Entrevista: Emir Sader – Construir uma nova hegemonia é desafio para América Latina
Por Raúl Dellatorre – Jornal Página 12
BUENOS AIRES – O processo político da última década na América Latina deu como resultado governos de um sinal distinto do neoliberalismo. Alguns decididamente opostos, outros com “traços contraditórios”, segundo a expressão empregada por Emir Sader, analista político brasileiro e diretor executivo do Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso). Apesar das coincidências que se observam em muitos sentidos, no plano econômico os países da região parecem não terminar de romper o molde que a enquadra nem de afastar de cima de si as sombras de seu passado. Sobre estes e outros temas, Emir Sader conversou com o Página 12.
O que está faltando aos países da região para integrar-se e avançar de forma mais acelerada rumo a um processo de transformação?
Emir Sader: Um projeto estratégico de futuro, uma compreensão mais clara do que é a América Latina hoje, da natureza de seus regimes econômicos e sociais em função do papel do Estado. E pensar que futuro pode haver para além do neoliberalismo.
Na sua avaliação, em que aspectos se avançou?
Emir Sader: Alguns ladrilhos dessa construção já existem, seja como realidades ou como menções no discurso. O Banco do Sul, a idéia de uma moeda única, o Banco Central único, tudo o que significaria uma política econômica única, são elementos importantes. Mas, ao mesmo tempo, é preciso discutir que modelo de sociedade queremos e isso significa pronunciar-se a favor de uma sociedade desmercantilizada. Discutir que tipo de Estado queremos, propondo um Estado que não esteja dominado pela financeirização. Definir que tipo de cultura, que identidade e diversidade cultural devemos ter. Dizer que tipo de espaço alternativo criamos, por fora da hegemonia unipolar norte-americana.
O que implica tudo isso?
Emir Sader: Esse processo implica não somente integração econômica e social, mas também tecnológica, cultural, educacional, midiática e de estruturas políticas. Existe um esboço de parlamento latinoamericano, mas ainda estamos muito longe de ter estruturas supra-nacionais de caráter latinoamericano ou sul-americano. O tema, poderíamos dizer, agora é político, é discutir futuras relações de poder. Que tipo de sociedade, que nova hegemonia queremos construir.
Aparentemente, alcançar esses objetivos exigiria um salto de consciência importante das sociedades e de sua classe política, uma mudança em relação ao paradigma neoliberal da década anterior. Neste sentido, que papel estão desempenhando os intelectuais da América Latina, sejam eles economistas ou cientistas sociais?
Temos uma trajetória extraordinária do pensamento crítico latinoamericano. A grande virada foi a crítica que a Cepal fez à teoria do comércio internacional, que deu a volta ao mundo, e pensou o intercâmbio a partir da periferia e as formas de desenvolvimento desigual, de intercâmbio desigual. Foi pensar na acumulação a partir da periferia, com todas as debilidades deste processo. A grande novidade histórica da segunda metade do século passado, em termos econômicos, foi a industrialização da periferia. Até aí, esse era um tema monopolizado pelo centro. A periferia era agricultura, mineração, pecuária e nada mais.
Quais foram os efeitos dessa virada?
Emir Sader: Essa mudança no pensamento econômico elevou o nível de identidade nacional, colocou a relação com as potências imperiais em um nível superior. O nacionalismo foi o grande fenômeno do século passado na América Latina. Com tons anti-imperialistas maiores ou menores, segundo o caso. Mas foi concebido pela intelectualidade, E, em anos recentes, várias teorias elaboradas nessa época ajudaram a pensar a ação política dos novos governos na região. Mas não em todos os casos.
Poderia dar exemplos dos dois casos?
Emir Sader: Na Bolívia, deu-se por meio de um grupo pequeno de intelectuais, chamado “La Comuna” (do qual surge o atual vice-presidente, Álvaro García Linera). Um núcleo de acadêmicos articulou-se fora da Universidade e ajudou o movimento indígena a repensar sua identidade, sua trajetória. A fazer uma auto-crítica da esquerda boliviana, de seu passado. No Equador, também há setores intelectuais que estão articulados entre si e com o processo político. Na Venezuela, em troca, dá-se um processo de mudança com uma ausência enorme de uma intelectualidade que ajude a pensar esse processo. E isso é grave.
E como você classificaria os casos da Argentina e do Brasil?
Emir Sader: São dois países com uma trajetória intelectual muito maior do que a dos quecitei anteriormente, com muito mais raízes no pensamento crítico. No entanto, hoje mostram uma ausência relativa desta intelectualidade nos temas políticos, ideológicos, culturais e econômicos, uma ausência muito grave.
Venezuela, Brasil, Argentina. Está falando dos países economicamente mais fortes e relativamente mais desenvolvidos e são os que apresentariam maiores debilidades no plano intelectual para promover uma mudança.
Emir Sader: Minha conclusão é que o conjunto da intelectualidade, não apenas seu pensamento crítico, foi pega de surpresa pelo atual período histórico. Aparece como a voz de menor resistência aos sistemas de dominação, ficando muitas vezes atrás dos movimentos sociais. É preciso destacar que a América Latina foi território de várias teorias avançadas do pensamento crítico em décadas anteriores, mas hoje não encontramos a expressão de muitas dessas teorias no movimento político latinoamericano. Não estão ajudando a pensar o processo contemporâneo.
Qual foi o comportamento desses pensadores?
