Elevada abstenção no referendo atingiu sobretudo setores sociais simpáticos a Chávez. Mas, em relação à eleição presidencial de 2006, o aumento dos votos da oposição foi pequeno. Algo ocorreu, portanto, na própria base do presidente.

Marco Aurélio Weissheimer – Carta Maior

A derrota do governo no referendo sobre a proposta de reforma constitucional na Venezuela levantou uma série de interrogações sobre o futuro da Revolução Bolivariana, defendida pelo presidente Hugo Chávez. Os próprios opositores de Chávez, aparentemente, não acreditavam na vitória do “Não”. Nas últimas semanas da campanha, faziam acusações e ameaças nada democráticas em caso de vitória do “Sim”. Acusações, aliás, que não encontram eco na realidade política da Venezuela nos últimos anos. Nenhum outro país da América Latina (e talvez do mundo), realizou, em menos de uma década, duas eleições presidenciais, um referendo para decidir a permanência ou não do presidente e outro para votar uma proposta de reforma constitucional. Tudo isso, com uma tentativa de golpe do Estado no meio, patrocinado por opositores que, em sua maioria, seguem integrados à vida política do país.

Fortalecido por essa sucessão de vitórias, por um crescimento econômico médio de 10% ao ano e por vitórias de aliados em países vizinhos, Chávez tentou aumentar a velocidade do processo político na direção da construção do que chama de socialismo do século XXI. Perdeu por pouco, mas perdeu. Uma derrota inesperada para o presidente venezuelano que já acena com uma nova tentativa de reformar a Constituição por meio de um projeto de iniciativa popular. Antes disso, porém, terá que entender por que perdeu o referendo. Há um dado importante para a avaliação dessa derrota: a elevada abstenção na votação (uma característica das eleições na Venezuela) atingiu principalmente setores sociais simpáticos a Chávez, que não saíram de casa para votar. Em relação à eleição presidencial de 2006 o crescimento dos votos da oposição foi muito pequeno. Algo aconteceu, portanto, na base de apoio ao presidente.

“Alguns dos nossos não jogaram”
Em um artigo publicado no La Jornada, o jornalista uruguaio Raul Zibechi destaca que um de cada quatro venezuelanos que votaram em Chávez, em dezembro de 2006, não foi votar no referendo da proposta de reforma constitucional. Nas eleições presidenciais de 2006, Chávez obteve 7,3 milhões de votos, contra 4,3 milhões dados ao “Sim” no referendo. Por outro lado, o candidato opositor Manuel Rosales recebeu 4,2 milhões de votos em 2006 e o “Não” à reforma obteve 4,5 milhões de votos. Ou seja, assinala Zibechi, houve um pequeno aumento de votos opositores e uma perda de cerca de 3 milhões de votos para Chávez. Considerando o pequeno aumento de votos da oposição, os votos que faltaram a Chávez foram quase que integralmente perdidos para a abstenção (que foi de 25% nas eleições de dezembro e chegou a 44% no referendo).

Os índices de abstenção, observa Zibechi, foram maiores nos bairros populares, onde Chávez tem grande apoio. Para o jornalista, isso indica, que as principais razões para entender a derrota de Chávez no referendo devem ser buscadas nos setores sociais que vem apoiando seu governo e não no crescimento da oposição, com apoio dos EUA. O próprio Chávez, recorda, deu pistas sobre o que aconteceu, quando disse que “alguns dos nossos não jogaram, ficaram parados e deixaram a bola passar”. Na avaliação de Zibechi, não há nenhum elemento que permita concluir que os 3 milhões de venezuelanos que votaram em Chávez há um ano decidiram agora voltar às costas para suas políticas. “Não é o mesmo escolher entre Chávez e a direita e escolher a favor de um modelo que não teve nem tempo nem vontade de submeter-se a um debate aberto. No imaginário coletivo, socialismo não é outra coisa que um grande aparato estatal centralizado dirigido por uma enorme burocracia. Não é algo assim que estava nascendo na Venezuela ao calor do PSUV (partido único chavista) e dos novos dirigentes estatais?” – indaga Zibechi.

Debilidade do trabalho político
O sociólogo argentino Atílio Borón, em artigo publicado no jornal Página 12, segue na mesma linha de Zibechi, destacando que a grande maioria dos que não foram votar faz parte da base social de apoio a Chávez. “Para muitos venezuelanos, a eleição não era importante, o que explica os 44% de abstenção”, diz Borón. Isso revela, segundo ele, “a debilidade do trabalho de construção hegemônica e de conscientização ideológica dos bolivarianos junto às classes populares”. O sociólogo também chama a atenção para o fato de que alguns prefeitos e governadores chavistas não se empenharam a fundo em defesa da reforma constitucional que democratizaria, em detrimento de suas atribuições, a organização política do Estado ao criar novas instituições de poder popular. Além disso, acrescenta, e preciso levar em conta que, após nove anos no poder, qualquer governo sofre um desgaste ou deixa de suscitar o entusiasmo coletivo de alguns anos.

