Os intelectuais e a criação do PT
Publicado online em homenagem aos 90 anos de Antonio Candido.
São numerosos, como é justo, os estudos dedicados ao papel das lideranças sindicais na criação do PT. Há também diversas teses e depoimentos acerca da contribuição da Igreja progressista e das organizações clandestinas de esquerda. Mas não conheço nenhum trabalho relevante sobre o aporte dos intelectuais e artistas à construção do partido.
Trata-se, a meu juízo, de uma lacuna importante, pois os intelectuais tiveram naquele processo um papel muito mais destacado do que se imagina e, sobretudo, o cumpriram de um modo fortemente inovador no que diz respeito à tradição da esquerda.
Os intelectuais que participaram da fundação do PT, ou que nele ingressaram em seus primórdios, já eram quase todos abertamente refratários ao dogmatismo da esquerda tradicional. Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Freire, Marilena Chauí, Antonio Candido, Lélia Abramo, Hélio Pellegrino, entre muitos outros, mais ou menos notórios, em diferentes regiões do país, eram o que se poderia chamar de “socialistas independentes”, tanto pela autonomia de pensamento quanto de conduta política. Assumidamente esquerdistas, radicais, eram ao mesmo tempo – e o eram, em alguns casos, havia décadas – críticos severos da degeneração teórica e prática dos partidos autoproclamados revolucionários.
Nada mais distante desses intelectuais que a sacralização do partido político imperante na esquerda ortodoxa. Nada mais alheio a eles que a apologia do partido em si, legatário e portador da “Ciência da História” e do saber revolucionário, intérprete oficial das agruras e desejos dos oprimidos. Nada mais oposto às suas convicções que um aparato partidário profissional e monolítico, acima dos sentimentos e movimentos populares, com a pretensão de governar toda e qualquer iniciativa de mudança social.
Na verdade, esses intelectuais possuíam, sem prejuízo da paixão transformadora, uma visão laica do partido. Não o encaravam como “vanguarda iluminada” (a expressão é de Antonio Candido, contra as concepções stalinistas, em 1948) e sim como uma organização popular entre outras, de inegável importância na luta política, mas sem possuir nenhuma garantia prévia, doutrinária ou histórica, do acerto de sua atuação e da prevalência de sua verdade, devendo legitimar-se pelo apoio social aos seus projetos. O PT não era o partido justo de hoje que vinha substituir os partidos justos do passado – mas um partido necessário, entre outros possíveis, para que importantes segmentos da sociedade brasileira não continuassem excluídos da democracia ativa e dos direitos de cidadania.
Muitos desses intelectuais e artistas aproximaram-se do PT, sentiram-se atraídos pela sua proposta, depois de expressarem em suas respectivas obras uma compreensão ao mesmo tempo radical e heterodoxa da realidade brasileira e de seu potencial libertário.
Eles haviam, cada um à sua maneira, participado intensamente do combate às ideologias conservadoras e antipopulares, ao chamado “pensamento reacionário”, contribuindo para desmistificar o autoritarismo da vida brasileira e para afirmar valores políticos e morais alternativos. Haviam superado em suas obras o marxismo mecanicista ainda dominante na esquerda, incapaz de analisar e compreender as contradições reais da nossa sociedade, em especial as emergentes. Haviam produzido esplêndidas “descrições críticas” da civilização brasileira e de sua radicalidade estrutural, assentando as bases, mesmo sem pretendê-lo especificamente, para um novo olhar socialista sobre o Brasil. Sérgio Buarque escrevendo uma história dialética não-economicista; Candido surpreendendo no âmago da criação literária a sua dimensão civil; Freire criando uma pedagogia da autotranscendência coletiva; Marilena escrutinando os fundamentos da democracia radical; Pellegrino polemizando com deus e o diabo sobre o mistério do amor…
Ao contrário do que se afirma, acredito que a lucidez desses como de outros intelectuais colaborou de modo decisivo para que o PT adquirisse a singular fisiognomia ideológica e organizativa que faz dele um caso provavelmente único na história partidária brasileira, condição reconhecida até pelos seus maiores adversários.
