Juventude e integração Sul-americana
O que querem e o que pensam os(as) jovens que participam de organizações e movimentos juvenis na América do Sul? A pergunta orientou a pesquisa qualitativa “Juventude e Integração Sul-Americana”, coordenada pelo Ibase e Pólis, que ouviu, ao longo de 2007, 960 jovens e especialistas em juventude em seis países da América do Sul: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia. No Brasil, o trabalho será apresentado oficialmente no próximo dia 18 de fevereiro, em Brasília, às 10:30, no anexo 2 do Palácio do Planalto, durante a posse do novo Conselho Nacional de Juventude (que reúne 60 representantes do poder público e movimentos sociais).
Por meio de grupos de discussão e entrevistas, os(as) pesquisadores(as) ouviram desde cortadores de cana (Brasil), passando por integrantes de movimentos hip-hop e estudantis até jovens empregadas domésticas (Bolívia). Foram identificadas seis demandas principais, sendo que educação de qualidade (com ênfase na formação profissional), seguida por trabalho decente, é a principal. Há ainda: ecologia, cultura, segurança e transporte (esta última foco das maiores mobilizações recentes de jovens na América do Sul).
O objetivo do trabalho – que tem o apoio do International Development Research Centre (IDRC, do Canadá) e foi executado por instituições locais de pesquisa – é levantar subsídios para a criação e aperfeiçoamento de políticas públicas voltadas para os jovens, especialmente no âmbito do Mercosul (que desde 2006 possui uma instância específica para a formulação de políticas para este segmento). Também foram elaboradas recomendações aos órgãos governamentais que lidam com políticas para a juventude nos países pesquisados.
Resultados
Considerando as dezenove situações estudadas destacamos as seis principais demandas encontradas (estas demandas— bem como recomendações — serão encaminhadas às instâncias dos governos que elaboram políticas para a juventude nos países pesquisados).
Seis demandas para a construção de uma agenda em comum
1 Educação
– A demanda mais presente nas agendas dos segmentos juvenis estudados foi a educacional. A questão da educação se mostra de forma recorrente no vocabulário dos jovens.
– O que principalmente se destaca na fala dos jovens é o reclamo por uma educação pública, gratuita e de qualidade, ainda que suas demandas nessa área se expressem com distintas configurações.
– Os dados demonstram que a universalização do acesso, ou seja, o oferecimento de condições iguais de oportunidades de ingresso, que é uma conquista dos setores mais empobrecidos das populações sul-americanas, não conseguiu responder às desigualdades geradas pelos sistemas educativos. A seleção (inclusão/exclusão) não é mais feita no acesso à escola, mas no seu interior, na trajetória educacional, gerando novas práticas: o desempenho individual, a competição, o chamado fracasso escolar.
– Os jovens denunciam a transitoriedade dos programas, muitos sem o mínimo de garantia de continuidade, que se iniciam gerando grandes expectativas e acabam por desapontar o jovem, levando-o a desacreditar, mais uma vez, na possibilidade de oportunidades.
– Na visão dos jovens, a qualidade pressupõe não só equipamentos e recursos humanos, mas também a aproximação entre educação e qualificação profissional.
– Essas demandas estão nas agendas não apenas de jovens trabalhadores, como o Movimento dos Trabalhadores de Pie (desempregados, na Argentina) e os trabalhadores rurais no Paraguai e do Brasil, mas também nas de jovens vinculados ao hip-hop, do Brasil e da Bolívia.
– A continuidade da formação escolar é vista como modo de conquistar melhores oportunidades de trabalho.
– Os jovens cortadores de cana no Brasil alertam para a necessidade premente em encontrar formas de conciliar trabalho e estudo. De fato, via de regra, os jovens canavieiros entrevistados no Brasil tinham em comum a experiência de abandono da escola. No grupo entrevistado, 80% abandonaram os estudos entre a terceira e a sétima série;
– Entre as variáveis que mais se destacam no que se refere às explicações para o abandono escolar nos países destacam-se: dificuldade de transporte (gratuidade e fácil circulação), migração e conjugação entre o trabalho e a escola.
