentar o sono das gerações seguintes.
De hoje a um ano o Brasil, espero, celebrará os 30 anos da Lei da Anistia encarando nesse espelho que alguns teimam em manter enterrado, a face daqueles dias monstruosos. Dirijo-me aos militantes do Partido dos Trabalhadores e àqueles que ao longo de quase três décadas lhe deram sustentação e acreditaram nele como um projeto de transformação da sociedade brasileira. Permito-me esse breve relato como testemunha de um tempo que precedeu o poderoso impulso das lutas que nos deram raiz. Não se pode compreender o nascimento do PT sem as lutas que de algum modo o anunciaram, sem a luta pela “Anistia Ampla Geral e Irrestrita”.
Hoje não se permitirá o olvido. Hoje, o esquecimento será considerado um delito de lesa-humanidade. Por isso permitam-me os leitores lembrar. Há um dizer antigo: “se calarmos, as pedras gritarão!”.
“Junho de 1972. Fui interrogado inicialmente numa dependência da Polícia Federal na Avenida Goiás, a duzentos passos do Palácio das Esmeraldas, sede do Governo do Estado. Ali começou a pancadaria. Dali, fui conduzido para o 10º. Batalhão de Caçadores, hoje, 42 BIM. Enfiaram um capuz preto na minha cabeça, como era habitual, daqueles que contam com um elástico preso ao pescoço. Fui interrogado durante toda a tarde e a noite que seguiu. Com duas equipes de torturadores se revezando. O corpo já era uma chaga, particularmente as articulações, tornozelos, joelhos, cotovelos, os ombros, a região dos rins, as pontas dos dedos sangravam, a boca sangrava. Chegara a uma situação limite. “Por que vocês não me matam?” Disse. Nunca se deve dizer isso. Porque então os torturadores constatam que você chegou… ao limite. E redobraram a violência. As técnicas eram as conhecidas: pau-de-arara, afogamento, aquela pancadaria sem perguntas que precede os interrogatórios, choques elétricos acompanhando tudo isso, muitas vezes jogavam água no corpo… faziam uma espiral com fio descascado envolvendo o pênis e rodavam a manivela do dínamo. Prendiam uns alfinetes entre os dentes e fixavam ali o “jacarezinho”. Quando rodavam a manivela a sensação que se têm é de que está mastigando vidro. A boca sangra. Depois de tudo vem uma sede atroz. Não se imagine, contudo, que aquilo era o Inferno de Dante. Toda a cena era dirigida por um espírito cultivado, um Capitão do Exército que ouvia a Sinfonia No. 2 em Ré Maior e Melissande de Jan Sibelius, talvez para encobrir o grito dos torturados, talvez simplesmente para conciliar o sono quando chegasse em casa para o merecido repouso. Durante os interrogatórios quando um prisioneiro se recusava a responder alguma pergunta, ele costumava repetir em voz baixa para o subordinado que rodava a manivela da máquina de choques elétricos: “Mais alto. Esse só entende em Dó Maior…”
Que nome dará a fatos como esses, um país que pretende se afirmar como democrático e republicano? É aceitável que uma sociedade contemporânea defina tais monstruosidades como “crimes políticos”? Naqueles dias esses senhores, hoje envelhecidos e com ar respeitável, sem se despir dos galões de outrora afirmam que travaram uma guerra. Em geral o campo de batalha era uma sala revestida de placas isolantes, onde esses bravos combatentes exercitavam sua estratégia e sua valentia contra homens e mulheres, algemados, encapuzados, frequentemente suspensos no pau-de-arara. Naqueles dias, alguns deles foram condecorados, como o Delegado Sérgio Paranhos Fleury, com a Medalha do Pacificador. A pergunta que fazemos é: a democracia que estamos construindo no Brasil vai agraciar os torturadores com a medalha do esquecimento?