E não se trata de terem os intelectuais assumido este ou aquele posto de poder no partido (embora alguns fossem logo respeitados dirigentes). Nem tampouco de terem participado diretamente da elaboração dos nossos documentos constitutivos (embora alguns tenham sido co-redatores inclusive do Manifesto de Fundação e do Programa do PT).
Penso que a sua influência heterodoxa e inovadora não dependeu de cargos (que de resto nunca pleitearam e freqüentemente recusaram) nem de luta interna. A maior contribuição desses intelectuais – tanto mais profunda, em certo sentido, quanto menos deliberada – foi sua própria atitude militante, sua modalidade peculiar de ser e estar no partido, de presença humana e política, naquele sentido do testemunho visceral que traduz princípios éticos em comportamentos cotidianos e convicções gerais em atos particulares os mais singelos; naquele sentido da despojada e exemplar sabedoria que levou certa feita Gabriel Marcel a falar em “categoria da presença”.
A consistência de seus valores democráticos e socialistas, praticados com discrição e firmeza, teve notável impacto sobre o conjunto do partido, como que prefigurando o novo convívio social que desejávamos construir. De um lado, transparência, companheirismo, tolerância, espírito de serviço sem negação da individualidade, generosa abertura para o debate interno e externo, sem qualquer laivo de sectarismo, um compromisso de vida com o destino das classes populares. De outro, vasto conhecimento do Brasil real e autêntico fervor pelo Brasil possível, senso do concreto, prioridade para os problemas de interesse geral, um modo não-dogmático de abordá-los, com o máximo de rigor e profundidade mas sem nunca perder de vista a desejável partilha do saber.
A sua própria defesa do PT já subvertia os cânones. Reivindicavam para o partido o direito de estruturar-se livremente, à revelia da Lei Orgânica dos Partidos Políticos, imposta pelo regime militar. E o que é mais importante: sustentavam a necessidade de o PT inventar a sua identidade orgânica e não somente reproduzir formatos partidários da nossa e de outras tradições. Estimulavam o partido à “aventura da originalidade” (Eder Sader), mesmo sabendo dos riscos inerentes às formas políticas experimentais, que não contam com o tranqüilizador (mas quase sempre conformista) aval das teorias estabelecidas. Não hesitavam, por isso mesmo, em propor ou apoiar mecanismos de tensionamento da forma-partido, tais como os núcleos de base, as plenárias e encontros democráticos, as salvaguardas aos direitos das minorias, as restrições ao acúmulo de cargos, a socialização dos mandatos e assessorias parlamentares, as prévias eleitorais internas etc.
Basta mencionar, nesse sentido, dentre outros depoimentos de grande transcendência ético-política, em que pese a natural modéstia de seus autores, a Carta aberta a um líder operário de Mário Pedrosa a Lula (1978), as entrevistas de Antonio Candido “Democracia e socialismo” (IstoÉ, 07/09/77) e “Opinião de Antonio Candido” (Folha de S. Paulo, 10/08/80), o texto de Paulo Freire “O partido como educador e educando” (1981) e vários artigos de Hélio Pellegrino, da mesma época, depois coligidos no volume A burrice do demônio.
Mesmo que não tivéssemos plena consciência disso, a verdade é que muito da fisionomia do PT ainda estava em disputa. Na tentativa de inviabilizar o projeto petista, ou pelo menos de domesticá-lo, adversários de direita e de esquerda tradicional chegavam até a argüir a nossa “ilegitimidade democrática”, pela proposta sui generis do partido. As heresias teóricas e práticas do PT eram condenadas por uns e outros, que exigiam, a título de “ritual de passagem”, o abandono pelo partido de suas características mais originais e insurgentes, de seus elementos de ruptura com a tradição elitista e conciliadora da política brasileira. Exigiam que abjurássemos dos nossos traços mais surpreendentes e menos neutralizáveis pelo poder dominante, que destinava à esquerda o eterno papel de caudatária ou testemunha impotente, jamais de protagonista e em hipótese nenhuma de alternativa de poder. Exigiam que alienássemos justamente aquilo que, na prática, podia redefinir o quadro partidário do país.
