Editado em 2005 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, o livro “Por um socialismo indo-americano” de José Carlos Mariátegui é uma peça fundamental na formação dos socialistas latino-americanos. Mariátegui propunha integrar a tradição do comunismo agrário inca, suas tradições comunitaristas, em um programa de transformação revolucionária do Peru. Falecido precocemente aos 36 anos em 1930, Mariátegui é autor de “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”.

Com um belo prefácio de Michael Lowy, são selecionados 48 ensaios da inteligência romântica, literária, antipositivista e antidogmática de Mariátegui. Escolhemos um deles, “A Imaginação e o progresso”, editado em 12 de dezembro de 1924. Nele, o marxista peruano faz a apologia da imaginação para as grandes transformações da história, diferenciando-se de uma abordagem puramente idealista.

Escreve Luis Araquistáin que “o espírito conservador, na sua forma mais desinteressada, quando não nasce de um egoísmo inferior, mas do temor ao desconhecido e ao incerto, no fundo é falta de imaginação”. Ser revolucionário ou renovador é, deste ponto de vista, uma conseqüência de ter mais ou menos imaginação. O conservador rechaça toda idéia de mudança por uma incapacidade mental para concebê-la e aceitá-la. Este caso, naturalmente, é do conservador puro, porque a atitude do conservador prático, que acomoda seu ideário à sua utilidade e comodidade, tem, sem dúvida, uma gênese diferente.

O tradicionalismo e o conservantismo ficam assim definidos como uma simples limitação espiritual. O tradicionalista só é capaz de imaginar a vida como ela foi. O conservador só é capaz de imaginá-la como ela é. O progresso da humanidade, por conseguinte, realiza-se malgrado o tradicionalismo e apesar do conservadorismo.

Há vários anos, Oscar Wilde, no seu original ensaio “A alma humana sob o socialismo”, disse que “progredir é realizar utopias”. Pensando de modo análogo a Wilde, Luiz Araquistáin acrescenta que, “sem imaginação, não há progresso de nenhuma espécie”. E, na verdade, o progresso não seria possível se a imaginação humana sofresse subitamente um colapso.

A história dá sempre razão aos homens de imaginação. Na América do sul, por exemplo, acabamos de comemorar a figura e a obra dos animadores e condutores da revolução da independência. Estes homens, nos parecem, de modo fundado, geniais. Mas qual é a primeira condição da genialidade? É, sem dúvida, uma poderosa faculdade de imaginação. Os libertadores foram grandes, porque, antes de tudo, tiveram imaginação. Insurgiram-se contra a realidade limitada, contra a realidade imperfeita de seu tempo.

Esforçaram-se para criar uma realidade nova. Bolívar teve sonhos futuristas. Pensou numa confederação de Estados indo-espanhóis. Sem este ideal, é provável que Bolívar não viesse a combater pela independência. A sorte da independência do Peru, portanto, dependeu em grande parte da capacidade de imaginação do Libertador. Ao celebrar-se o centenário de uma vitória como a de Ayacucho, celebra-se, realmente, o centenário de uma vitória da imaginação. A realidade sensível, a realidade evidente, nos tempos da revolução da Independência, não era certamente republicana nem nacionalista. O mérito dos libertadores consiste em ter visto uma realidade potencial, uma realidade superior, uma realidade imaginária.

Esta é a história de todos os grandes acontecimentos humanos. O progresso sempre foi realizado pelos imaginativos. A posteridade aceitou invariavelmente sua obra. O conservantismo de uma época, numa época posterior, nunca tem mais defensores ou prosélitos além de uns quanto românticos e outros quantos extravagantes. A humanidade, com raras exceções, estima e estuda muito mais os homens da Revolução Francesa do que os da monarquia e da feudalidade abatida. A muitas pessoas Luís XVI e Maria Antonieta parecem acima de tudo desgraçados. Não parecem grandes a ninguém.

Por outro lado, a imaginação, geralmente, é menos livre e menos arbitrária do que se supõe. A pobre foi muito difamada e deformada. Alguns julgam-na mais ou menos louca; outros julgam-na ilimitada e até infinita. Na realidade, a imaginação é bastante modesta. Como todas as coisas humanas, a imaginação também tem seus limites. Em todos os homens, tanto nos mais geniais quanto nos mais estúpidos, encontra-se condicionada por circunstâncias de tempo e de espaço. O espírito humano reage contra a realidade contingente. No entanto, precisamente ao reagir contra a realidade, é quando talvez mais dela dependa. Esforça-se para modificar o que vê e o que sente, não o que ignora. Logo, só são válidas aquelas utopias que se poderiam chamar de realistas. Aquelas utopias que nascem das próprias entranhas da realidade. Georg Simmel escreveu uma vez que uma sociedade coletivista se dirige para ideais individualistas e que, inversamente, uma sociedade individualista se dirige para ideais coletivistas. A filosofia hegeliana explica a força criadora do ideal como uma conseqüência, ao mesmo tempo, da resistência e do estímulo que ele encontra na realidade. Poder-se-ia dizer que o homem só prevê e imagina o que já está germinando, amadurecendo, nas entranhas obscuras da história.

Os idealistas precisam apoiar-se no interesse concreto de uma extensa e consciente camada social. O ideal só prospera quando representa um amplo interesse. Quando adquire, em suma, características de utilidade e de comodidade. Quando uma classe social se converte em instrumento de sua realização.

Na nossa época, na nossa civilização, nunca houve utopias demasiado audazes. O homem moderno quase conseguiu prever o progresso. Até a fantasia dos romancistas muitas vezes se viu superada pela realidade em breve prazo. A ciência ocidental caminhou mais depressa do que sonhou Júlio Verne. O mesmo aconteceu na política. Anatole France vaticinou a Revolução Russa para fins deste século, poucos anos antes de esta revolução inaugurar um capítulo novo na história do mundo.

Precisamente em “Sobre a pedra branca” – o romance de Anatole France que, tentando prever o futuro, formula este vaticínio-, constata-se como a cultura e a sabedoria não conferem nenhum poder privilegiado à imaginação. Galião, o personagem de um episódio da decadência romana evocado por Anatole France, era um exemplar máximo de homem culto e sábio de sua época. No entanto, este homem não percebia absolutamente a decadência da sua civilização. O cristianismo parecia-lhe uma seita absurda e estúpida. A seu juízo, a civilização romana não podia declinar, não podia perecer. Por isso, aparece-nos, nos seus discursos, lamentável e ridiculamente despojado de inspiração. Era um homem muito inteligente, muito erudito, muito refinado, mas tinha a imensa desgraça de não ser um homem de imaginação. Daí que sua atitude diante da vida fosse medíocre e conservadora.

Esta tese sobre a imaginação, o conservantismo e o progresso poderia conduzir-nos a conclusões muito interessantes e originais. A conclusões que nos levariam, por exemplo, a não mais classificar os homens como revolucionários e conservadores, e sim como imaginativos ou sem imaginação. Distinguindo-os assim, talvez cometêssemos a injustiça de celebrar demasiadamente a vaidade dos revolucionários e de ofender um pouco a vaidade, ao fim e ao cabo respeitável, dos conservadores. Ademais, às inteligências universitárias e metódicas a nova classificação pareceria bastante arbitrária, bastante insólita. No entanto, evidentemente, é muito monótono classificar e qualificar sempre os homens da mesma maneira. E, sobretudo, se a humanidade ainda não encontrou um novo nome para os conservadores e os revolucionários, é também, indubitavelmente, por falta de imaginação.