Como visão de mundo dominante que legitima e estrutura o sistema capitalista, o liberalismo produz sobre si mesmo uma série de idéias forças que incidem sobre a crise das culturas socialistas. A crítica destas idéias forças é fundamental para a reconstrução da identidade histórica das culturas socialistas.

É possível e necessário fazer a crítica de sete idéias forças que o domínio do liberalismo sobre a cultura política contemporânea produz sobre si mesmo.

A primeira delas é que o liberalismo pressupõe e estimula o anti-estatismo, o Estado mínimo. Ao contrário,a hegemonia do liberalismo inglês no século XIX apoiou-se decididamente na força e na eficácia do Estado, então, mais poderoso do mundo, o inglês. Potência naval e expansão do colonialismo e do comércio inglês; criação da infra-estrutura e dos mecanismos de controle e repressão dos trabalhadores ingleses como fundamento da acumulação industrial; sustentação da moeda e do mercado financeiro mais poderoso do mundo. Este estado forte e expansivo apresentava-se recuado e mínimo para a regulação do capital, para políticas públicas e direitos vinculados à classe trabalhadora. A hegemonia do liberalismo norte-americano no século XX baseou-se também na superpotência do Estado ianque, no plano geopolítico, econômico, militar, financeiro. Até mesmo o surto de inovação tecnológica da economia americana não pode ser explicado na ausência da constituição de um sistema nacional de inovação, com papel central do Estado, desde a experiência da guerra civil. Este estado também forte e expansivo é tímido nas políticas públicas sociais, na regulação do capital e na garantia dos direitos sociais mínimos dos trabalhadores. Assim, a defesa de “menos Estado” para as dimensões sociais e republicanas coincide quase sempre com a defesa de “mais Estado” para o serviço e as transferências de renda para o capital.

A segunda idéia força é aquela que cinde o liberalismo econômico do liberalismo político. Em uma certa tradição italiana, adotada por exemplo por Norberto Bobbio, haveria um “liberismo” (de defesa do livre mercado) e um liberalismo político (fundamental para as dimensões contemporâneas da democracia). Ora, a força hegemônica do liberalismo vem exatamente de ser um princípio próprio de civilização capaz de conjugar coerentemente uma visão do mundo econômico, das instituições políticas, da cultura (em geral com acento no indivíduo calculador e maximizador de sua utilidade). Se perde-se o sentido unitário e mutuamente configurador do liberalismo, em suas várias dimensões, a crítica da economia política liberal ganha um sentido economicista e a crítica das instituições políticas liberais perde a sua raiz social e econômica.

Uma terceira idéia força é a que vincula liberalismo á modernidade, identificando toda as tradições políticas alternativas –sejam socialistas, social-democratas ou simplesmente republicanas – como passadistas, arcaicas, regressivas. A grande narrativa histórica que predomina na alta cultura ocidental sobre a formação da modernidade é aquela de Max Weber que toma exatamente os Estados Unidos da América como a sociedade típica ideal das categorias da modernidade. Para Weber, este país já nasceu moderno, em sua irradiação liberal. Mantendo a esta modernidade uma relação angustiada e crítica sobre seus componentes desumanizantes, Weber, no entanto, não vê como superá-la.Ora, na formação da noção de modernidade ocidental, eventos chaves como o Renascimento, a revolução francesa e a Primeira Declaração Universal dos Direitos do Homem, , as lutas operárias pelos direitos sociais, as lutas das mulheres pelos direitos, os movimentos pela conquista do sufrágio universal, as rebeliões anti-colonialistas que moldaram uma nova face da contemporaneidade mundial são claramente desvalorizados por Weber. Em Weber, uma narrativa liberal da formação do mundo moderno – com ênfase no papel do protestantismo, da ascensão do mercado, do mundo racionalizado e desencantado, da burocracia e da legitimidade positivada na legalidade – ganha um corpo conceitual articulado.

Liberalismo e democracia

É do filósofo italiano Norberto Bobbio a afirmação nítida que estabelece uma relação, ao mesmo tempo, de distinção e de dependência entre liberalismo e democracia. Na maior parte do tempo, o liberalismo não teria sido democrático; mas não há como ser democrata sem aderir a certos valores e instituições liberais. Por sua vez, estes valores e instituições comporiam um grande paradoxo para o socialismo: para ser democrático, o socialismo teria que aceitar “as regras do jogo” da competição parlamentar democrática liberal. Bobbio não pretende resolver este paradoxo, compondo sua identidade de modo “liberal socialista” ou “socialista liberal”, sem apostar em uma síntese mas na tensão entre estas duas tradições.