Internamente, como aliás era de esperar no caso de um partido heterogêneo em formação, havia segmentos ainda presos a matrizes teóricas exauridas e que tendiam a priorizar questões ideológicas e mesmo programáticas completamente artificiais no Brasil de 1980, em prejuízo da pertinência social e do carisma político-cultural do PT. Nesse contexto, o apoio intelectual às ousadias conceituais e empíricas dos “novos sindicalistas”, a serena e bem fundamentada recusa de esquemas ideológicos esclerosados, assim como a capacidade de resistir à maré montante do pensamento neoconservador – tudo isso foi, sem dúvida, muito importante para assegurar um PT radical e socialista, mas liberto da ortodoxia comunista e de outras ortodoxias.
O PT não pode ser o educador que já sabe tudo, que já tem uma verdade intocável, diante de uma massa popular incompetente a ser guiada e salva. Um educador para quem o futuro seja algo preestabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediável. […] A questão não está apenas em proclamar verbalmente a opção pelas classes e setores dominados, mas ter uma prática político-pedagógica rigorosamente coerente com a proclamação verbal. Uma coisa é a expressão oral da opção pelas classes oprimidas, pelas massas populares, a outra é uma prática elitista, quando sabemos que não é o discurso que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso. É então a coerência entre a sua prática e as suas opções proclamadas que virá fazendo o PT, enquanto educador, reconhecer-se também como educando. Vale repetir: para que o PT assuma o seu papel de educador enquanto partido, coerentemente com as suas opções proclamadas, ele tem de assumir também o papel de educando das massas populares. A sua tarefa formadora, como partido de massas e não de quadros, se dá na interioridade das lutas populares, na intimidade dos movimentos sociais de onde ele veio, dos quais não pode afastar-se e com os quais deve aprender sempre […] Só os educadores autoritários negam a solidariedade entre o ato de educar e o ato de ser educado pelos educandos, só eles separam o ato de ensinar do de aprender, de modo que ensina quem se supõe sabendo e aprende quem é tido como quem nada sabe (Paulo Freire, 1981).
Esses intelectuais não se propunham, de modo algum, a dirigir o partido em função de sua competência teórica ou científica. Ao contrário: valorizavam reiteradamente, por meio de palavras e atos, o fato de que um partido a favor dos trabalhadores fosse também de trabalhadores, contasse desde o início, em todos os níveis de decisão, com trabalhadores a liderá-lo. Consideravam uma importante novidade histórica o protagonismo político de operários e sindicalistas e maior ainda a criação de um partido de massas pelas mãos de lideranças verdadeiramente populares. (Coisa, aliás, a auto-organização política das classes subalternas, que vários deles haviam de alguma forma auspiciado em suas obras, a começar do próprio Sérgio Buarque de Holanda, no capítulo final de Raízes do Brasil.) Valorizavam a novidade do fenômeno não obstante o que ele pudesse conter, como de fato continha, de relativa ignorância histórica, limitada informação institucional e (às vezes) deliberada imprecisão ideológica. Prestavam maior atenção ao sentido estrutural do processo – já por si revolucionário no contexto brasileiro – que à sua “aparência”. Sentido estrutural que extrapolava o discurso consciente dos líderes do PT, sua verbalização condicionada pela conjuntura e pelo léxico da época. E, naturalmente, transcendia os rituais, modismos e cacoetes do PT que nascia, suas inevitáveis querelas internas: “Essas brigas são espuma” – dizia Hélio Pellegrino -, “o rio corre mais embaixo, passa tranqüilo”.