Educação – Recomendações:
Mais qualidade para garantir mais aprendizagem nos moldes do século XXI.;
Garantia de continuidade do processo de escolarização para além do ensino fundamental. Os jovens se preocupam em ter acesso aos níveis secundário, técnico-profissional e universitário;
Maior flexibilidade nas grades curriculares e nos horários para atender diferentes situações de trabalho e condições de vida. Os jovens querem uma escola que “caiba na vida”.
2 – Trabalho
Nas 19 situações estudadas, a questão do trabalho está presente de forma contundente.
– De um modo geral, percebe-se um movimento bastante forte de jovens buscando oportunidades no mercado de trabalho, tendo como resposta a precarização das condições de trabalho, o desemprego e um conjunto de discriminações ditadas pelo fato de serem jovens.
– A demanda focalizada pelos jovens não é simplesmente por trabalho, mas, sobretudo, por um “trabalho decente”, colocando como pontos básicos para se discutir o tema a remuneração, a estabilidade e os níveis e graus de informalidade.
– De maneira geral, percebem-se jovens profundamente apreensivos pelo ingresso no mercado (o desemprego entre jovens de 15 a 24 anos é de 16% na América Latina, contra uma média de 5% entre adultos – de acordo com dados da OIT e CEPAL).
– Para os jovens de todas as classes e situações sociais, a pressa parece estar relacionada com a consciência de que, submetidos às transformações recentes no mercado de trabalho, o diploma não é mais garantia de inserção produtiva condizente com os diferentes níveis de escolaridade atingida.
– Um dado importante refere-se ao impacto causado pelas mudanças tecnológicas, que alteram significativamente o mercado e criam nichos de emprego onde predominam trabalhadores jovens (como no caso do telemarketing, em São Paulo — em 2006, se chegou a cerca de 675.000 empregados no setor, sendo que 72,5% dos trabalhadores são jovens entre 15 e 29 anos – problemas de saúde são freqüentes, principalmente as doenças psicossomáticas e de esforço repetitivo)..
Trabalho – Recomendações
Investimento em políticas de ampliação das oportunidades de trabalho para os jovens;
Controle rígido das condições de trabalho – salubridade, segurança, condições materiais e legais, adequação e respeito à diversidade (gênero, cultura etc.); remuneração, alimentação, carga horária etc. – oferecidas aos jovens;
Investimento em educação e formação profissional adequadas às demandas do mercado de trabalho;
Garantia de acesso aos meios e bens de produção;
Garantia de espaço para as iniciativas e organizações alternativas e de pequeno porte, principalmente no meio rural, onde a “expulsão” dos pequenos agricultores afeta sobremaneira os jovens.
3 Transporte
O direito à circulação dos jovens tem sido mote de algumas das mais expressivas manifestações públicas produzidas por jovens nos últimos anos na região.
– Historicamente, a circulação tem estado ligada à demanda por direito ao transporte para estudantes, conforme relatado diretamente nas “situações” do Brasil (Revolta do Buzu, Salvador) e do Paraguai (La demanda del boleto estudiantil, da FENAES, Federação Nacional de Estudantes Secundaristas). Indiretamente, a demanda aparece no Chile (Revolta de los Pingüinos, em 2006), e, de forma bastante explícita, entre os jovens trabalhadores em áreas rurais, como é o caso dos jovens canavieiros, em São Paulo, Brasil, e dos jovens vinculados à ASAGRAPA (camponeses), no Paraguai.
– Os jovens trabalhadores rurais denunciam que, para atingir um nível mais elevado de escolaridade, precisam, por muitas vezes, abandonar suas cidades e famílias, pois não existem escolas de educação secundária em muitas das regiões rurais dos países estudados.
– O foco das demandas está nas discussões relativas ao não pagamento das passagens por parte dos jovens que querem estudar. Tal reivindicação aparece como garantia de permanência no sistema escolar.
– Embora demandem equipamentos e atendimentos descentralizados nos seus bairros ou comunidades, os jovens não querem ficar aí “confinados”, querem poder utilizar os equipamentos, os espaços e oportunidades de outros pontos da cidade, querem, portanto, ter o direito à “cidade”.
Transporte – Recomendações
* Seja pela escassez de meios de transporte público, seja pelo custo desse transporte, na cidade ou no meio rural, muitos jovens se vêem cerceados em relação às possibilidades de estudo, trabalho, atendimento de saúde, cultura, lazer, diversão. Mais do que isso, têm sua visão de mundo condicionada à exigüidade do espaço físico ao qual têm acesso.