Emir Sader: Pode-se perceber que muitos intelectuais do pensamento crítico de outra época terminaram aderindo ao neoliberalismo, porque viam essa tendência como algo inevitável. E quando se vêem as coisas assim, isso marca o que será feito. Fernando Henrique Cardoso foi um brilhante intelectual de esquerda nos anos 60, mas seu governo nos 90 não foi distinto do de Menem. E eu não diria, tomando as coisas em seu conjunto, que é uma postura de direita, mas sim um conformismo histórico. Outra parte da intelectualidade ficou refugiada em posições que eu chamaria de ultra-esquerda, posições que estão descoladas do processo real. A ultra-esquerda tem uma capacidade crítica enorme, mas nunca conseguiu construir processos de transformação revolucionária.
Neste debate sobre os governos e as políticas na América Latina, muitos pensadores e dirigentes de esquerda seguem julgando como governos de direita a aqueles que não produziram uma ruptura com o neoliberalismo.
Emir Sader: Há uma postura que tende a tomar determinados aspectos da realidade e absolutizá-los, perdendo assim a objetividade. Hoje a divisão fundamental não é entre uma esquerda boa e uma esquerda má. Essa é uma postura de direita que divide a esquerda. A linha é entre os que estão a favor do projeto de integração regional e os que estão a favor de tratados bilaterais de comércio com os Estados Unidos. No marco daqueles que defendem a integração regional, há alguns que avançaram rumo à ruptura do modelo, como Equador, Bolívia e Venezuela. Outros, como Brasil e Argentina, conseguiram flexibilizar o modelo, e aí está seu mérito. Tudo o que é feito para a manutenção do modelo anterior no Brasil e na Argentina é negativo. Mas a política externa é positiva, a política social é positiva. E isso vale.
Não está justificando-os?
Emir Sader: Não, mas é preciso dar-se conta que ainda que tenham ocorrido avanços importantes na América Latina, vivemos em um mundo de hegemonia neoliberal: hegemonia econômica, de valores, na relação de força social. Não se pode esquecer que o neoliberalismo colocou todo o movimento popular na defensiva. A luta contra o modelo, por conseguir por em contradição seus paradigmas, deu-se contra a direita e desde posições anti-neoliberais que não eram de esquerda. Conseguimos ter governos com traços contraditórios e isso foi o resultado da luta, de uma luta exitosa. A alternativa era ter governos de direita, não de esquerda.
O predomínio e a crise do capitalismo: “Desmercantilizar a economia”
Emir Sader caracteriza o período histórico vivido na segunda metade do século XX como “a passagem de um mundo bipolar para outro unipolar”, como uma hegemonia absoluta do capitalismo e dos Estados Unidos como potência dominante. Além disso, destaca a passagem, dentro do capitalismo, do modelo keynesiano para o neoliberal. No entanto, apesar deste “triunfo espetacular” do capitalismo, Sader sustenta que este processo acaba não garantindo “nem um ciclo tranqüilo para a hegemonia dos Estados Unidos nem um crescimento sustentável”. Segundo o sociólogo e historiador brasileiro, a hegemonia capitalista deu-se através de “uma vitória extraordinária dos Estados Unidos nos planos político, militar e ideológico”. “A hegemonia econômica e cultural é tal que o modo de vida capitalista se impõe hoje sem disputa no mundo. Não há outro modelo comparável. Até na China, as cidades se transformam e desenvolvem como espelho das cidades estadunidenses. Os pobres têm expectativas de consumo de acordo com o estilo norte-americano”.
No entanto, o capitalismo mostra seus limites. A crise atual da economia norte-americana, sustenta Sader, poderia ser o início de “um período longo de instabilidade com turbulências”. Os obstáculos ou contradições do mundo unipolar têm seu reflexo na excessiva concentração de renda, na devastação ecológica e na guerra, adverte. “O capital se deslocou fortemente rumo à atividade especulativa financeira. Cerca de 90% dos movimentos de capital no mundo hoje são mudanças de papéis de uma mão para outra, não são o resultado de atividades comerciais, assinala Sader. Mas enquanto isso ocorre nos centros financeiros mundiais, no coração do sistema capitalista, na periferia ele descreve uma dinâmica diferente.
“Nas décadas de 80 e 90, a América Latina foi o laboratório mais avançado do neoliberalismo. O arco político da região aderiu em conjunto ao modelo e foi o primeiro a explicitá-lo. México, Brasil e Argentina foram as expressões mais claras disso”. Mas esse modelo entrou em crise, gerando fortes contradições.
Hoje, diz ainda Sader, a América Latina é “a única região com projetos de integração relativamente independentes dos Estados Unidos, condição necessária mas não suficiente para a ruptura com o modelo neoliberal”. Diante da crise de hegemonia, os países do subcontinente reagiram de diversas formas, de acordo com sua capacidade de reconstruir as forças para uma disputa de poder. Bolívia e Equador, segundo Sader, são exemplos de sublevação popular com saída eleitoral que permitiu refundar o Estado. Destacou que estes países “puderam recompor sua identidade porque tiveram menos penetração cultural do neoliberalismo, o modelo não deitou raízes”. Um fenômeno diferente do ocorrido no México, Chile e Argentina, onde se enraizou.
Sader destacou como modelo de integração independente a proposta da ALBA (Alternativa Bolivariana para os povos da América), impulsionada pela Venezuela. “Democratizar a economia é desmercantilizar”, defende o sociólogo brasileiro, como bandeira na luta anti-hegemônica. Ainda que não deixe de reconhecer a distância existente entre o sistema capitalista atual e um modelo que possa substituí-lo. “Existe um abismo entre o esgotamento do modelo atual e a aparição de outro ou outros. O panorama é contraditório. Mas o mundo novo é um modelo ainda não elaborado”, postulou.