Recusando-se a adotar postura elitista, de presumível superioridade intelectual e, por extensão, política, nem por isso incorreram em qualquer tipo de basismo. Tinham diante dos líderes e militantes populares respeito, curiosidade fraterna, não raro carinhosa solicitude, mas de modo algum atitude acrítica, disposição subserviente, celebratória ou personalística, que restabelecesse pelo avesso as hierarquias artificiais que pretendiam abolir. A sua genuína admiração pela coragem e criatividade popular de que resultou o PT não implicava nenhum rebaixamento dos padrões analíticos e críticos, nem de sua obra geral nem de sua contribuição ao debate interno do partido. E menos ainda significava concordância a priori com quem quer que fosse.
O que mais os entusiasmava era o potencial de “surpresa histórica” que o PT trazia consigo (impensável na tradição ortodoxa, a surpresa histórica). Destacavam – e desse modo ajudavam a consolidar, o que não era de modo algum descontado – os nossos aspectos mais inaugurais. Por exemplo: a pluralidade de fontes filosóficas e ideológicas de que se nutria o partido, dialogando criativamente com distintas concepções de mundo; a petulância de encontrar respostas brasileiras para os problemas brasileiros, sem importação de modelos políticos ou intelectuais, de soluções pret-à-porter, embora valorizando o conhecimento crítico de idéias e experiências transformadoras em outros países; a mescla de linguagens e estilos do PT; seu movimentismo; a conjugação de democracia representativa com democracia direta, do social com o institucional, da desobediência civil com a negociação parlamentar, de clássicas reivindicações econômicas (ainda vitais!) com a afirmação de novos direitos de raça, de gênero, de sexualidade.
Anos mais tarde, já no 7o Encontro Nacional do partido (1990), a resolução “O socialismo petista”, aprovada por unanimidade, algo raríssimo na história do PT, faria justiça àquele processo, sistematizando os seus frutos:
Confluíram para a criação do PT, como expressão de sujeitos sociais concretos, mais ou menos institucionalizados, diferentes correntes de pensamento democrático e transformador: o cristianismo social, marxismos vários, socialismos não-marxistas, democratismos radicais, doutrinas laicas de revolução comportamental etc. O ideário do partido não expressa unilateralmente nenhum desses caudais. O PT não possui filosofia “oficial”. As distintas formações doutrinárias convivem em dialética tensão, sem prejuízo de sínteses dinâmicas no plano da política concreta. O que une essas várias culturas políticas libertárias, nem sempre textualmente codificadas, é o projeto comum de uma nova sociedade […] que se inspira na rica tradição de lutas populares da história brasileira.
Nos partidos ortodoxos, regidos pelo chamado “centralismo democrático”, a adesão orgânica praticamente exigia o sacrifício da liberdade intelectual. Acabava-se, de um modo ou de outro, por subordinar a reflexão teórica, a investigação científica e a criação artística aos “interesses superiores” da agremiação ou às tarefas de propaganda (alta ou medíocre propaganda, não importa). Para evitá-lo, alguns “companheiros de viagem” limitavam-se a emprestar seu prestígio social ao partido, sem integrar-se plenamente a ele. A rigor, não existia a possibilidade de o intelectual conservar sua independência, isto é, sua autonomia de investigação e juízo, sem confrontar-se em algum momento com a verdade oficial do partido. Predominavam os “enquadramentos rígidos” (Antonio Candido), as linhas oficiais ou oficiosas: linha filosófica, linha econômica, linha política, linha estética. Fora delas, era o desvio, a indisciplina, com as suas tremendas conseqüências objetivas e subjetivas.
Sem postular que houvesse uma relação idílica, sabidamente impossível, nem ignorar contradições, às vezes agudas, que certamente existiram e continuam a existir, estou convencido de que se conseguiu instaurar entre os intelectuais petistas e outros setores também dedicados à construção do partido uma dialética cultural e política de novo tipo, de fecundo e recíproco aprendizado. De certa forma, apesar das eventuais turbulências (ou, quem sabe, exatamente por causa delas, por considerá-las naturais e até pedagógicas em uma instituição democrática), conseguiu-se uma relação bastante horizontal e complementar, em que os intelectuais deixaram de ser um corpo separado, especializado e instrumental, com a missão de difundir uma política que usualmente não ajudavam a gestar, para tornarem-se parte integrante, a pleno título e para todos os efeitos, do debate e da atuação coletiva do partido.