Apesar destes problemas, Borón considera que Chávez sai bem do processo do referendo, com o fortalecimento de suas credenciais democráticas. “A oposição realizou seus comícios dizendo que jamais aceitaria uma vitória do Sim. Caso isso ocorresse, repudiariam o resultado, denunciando-o como produto de fraude e poriam em marcha o Plano B da Operação Alicate (uma tentativa de levante nas ruas do país). Os autodenominados democratas confessavam que só se comportariam como tais em caso de vitória de sua posição; se não, sua resposta seria a sedição”, assinala o sociólogo argentino, que acrescenta: “Imaginemos que tivesse ocorrido a vitória do Sim pela mesma escassa margem. Os porta-vozes da ‘democracia’, teriam incendiado a Venezuela” “Apesar de sua derrota”, conclui Borón, “a estatura moral de Chávez e sua fidelidade aos valores da democracia converte em pigmeus a seus adversários oportunistas, que só respeitam o resultado das urnas quando este os favorece”.

Um alerta para Chávez
Autor do livro “A Venezuela que se inventa” (Editora Fundação Perseu Abramo), o jornalista e historiador Gilberto Maringoni disse, em entrevista ao Correio da Cidadania, que o resultado das urnas na Venezuela é um alerta a Chávez que aponta, entre outras coisas, para a necessidade de uma reaproximação com setores moderados, simpáticos ao presidente. Além disso, representaria um recado claro acerca das insuficiências do processo de reformas iniciado com a chegada do presidente ao poder em 1999. Um dos problemas que devem ser enfrentados, defende Maringoni, diz respeito à formação do Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV). “É um partido criado de cima para baixo, que foi formado desta maneira pois não existem movimentos sociais autônomos da Venezuela. O partido tem 6 milhões de militantes, mas estes não compareceram às urnas. Se o tivessem feito, as mudanças na Constituição teriam sido aprovadas”, afirma.

Para Maringoni, há problemas na estruturação do partido e em sua participação no governo. “O governo Chávez tem uma característica de não ter sido resultado de movimentos de massa, mas sim de um cansaço popular com o projeto neoliberal das décadas de 80 e 90 e da crise vivida no país que não resultou em um crescimento da mobilização popular. Isso fez com que não houvesse movimentos autônomos. O que existe são iniciativas políticas populares tomadas pelo governo”, sustenta. Uma das conseqüências desse processo, acrescenta Maringoni, é que “o grau de fragmentação da sociedade venezuelana resultante dos 40 anos de democracia do Pacto do Ponto Fijo, estabelecido em 1961, e da crise estrutural enfrentada no país durante os anos 1980 e 1990 criou uma sociedade com um potencial de rebeldia muito grande, mas de escassa organização”.

Na avaliação do jornalista e historiador, o governo sairá enfraquecido do referendo. Para ele, a direita tentará se reanimar na Venezuela, na Bolívia e no Equador. “Se o governo venezuelano conseguir resolver os seus problemas, reaglutinar suas bases, se reaproximar dos setores moderados que momentaneamente se afastaram de Chávez, pode se fortalecer, sim. Chávez não deverá moderar os objetivos estratégicos do processo na Venezuela, mas sim aprimorar sua flexibilidade tática para conseguir conviver com diferenças internas”, diz Maringoni, que lembra um dado econômico importante que até aqui vem sendo aliado de Chávez. “O país cresce a 10% ao ano, e é muito difícil Chávez cair com estes índices. Agora, se isso acontecer, será algo muito preocupante”.

Ingresso no Mercosul
A derrota no referendo trouxe, porém, um elemento positivo para Chávez. O fato de reconhecer a legitimidade do resultado desarmou as críticas dos opositores, dentro e fora do país, que o acusavam de querer implantar uma ditadura comunista na Venezuela. Opositores, aliás, que ameaçavam não reconhecer uma vitória do “Sim”, antes da realização do referendo. A postura de Chávez pode fortalecer o processo de entrada da Venezuela no Mercosul, que vem sendo alvo de combate por parte de setores conservadores, especialmente no Congresso brasileiro. Esses setores falam da necessidade de respeitar as cláusulas democráticas como critério para o ingresso de um país no bloco sul-americano. Chávez submeteu-se ao voto mais uma vez, perdeu e aceitou o resultado. Um exemplo que, ao longo da história da América Latina, não foi seguido pelos setores conservadores que hoje procuram demonizar Chávez.

Publicado na Agência Carta Maior em 10/12/2007
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