Cultura e território como política pública
Do que trata o texto: "Uma cidade plena e democrática se faz com o entrecruzamento de diferentes expressões da vida. Pressupõe, portanto, encontros de sociabilidades, conhecimentos recíprocos dos modos de viver e respeito aos estilos existenciais que se realizam nos territórios múltiplos que coexistem na metrópole carioca".
Do que trata o texto: "Uma cidade plena e democrática se faz com o entrecruzamento de diferentes expressões da vida. Pressupõe, portanto, encontros de sociabilidades, conhecimentos recíprocos dos modos de viver e respeito aos estilos existenciais que se realizam nos territórios múltiplos que coexistem na metrópole carioca".
Autor: Jorge Luiz Barbosa, coordenador do Observatório de Favelas e professor da Universidade Federal Fluminense
O sucesso de uma política pública para a superação das desigualdades sociais, sobretudo as desigualdades nas nossas metrópoles, só será possível quando a ação abrigar uma política cultural que incorpore a diversidade dos espaços populares. Não podemos mais nos conceber cidadãos plenos quando vivemos divididos entre lugares de supremacia cultural e lugares subalternizados, que não trazem um legado cultural hegemônico ou então representam uma contracorrente à indústria cultural.
Cada grupo social é portador de signos de referência e códigos sociais inseridos em determinados territórios. Podemos dizer que o território é um espaço/tempo demarcado por intencionalidades humanas, cujas identidades possuem fluxos de correspondência e intensidades plurais, principalmente no tocante a afirmação individual e de grupos na sociedade urbana.
A cultura é sempre diversa, dinâmica e plural. Multiplicam-se pela cidade os signos impressos nas falas, nos gestos, nas roupas, na música, na dança. Eles reportam as moradas dos grupos sociais e, conseqüentemente, a condição de cada um na sociedade.
Porém, isso tem significado, em larga medida, posições de privilégio ou não na escala de valores e práticas hegemônicas no espaço metropolitano. Resulta desse processo a distinção de territórios que, por sua vez, reduzem e/ou confinam as possibilidades de trocas simbólicas e culturais.
Romper com essa redução sociocultural dos territórios da cidade significa o reconhecimento da legitimidade da presença do Outro, da sua atividade criativa e do direito de manifestar as leituras do seu mundo.
Valorizar e respeitar a diversidade de manifestações culturais e artísticas dos moradores dos espaços populares é um ato primordial de construção de uma sociabilidade urbana renovada. Vislumbra-se, como efeito, a ampliação da circularidade de imaginários, de obras, de bens e práticas culturais na cidade sob o primado da comunicação entre próximos e distantes. Afinal, a cultura se torna mais rica quando expandimos as nossas trocas de imaginários, de saberes, de fazeres e convivências.
Essa proposta nos remete a superação das desigualdades sociais, que não dizem somente respeito aos aspectos econômicos: distribuição de renda, desemprego, consumo. Elas estão expressas em outras condições de existência social: na escolarização, na habitação, na saúde e no acesso aos bens e equipamentos culturais.
A distribuição espacial de equipamentos e bens culturais na cidade do Rio de Janeiro é um forte retrato das desigualdades sociais. Há uma forte concentração de teatros, cinemas e espaços culturais no Centro e nos bairros da Zona Sul. Entretanto, nas grandes favelas cariocas – Maré, Alemão, Rocinha – não encontramos nenhum investimento público de porte no âmbito da arte e da cultura.
Voltemos ao tema da inflexão territorial das políticas públicas, pois é impossível conceber e aceitar a concentração desmedida na distribuição de bens e equipamentos culturais, especialmente os criados pelo poder público. Então, é urgente e inadiável investimentos diretos nos espaços populares. A Maré, a Rocinha e o Alemão reúnem um conjunto de comunidades que não podem permanecer sem espaços culturais como cinemas, teatros e casas de cultura. Tais investimentos seriam de extrema importância em termos educacionais, artísticos e, inclusive no tocante à segurança pública, pois podem significar transformações nas condições de existência não só nas favelas, como também nos demais bairros vizinhos.
Hoje, são muitos os projetos que aportam nas favelas carregados de preconceitos, os mais recorrentes são os que pretendem tirar os jovens do domínio do tráfico de drogas, como se todos os jovens fossem potencialmente violentos e criminosos. Projetos dessa natureza já não possuem um bom começo, pois partem de estigmas em relação aos jovens das favelas.
Na contracorrente desses projetos estigmatizantes, aparecem experiências de diversos grupos que enfatizam o protagonismo dos jovens. Através de cursos, seminários e oficinas de arte e cultura, os jovens são orientados e estimulados a criar suas representações de mundo e de si.
É preciso reconhecer que a cidade é produto da diversidade da vida social, cultural e pessoal. Isto significa dizer que a cidade deve ser pensada, tratada e vivida como um bem público comum, e não como um espaço de desigualdades. A cidade é o encontro dos diferentes. A cidade é a expressão da pluralidade de vivências culturais, afetivas e existenciais. A padronização cultural da vida rouba da cidade a criatividade necessária para inventar a alegria e a felicidade. A homogeneização das práticas socioculturais enfraquece o significado do conviver e do aprender com presença do outro. Significa dizer, portanto, que é preciso reconstruir a identidade da cidade pelo reconhecimento da diversidade cultural como um valor da existência.
Assim, pensar uma identidade própria e possível da Metrópole consiste em reconhecer as favelas, na sua pluralidade e na sua qualidade de espaço produtor da cultura, como territórios legítimos na realização de um projeto de cidade como espaço de direitos e deveres democráticos.
Uma cidade plena e democrática se faz com o entrecruzamento de diferentes expressões da vida. Pressupõe, portanto, encontros de sociabilidades, conhecimentos recíprocos dos modos de viver e respeito aos estilos existenciais que se realizam nos territórios múltiplos que coexistem na metrópole carioca.
Trata-se, portanto, da formulação e execução e políticas públicas capazes de (re)constituir paisagens e imaginários das múltiplas identidades e representações socioculturais na metrópole. Valorizar a diversidade como principio de nossa formação identitária, promover encontros entre distantes/diferentes como possibilidade do respeito à alteridade e promover a tessitura de acontecimentos e intervenções artístico-culturais como mediações necessárias à construção das narrativas propostas.
É preciso construir outras narrativas, sobretudo através de mapas urbanos do viver, do olhar, do morar, do trabalhar, do conhecer e do sonhar na metrópole. Diferentes territórios precisam ser visitados e desvendados.
Conhecer o outro para reconhecer a complexidade do mundo significa a busca de comunicação, esse movimento de descoberta grafado através da fotografia, do vídeo, do grafite, da música, da dança, do canto; produtos estéticos que despertam possibilidades de elaboração de um mapa sensível da metrópole, a partir daquilo que lhe é mais recôndito. Ou seja, busca-se a invenção de uma outra geografia de registros e trocas comunicativas que contribuam para o exercício pleno da cidadania.
A proposta é construir a vida metropolitana tendo como referência atores/autores sociais em seus territórios de identidade, em especial jovens inseridos em diferentes movimentos culturais. Busca-se o encontro de favelas, de periferias, de baixadas, de zonas oeste e sul, nos caminhos percorridos pelo outro.
É nesse sentido que podemos falar da intervenção cultural urbana. A narrativa como práxis transformadora, pois se empenhará em aproximar o Mesmo e o Outro. Podemos falar então da criação de espaços de representações. Signos, imagens e vivências possibilitarão a tessitura de subjetividades e, com estas, certamente, a politização do cotidiano como devir da metrópole.