A cultura política e humanística dos intelectuais – sua rigorosa leitura do capitalismo brasileiro aliada à capacidade de presentificar sentidos da história e de questionar limites da própria resistência popular – enriquecia de modo natural, pelas artes do convívio, o saudável empirismo dos sindicalistas, sem o qual o PT não teria sequer nascido ou logo teria se desnaturado em um “partido de vanguarda”. Essa dialética de saberes, isenta de proselitismo, desafiava as lideranças populares à auto-superação política e moral (sem deixarem de ser o que eram e, se possível, sendo-o cada vez mais) com vistas ao combate mais complexo pela hegemonia política na sociedade democrática.
Por outro lado, desafiava também acadêmicos e artistas, habituados a lidar com o povo trabalhador sobretudo de um ponto de vista conceitual (por digno e arriscado que fosse o seu engajamento), ao contato direto, cotidiano com operários fabris e trabalhadores rurais de carne e osso, em sua desconcertante diferenciação e contraditória identidade, amálgama de preconceitos moralistas e inéditos valores de libertação, de lacunas escolares e um vasto, qualificado, quase inacreditável saber de experiência feito; de uma enorme sede de aprender, de conhecer, de superar-se, casada com forte auto-estima classista, com orgulhosa e provocativa “incultura” – forma possível e necessária de recusa às liturgias elitistas do Estado burguês.
Sem falar da astúcia estratégica de suas lideranças, freqüentemente mais hábeis e criadoras, a julgar inclusive pelos resultados históricos obtidos, do que não poucos arautos de projetos revolucionários com maior bibliografia e menor tirocínio.
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Antonio Candido – que Carlos Drummond de Andrade considerava “o maior intelectual brasileiro vivo” – é um desses pensadores e artistas que participaram da criação do PT e ajudaram a moldar o seu caráter heterodoxo e inovador.
Candido relativiza a própria contribuição, alegando que não fez parte do Movimento Pró-PT nem acompanhou diretamente as articulações que deram origem ao partido, vindo a integrá-lo somente a partir do Ato de Lançamento, em fevereiro de 1980. Afirma que também não desempenhou posteriormente tarefas de formulação doutrinária ou política. Diz que sempre procurou “cumprir com os seus deveres de militante”, mas que nunca teve influência decisiva nos rumos do PT nem suas idéias tiveram maior centralidade no debate petista.
Se aceitássemos a premissa de que magistério moral, intelectual e político depende de espaços de poder ou de encargos oficiais, provavelmente concluiríamos que Candido tem razão ao minimizar o alcance de sua militância. No entanto, à luz do que sustentei páginas atrás – sobre o contributo marcante, ao ideário e ao estilo petista, de intelectuais que não ocuparam postos dirigentes, ou, se o fizeram (como Paulo Freire, Paul Singer, o próprio Candido, Helena Grecco, Perseu Abramo, Hélio Bicudo), foi sem reivindicá-lo e de modo discretíssimo -, é necessário avaliar o seu aporte pessoal por critérios mais perfunctórios. Também aqui, diria Hélio Pellegrino, “o rio corre mais embaixo”.
Candido impactou-nos a todos, durante esses quase 20 anos de militância compartilhada, pelo que ele é e pelo que decididamente não é. Pelos valores que proclama e pratica e pelos antivalores que radicalmente combate. Pela sua adesão racional e afetiva à causa dos oprimidos, que as vicissitudes da disputa política não abalam e muito menos a derrisão dos bem-pensantes.