* É fundamental desenvolver a consciência de que mobilidade é resultado de política pública. É necessário que se atente a essa demanda como condição básica para o próprio exercício da vida democrática.
4 Cultura
A cultura aparece como demanda associada à educação de qualidade na cidade e no campo. Estudantes reivindicam acesso à cultura no espaço escolar e também garantia de acesso a manifestações culturais.
– Na Bahia, Brasil, onde se estudou a movimento de estudantes secundaristas, a reivindicação por subsídio ao transporte para a escola se estende às férias e aos fins de semana justamente como garantia ao acesso às atividades de lazer, cultura e esporte. Entre jovens agricultores da ASAGRAPA (Associação de Agricultores do Alto Paraná, Paraguai), existe a demanda de maior integração da cultura local (guarani) com o sistema escolar.
– Atividades culturais são estratégias de comunicação dos jovens no interior de associações e organizações sindicais. Por exemplo, no Brasil, o SINTRATEL (sindicato), que reúne jovens que trabalham com telemarketing, promove as “assembléias-baladas”. A organização de atividades culturais e esportivas pelo sindicato é uma das primeiras marcas da ‘juvenilização’ de sua diretoria.
– Já o Sindicato dos Empregados Rurais de Cosmópolis, São Paulo, pretende aproximar mais os jovens migrantes canavieiros de suas atividades através de atividades culturais. Na ASAGRAPA (Paraguai) as atividades culturais favorecem a identificação entre os jovens filhos de agricultores.
– No que diz respeito às classes populares urbanas, destaca-se a cultura hip hop que hoje se apresenta como uma marca juvenil mundial. A Família Morro Bom Jesus (Família MBJ), situação estudada nesta pesquisa, é de Caruaru, interior de Pernambuco. A Família MBJ é composta por 13 jovens de dois bairros, cada um destes pertencendo/representando um grupo de rap. Entre estes jovens há uma demanda de educação adaptada à realidade da periferia.
Outro caso estudo foi o de grupos de hip-hop aymara (da Bolívia, cidade de El Alto), que expressam pelo rap demandas por direitos.
Cultura – Recomendações
Ampliar o acesso às NITCs (novas tecnologias de informação e comunicação) . A sigla NTICs começa a freqüentar as pautas de reivindicações juvenis. As NTICs se tornam instrumentos úteis para a circulação de informações sobre vários temas e causas e, ao mesmo tempo, alimentam novas produções culturais.
Garantir meios para o lazer e a fruição cultural e acesso ao patrimônio material e imaterial do país em que vivem;
* Garantir reconhecimento e meios operacionais para viabilizar que as diferentes manifestações artísticas produzidas e apreciadas pelos jovens sejam geradoras de pertencimentos, identidades e inserções produtivas.
5 Segurança
Via de regra, em todas as situações estudadas, os jovens entrevistados, ao falar de violência, evocam as responsabilidades dos poderes públicos.
— Citada como preocupação por quase todos os jovens entrevistados no Brasil, a questão da violência se destaca em duas situações estudadas, a saber: a dos jovens dos projetos do Rio de Janeiro (Fórum de Juventudes do RJ) e a dos jovens do hip-hop. Nos dois casos, a violência que atinge os jovens está relacionada à ação das policias e ao trafico de drogas ilícitas.
— No grupo de hip-hop estudado no Brasil, por exemplo, as letras das músicas denunciam atos de policiais que os vêem como se todos fossem “naturalmente” envolvidos com o crime, mas a Família MBJ (Caruaru, PE) também se empenha em “mostrar para a sociedade que não são bandidos”. Para eles, o antídoto para a violência (policial e do tráfico) são o fortalecimento e a valorização de sua identidade e de sua produção cultural.
— Os jovens entrevistados (do Hip-Hop) demandam mais “aliados e mediadores: isto é, adultos de fora da comunidade que os defendam e os resgatem de situações de arbitrariedade policial por meio de recursos jurídicos que possam coibir a violência que cotidianamente se repõe nas comunidades onde vivem” (Relatório Nacional do Brasil).
