A oposição e o seqüestro do futuro
"Mas, de onde as coisas têm o seu passar a ser, para aí vai também o seu deixar de ser, segundo a necessidade; pois elas pagam, umas às outras castigo e penitência pela sua impiedade, segundo o tempo estabelecido". Anaximandro
O momento é por demais expressivo para, a partir dele, não fazermos pequenas reflexões. Retroagirmos a tempos recentes e deles extrairmos lições que precisam ficar vivas na memória é um exercício obrigatório. O que assusta a direita sem programa é um futuro que se anuncia por demais promissor para que seja efetivado. O triste é saber que quem a acompanha nessa marcha se julga vanguarda quando, na verdade, faz papel de coro para a tragédia do atraso.
O que estamos presenciando no Brasil sinaliza uma dinâmica que esboça o desenho do país nos próximos anos. Os ineditismos apontam para mudanças que sedimentam novas bases para o capitalismo brasileiro. Apurar a visão para compreender que só lograremos a hegemonia se não a concebermos como sistema formal fechado, totalmente articulado e homogêneo é um belo primeiro passo. Distribuições específicas de poder, hierarquia e influência não ocorrem em um cenário vazio de contradições e processos difusos. Perscrutar mudanças moleculares é fundamental para não perdermos o foco do que desespera o conservadorismo brasileiro.
Como ignorar que a alta no preço dos alimentos no Brasil foi inferior à registrada em outros países do mundo por contas de políticas públicas de apoio à agricultura familiar? Em matéria publicada no Globo (1/6), dois agricultores são precisos: “A situação hoje é mais confortável do que há seis, sete anos. Naquele tempo, pobre não entrava em banco. Quando entrava, a liberação demorava tanto, que quando saía já havíamos colhido. Agora o dinheiro sai na época certa". Do que falam os homens do campo? Que a inflação está sendo combatida com garantia de abastecimento para o mercado interno. Isso é irrelevante? Para quem?
E o que dizer de uma economia estabilizada, com inflação baixa e contas externas minimamente ajustadas? Em abril, 4,18 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo tinham carteira assinada no setor privado. Isso equivale a 46,5% do total de ocupados, a maior taxa de empregos formais desde abril de 1992, quando registrou 48%. Diante de tais dados, atribuir a popularidade do presidente e os índices de aprovação ao seu governo exclusivamente a uma liderança carismática não revela uma indigência analítica que mescla reducionismo e má-fé?
Não bastam os erros cometidos por “ciosos analistas” no início do primeiro mandato? A manutenção de alguns preceitos econômicos do bloco político anterior não poderia, jamais, ter embaçado a visão dos analistas mais atentos. O anúncio do aumento da meta de superávit primário em 2004 de 4,25 para 4,5% do PIB brasileiro refletia a preocupação do governo Lula com ajuste fiscal e controle da inflação. E o tempo que dita a sentença relativamente a tudo, conforme o filósofo pré-socrático, mostrou a justeza do caminho escolhido.
Não há nenhum compêndio que definisse tal orientação como sendo uma inclinação à direita. De fato, não há registro na história do que venha a ser uma política macroeconômica de esquerda. Repetimos o que já afirmamos em outras ocasiões: em nenhum país ocidental, um governo de extração democrático-popular logrou reformular radicalmente mecanismos regulatórios dentro dos marcos capitalistas. A ruptura clamada pelos principistas de plantão, se não for acompanhada de ampla sustentação interna e cenário exterior favorável, não leva a outro caminho que não seja o da crise institucional. Tão ansiada pela direita desde o veredicto das urnas em 2002.
Sancionados pela ‘boa consciência’ e amparados por uma verdade de vulgatas marxistas, certos “críticos supostamente à esquerda" acabam por se deixar instrumentalizar pela direita que, através do comportamento inconseqüente de seus supostos opositores, consegue consagrar a ordem do capital financista como a única realmente factível. Eis o que o esquerdismo tem conseguido ao longo da história: legitimar o que pretende combater. O purismo não leva Marília ao encontro de Dirceu. Acaba por jogar Heloísa nos braços de Virgilio. Ou se preferirem, de Agripino Maia.
