Um início da retomada da cultura socialista democrática?
Um início da retomada da cultura socialista democrática?
Eventos de rememoração, iniciativas editoriais, shows, palestras,seminários indicam que há um novo fenômeno em gestação no Brasil, que não aparece na mídia empresarial: a retomada promissora da cultura do socialismo democrático.
Se o programa máximo do neoliberalismo nos anos noventa foi retirar o chão histórico, o sinal de identidade e a construção de sentido da esquerda brasileira, a revista “Perseu” parece ter fôlego para um programa inverso: através de um enfoque pluralista e social das tradições da esquerda brasileira, de seus inícios à contemporaneidade, dar contribuição decisiva à tradicionalização de nossa originalidade. Assim, pelas páginas do primeiro número, sempre emolduradas por pesquisa fotográfica, vão passando o nascimento do PT, a experiência dos sapateiros de Franca, Vargas no mundo rural, as Ligas Camponesas, o Teatro Forja de Plínio Marcos, o cinema de João Batista de Andrade, a experiência guerrilheira de Caparaó.
Mas “Perseu” parece ter sido apenas um sinal: porque outros eventos memoráveis estão vindo à luz. A edição da revista “Teoria & Debate” especial sobre 1968, evocando com ênfase as greves operárias de Contagem e Osasco, foi lançada com casa cheia no Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e Contagem. Na mesa, as lideranças históricas da greve, como Ênio Seabra, a companheira prefeita de Contagem, Marília Campos, a diretoria do sindicato da CUT, recém reeleita com mais de 70% de votos. A data coincidiu com os 40 anos da prisão do atual vice-presidente da Fundação Perseu Abramo, Nilmário Miranda, que estava então junto com outros companheiros fazendo panfletagem na porta da Manesmann, a maior fábrica metalúrgica da região. Os que já se foram estiveram presentes, evocados. A nossa comunidade socialista de destinos: ontem, hoje e amanhã.
Em Recife, em uma reunião reunindo socialistas de diferentes correntes do PT, sob a liderança do companheiro petista João Paulo, um auditório cheio para discutir a retomada do socialismo petista. Lá, no Primeiro de Maio, foi lançado, com a audiência de milhares de pessoas, o CD “Tributo ao trabalhador”, da orquestra sinfônica de Recife, sob a regência do maestro Osman Gioia. As canções de Milton Nascimento, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Vinícius, Geraldo Vandré, Noel Rosa, Luiz Gonzaga, Chico Science são precedidas do Hino da Internacional Socialista. Em coro, o final do CD, canta a Internacional. O prefeito do Recife, esta cidade da esquerda popular brasileira, do frevo e da Praieira, conclama ao final da apresentação do belo CD: “ Brindemos, pois, com notas musicais, aos trabalhadores e à justiça social, mantendo no coração a esperança da sociedade socialista”.
São Bernardo também evocou os 30 anos da greve da Scania, onde tudo começou. Com a presença do presidente Lula, foi exibido o filme “Linha de montagem”, de Renato Tapajós, sobre as greves de 1978 e 1979 no ABC, restaurados após mais de 25 anos.
Em Belo Horizonte, na UFMG, o grupo de pesquisa “República”, que vem realizando nos últimos um belíssimo trabalho de resgate da memória da luta pela terra no Brasil, organizou um seminário sobre as canções e filmes que contam a história dos camponeses e trabalhadores rurais.
Enfim, no dia 6 de junho no Rio de Janeiro, será lançado um precioso volume de ensaios sobre o socialismo, organizado pelo companheiro Tarso Genro, com prefácio de Fernando Haddad. O livro é um campo de pesquisa e reflexões, procurando encontrar os caminhos de ligação da experiência de transformar o Brasil com os valores do socialismo.
Déficit de socialismo
Contra o diagnóstico que abriu passagem do economicismo neoliberal para a política – a de que havia um excesso de demandas democráticas nas sociedades ocidentais – a ampla resistência ao neoliberalismo soube nestes últimos anos inverter a direção da formação da opinião pública: o que há é um formidável déficit democrático, decisório, participativo, cidadão, em um mundo e em Estados nacionais cada vez mais governados por grandes fusões de poder e dinheiro. A consciência deste déficit democrático alimentou o novo espírito utópico dos movimentos anti-globalização, insuflou os vendavais de mudança eleitoral na América Latina, levou a crônico desgaste o governo nos EUA e desafia governos de esquerda ou de centro-esquerda que se acomodam aos velhos hábitos de governar. Não há nenhuma razão para duvidar que este movimento de valores democráticos vai continuar crescendo nos próximos anos.
Ora, ao lado e em mútua configuração, hoje é preciso despertar a consciência do enorme déficit socialista que visita cada um dos grandes impasses da contemporaneidade. Este déficit é histórico, como resultado da herança das experiências fracassadas de construção do socialismo, polarizada pelo grande fenômeno da revolução russa, que ensejaram o “curto século XX”. Foi selvagemente aprofundado nas décadas de oitenta e noventa do século passado pela progressão incontida dos direitos do capital, que repôs em escala maior situações de barbárie e novos riscos para a humanidade. É um sintoma cultural decisivo de uma nova época que sucede aquela recém vivida, de grave depressão das culturas anti-capitalistas, de erosão das energias utópicas, como um vez bem formulou Habermas.
Déficit democrático e déficit socialista: duas expressões de época, dois sintomas que estruturam a cultura política contemporânea. Ou, para utilizar a expressão do verso de Drummond, “a falta que ama”: duas carências que ocupam a cena dos nossos impasses e visitam as nossas esperanças.
Dimensão política
Menos do que entendida em uma chave doutrinária ou mesmo como um problema das vanguardas, a questão do socialismo enquanto valor cultural, enquanto sinal de identidade e enquanto configuração de sentido, está no centro do grande desafio de 2010, da continuidade ou ruptura do processo de mudanças históricas iniciadas pelo governo Lula.
A circulação social destes valores, a sua relegitimação, a sua anima política é vital para estabelecer os protocolos de continuidade e aprofundamento da experiência transformadora do Brasil, protagonizada pelos governos Lula. A mera manutenção de posições, a simples ênfase no continuísmo ou na reiteração não é boa política para a esquerda: assim como o segundo mandato de Lula, trouxe uma alteração progressiva de dinâmica em relação ao primeiro mandato, um terceiro mandato de uma coalizão liderada pelo PT deve alimentar novos ciclos de transformações.
A retomada da cultura do socialismo dará uma contribuição decisiva para criar uma ambiência propícia à aliança central do PT com o PSB, o PC do B, o trabalhismo, configurando um pólo de atração e de fortíssimo protagonismo na cena nacional.
Por fim, ele pode ajudar a trazer aquilo que foi mais ameaçado na crise de 2005: a militância social do partido, renovada e ampliada, amadurecida e nacionalizada, herdeira dos que lutaram antes e dos que virão depois de nós.