Segurança – Recomendações
*A analise das diferentes situações-tipo aponta para a necessidade de políticas públicas de juventude que contemplem: (a) a promoção e a garantia de direitos de cidadania; (b) a valorização da diversidade cultural juvenil; (c) a real integração e complementaridade do eixo “vida segura” com os demais eixos da agenda pública de juventude, sobretudo nas áreas de educação, trabalho, cultura, esporte e lazer.
* Delinear-se uma agenda profunda de reforma, aperfeiçoamento técnico e gerencial e democratização/humanização das instituições policiais, judiciais e penitenciárias em cada um dos países da América do Sul. Neste contexto, o tema sobre “armas de fogo” e “políticas de desarmamento” também é obrigatório.
* Além disso, não há como falar em políticas de redução da violência e de segurança juvenil sem tratar mais profundamente a questão do consumo de drogas ilícitas e da presença do narcotráfico internacional.
6 Ecologia
Em todas as situações estudadas, a “questão do meio ambiente”, embora ocupando lugares distintos na hierarquia de prioridades, mereceu considerações dos jovens entrevistados.
– O Relatório Nacional da Argentina reconstitui os protestos (em 2003) contra a instalação de uma fábrica “de pulpa de celulosa Botnia”, de capital finlandês, em Fray Bentos, cidade uruguaia localizada às margens do Rio Uruguai, fronteira com a Argentina. Formou-se, a partir daí, a AJA (Asamblea Juvenil Ambiental), composta por cerca de 20 adolescentes e jovens de 14 a 24 anos, que se reúnem duas vezes por semana e participam das assembléias gerais. Este movimento teve várias repercussões positivas, influenciando decisões do poder público e motivando ações conjuntas de organizações da sociedade civil (local, nacional e internacional).
– Sem dúvida, por toda a América do Sul, registram-se saídas massivas dos jovens do campo. Porém, simultaneamente, em nome da “agroecologia”, observa-se hoje a predisposição de uma parcela da juventude rural de permanecer no campo.
– Os jovens migrantes cortadores de cana (Brasil) dizem que é preciso “ter mais cuidado com a poluição”; “Tem que preservar muito”; “Tem que pensar melhor. Transtorno no meio ambiente, cada dia destrói mais. O aquecimento acaba com o oxigênio”.
Ecologia – Recomendações
* Recomenda-se a ampliação da noção de “educação ambiental” formal e não-formal. Pensada como espaço de troca de saberes e de experiências, uma educação ambiental criativa deverá favorecer a circulação de informações;
* Fortalecimento de novas áreas de profissionalização ambiental (agentes comunitários ambientais, turismo ecológico etc.)
Observações Gerais da Pesquisa:
Quando perguntados sobre integração latino americana, uma parcela dos jovens entrevistados remete ao passado citando Simon Bolívar e/ou líderes do presente como Evo Morales (presidente da Bolívia) e Hugo Chávez (presidente da Venezuela). No que diz respeito ao movimento estudantil secundarista, a “Revolta dos Pingüins” (movimentação dos estudantes chilenos em 2006) tornou-se um ponto de referência sul-americano. Por fim, o Fórum Social Mundial – em suas diferentes versões regionais e temática – tem se apresentado como uma possibilidade de intercâmbio entre jovens latino-americanos.
Recomendações:
Incentivar Projetos e Programas governamentais e não-governamentais que visem: aumentar o conhecimento sobre a realidade dos jovens sul-americanos; identificar tensões e pontos de convergência; ampliar as possibilidades de maior intercâmbio entre os jovens e suas iniciativas e, como conseqüência, incluir na agenda pública a questão da integração juvenil sul-americana.
Políticas públicas e juventude?
Tendo em vista as 19 situações estudadas, nota-se que não há homogeneidade no que diz respeito ao conhecimento ou reconhecimento de políticas públicas de juventude. Vale salientar, entretanto, que, com a presença ou com a ausência da expressão “políticas públicas de juventude”, os/as jovens sempre evocam os poderes públicos para encaminhar as resoluções de seus problemas.
– No que diz respeito ao que é feito em cada país em termos de Políticas Públicas de Juventude, ainda que a criação de espaços institucionais (todos os países pesquisados possuem órgãos governamentais vinculados às questões juvenis) represente um avanço, as respostas dos entrevistados revelam que são grandes os desafios para a plena vigência dos direitos dos jovens sul-americanos.
Publicado no portal do Ibase em 15/2/2008.
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