Prudência na política cambial, avançar na reforma agrária, na administração do superávit primário e, quando for necessário e, acima de tudo possível, renegociar com organismos multilaterais a partir de uma posição de bloco regional, são imperativos históricos. E, já passou da hora, de reconhecer que esses passos têm sido dados com firmeza.
No entanto, urgia reconstruir a nau para a travessia desejada. São áridos os caminhos que nos levarão a conseguir defender as demandas nacionais com estratégias econômicas distintas. Tal como destacou o professor José Luiz Fiori, ‘os países mais fracos só conseguirão defender os interesses do seu capitalismo, bem como os de sua população, se forem capazes de construir suas próprias estratégias comerciais, junto com políticas macroeconômicas adequadas ao seu nível de desenvolvimento e aos seus objetivos nacionais’.
Para tanto, não se pediam etapismos, mas compreensão do tempo histórico. Por que o radicalismo pequeno-burguês da classe média brasileira, tão indulgente nos quatorze anos de desmonte do setor produtivo, se mostra tão irascível com um governo que mal completara três anos? Senso de urgência histórica ou arrivismo de ocasião? Deixemos claro que são alternativas que não se excluem.
Se alguém ainda insistia na tese de continuísmo entre o governo anterior e o atual, deveria perscrutar gestos que sinalizavam inequívoca inflexão. Amplamente noticiadas, pouco analisadas na sua real significação, as relações entre o Planalto e atores dos principais movimentos e entidades que lutam pela inscrição como sujeitos de direito setores secularmente excluídos eram sinais de uma revolução molecular que se iniciava.
A forma como o governo tem interpretado greves e manifestações de várias categorias profissionais é inédita na história do país. Um movimento reivindicatório do mundo do trabalho já não era percebido como ameaça à institucionalidade. Não era subjugado em nome do conceito etéreo de governabilidade. Não era sufocado por razões de Estado ou ditames mercantis. E nada havia se alterado para quem não se dispõe a enfrentar a realidade de frente.
O que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou foge ao figurino traçado, até então, pelas elites encasteladas no aparelho de Estado. Ao invés de enxergar na paralisação dos bancários, em 2004, uma disfuncionalidade a ser corrigida, nela viu a afirmação da democracia entendida como espaço político de solução de conflitos. ‘Os trabalhadores fizeram sacrifício quando tinham que fazer. E na medida que o banco anuncia ganhos muito bons é natural que queiram recuperar suas perdas’. A essa declaração, Lula, na época, acrescentou: ‘Acho o exercício da democracia fantástico’.
Essa já era uma prova que o atual governo fazia, como dele se esperava, uma leitura política da economia. Ponto para um dirigente que sempre entendeu que a guerra é de posição. O que tinham a dizer os seus detratores? Nada. O pessimismo na inteligência se somado ao otimismo na ação leva Marília a Dirceu. A grita pueril de senhores que gostam de impressionar platéias estudantis termina com Heloísas no colo de Virgílio ou Agripino. O último tipo de casal não costuma gerar filhos pródigos.
Na mesma edição de O Globo, matéria de página inteira se dedica a destacar que “a cara da economia brasileira poderá mudar na próxima década, diante da possibilidade de o país dispor de reservas gigantes de petróleo". O secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Nélson Barbosa afirma que "é como se a União ficasse mais rica. Ela passa a ter mais ativos. Isso aumenta as receitas de petróleo e também o primário, o que contribui para o bem e o mal".
Por isso quando lemos que “Índio da Costa pedirá indiciamento de Dilma e Aparecido" ou que o “DEM fecha questão contra CSS" não estamos, apenas, diante de chamadas que expõem a agenda eleitoreira da grande imprensa para as próximas eleições presidenciais. Mais que isso. O que está sendo orquestrado é o butim de uma herança bendita. Um seqüestro do futuro que as forças progressistas devem impedir a todo custo
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, e colaborador do Observatório da Imprensa.