O paradoxo de Norberto Bobbio só pode ser superado se aceita-se a distinção mas não a dependência da democracia em relação aos valores liberais. Pode-se reconhecer o valor histórico progressivo do liberalismo em relação às ordens feudais ou patrimonialistas européias; mas entre as ordens liberais do século XVIII ou do século XIX, marcadas pelo sufrágio masculino censitário, dependente da renda, com seus direitos restritos e elitistas , e as democracias modernas, mesmo que marcadas dominantemente por instituições liberais, há não simplesmente uma evolução virtuosa, como pretende Bobbio, mas uma diferença qualitativa. Na medida em que articula contemporaneamente o chamado “elitismo democrático” com os privilégios da ordem capitalista, o liberalismo é fundamentalmente um limite histórico para o aprofundamento da democracia. Uma tradição socialista democrática significaria, portanto, uma superação do liberalismo, a construção de novas “regras do jogo” muito mais avançadas no sentido democrático.

Uma quinta idéia força prende-se exatamente à noção que vincula liberalismo de modo exclusivo e unitário ao conceito de liberdade enquanto o socialismo, no seu ardor pela justiça social, teria descurado dos direitos individuais e do pluralismo que são fundamentos da liberdade. Em seu belo livro, “Liberdade antes do liberalismo”, o historiador da filosofia política Quentin Skinner, mostra com nitidez a diferença do conceito de liberdade liberal do conceito de liberdade na matriz republicana. Enquanto o primeiro enfatiza a “liberdade negativa”, isto é, a liberdade como ausência de restrição ao indivíduo por parte do Estado, estabelecendo que quanto menos Estado mais liberdade, a matriz republicana expande o conceito de liberdade para o sentido de autonomia, o que implica a participação do cidadão nas definições da ordem política e a ausência de situações de dependência por parte do cidadão do ponto de vista social e econômico. É evidente que a tradição socialista com suas noções de participação direta e controle social, com sua crítica dos privilégios econômicos, tem muito mais afinidade com a definição republicana de liberdade.

Uma sexta idéia força é aquela que identifica liberalismo a neoliberalismo e limita o campo das alternativas ao neoliberalismo a diferentes composições no campo liberal. Esta visão é muito típica dos noventa, de forte domínio da tradição neoliberal na cultura contemporânea, levando inclusive à crise de muitas tradições socialistas e à atração de parte importante da social-democracia européia para posições próximas às teses do Estado mínimo e do livre mercado. A crítica a esta falsa noção deveria basear-se na historicização da cultura política: o domínio incontestável do neoliberalismo era uma expressão de época; o neoliberalismo significou uma redução, com forte dose de mistificação midiática e propagandística, da própria tradição liberal, que é muito mais ampla e variada; a crise das tradições social-democratas ou socialistas não é agônica ou terminal, havendo uma ampla abertura histórica para a rearticulação destas tradições no século que se inicia.

Por fim, uma sétima idéia força é aquela que entende o liberalismo como uma força homogeneamente cosmopolita, exportável e adotável para as diferentes regiões do mundo. Que o liberalismo desde os seus inícios, na esteira do imperialismo inglês, tenha afirmado uma vocação internacional, não limitada ao Estado nacional mas organicamente vinculada à formação de um mercado mundial, é algo reconhecido inclusive por Marx já no “Manifesto Comunista”. Mas o liberalismo sempre legitimou uma ordem mundial assimétrica de poder e de dinheiro e faz uma diferença decisiva ser liberal no centro ou na periferia do sistema capitalista. Mesmo as correntes mais avançados do liberalismo, como aquela formulada por John Stuart Mill, recusaram uma noção universalista da aplicação dos valores liberais, confiando na progressiva educação dos povos chamados incivilizados, segundo um padrão eurocêntrico. Hoje, na cidadela central do liberalismo , a ordem política regressiva dirigida pelo conservadorismo republicano, com anuência de boa parte do establishment democrata, acolhe a prática de tortura em presos acusados de atentados terroristas.