A forma como Antonio Candido milita já é em si mesma conteúdo. A exemplo do que sucede com as grandes obras literárias, que ele tão bem compreende e ensina a compreender. Ausência de atavios, de rebuscamento artificial, de jargão. A sua atuação política é análoga à sua prosa ensaística. Argúcia, profundidade, clareza. Assim também, dizem os ex-alunos, o seu modo de lecionar: “Um professor correto, discreto, que não falava de si nem se exibia […] e todo mundo de repente percebia que a literatura é uma coisa importantíssima” (Walnice Galvão). Mais do que uma opção técnica, esse despojamento revela uma ética do estilo, que nega a linguagem política especializada como instrumento (consciente ou inconsciente) de poder. Seja de poder interno, diante dos filiados comuns, seja externo, perante a base social do partido. Profundidade que não cede nunca ao hermetismo. Argúcia que jamais transforma o objeto em pretexto. Clareza que não pretende abolir o senso do mistério…
Essa modalidade de presença confirma em toda a linha o que dele disse Darcy Ribeiro: “Antonio Candido é uma das encarnações mais dignas e conscientes da postura socialista entre os intelectuais do nosso tempo”. Postura que se evidencia não só diante dos grandes dilemas éticos e políticos mas em gestos comezinhos do dia-a-dia. Recordo-me, por exemplo, de sua participação em nosso primeiro Diretório Nacional (1981/1984). Não faltava às reuniões, chegava na hora, ficava até o final, ouvia com atenção todas as opiniões, em especial as que não coincidiam com a sua. Falava pouco mas, se necessário, não se eximia de opinar. Caso estivesse de acordo, evitava repetir o já dito. Se discordava de alguma análise ou proposta, fazia-o com franqueza e companheirismo, sem nenhum “argumento de autoridade”, procurando ater-se às questões de mérito. Considerava perfeitamente possível e natural que divergissem dele. E até desejável, nas situações mais complexas, para que o cotejo de experiências sociais distintas, de diferentes “culturas” pessoais, ensejasse uma compreensão integradora da realidade.
Um tal estilo, uma tal soma de virtudes poderia resultar indigesta, fazer de Candido um respeitável mas aborrecido varão de Plutarco. Mas não é absolutamente o que acontece. Antes de mais nada, porque ele tem uma atitude dessacralizada também para consigo mesmo. Sua inteligência mantém-se alerta, imprevisível, atenta aos desafios do presente e do futuro, despida daquele narcisismo da memória que acaba por hipertrofiar o sentido do passado, atribuindo à experiência acumulada um valor normativo que ela raramente tem. É proverbial, além disso, o seu interesse pela inteligência e pelas obras alheias, pelo outro. Até mesmo (qualidade pouquíssimo freqüente entre militantes partidários) pelos problemas humanos que não são traduzíveis em termos imediatamente políticos. Sem falar do seu finíssimo senso de humor, antídoto à academicização de idéias e comportamentos. O que pode haver de mais salutar em um partido político sério que o espírito capaz de achar graça até de si mesmo? Quem conhece Candido apenas por fotografias, nas quais tende a ressaltar a sobriedade, a gravitas, não sabe o que perde de sua peculiar irreverência, de suas histórias saborosas (já se disse que ele é “um causer formidável”), de seu talento teatral, sobretudo parodiando poses, vocabulários, sotaques. Aliás, é dele mesmo, segundo uma de suas ex-alunas mais ilustres, a observação de que “todo professor é um ator frustrado”.
Senso de humor que freqüentemente se manifesta por uma espécie de ironia compassiva. No dizer de Alfredo Bosi, esse jeito de ser, essa forma de estar com os semelhantes, “tempera o iluminismo severo da mente crítica com uma generosa aceitação dos limites de cada um”.
Ao longo dos anos, Candido cumpriu desse modo um sem-número de pequenas e grandes tarefas partidárias.
Mas, sobretudo, esteve e está presente.
*Luiz Dulci é um dos fundadores do PT, e é chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. É ex-presidente e atual conselheiro da Fundação Perseu Abramo