O livro “O Capital de Marx (uma biografia)”, de Francis Wheen (Rio de Janeiro, Zahar, 2007), recém editado no Brasil traz uma narrativa cheia de vida e cor do nascimento, gestação e vida póstuma da obra que continua a assombrar os destinos do capitalismo.

“A queda da burguesia e a vitória do proletariado não se concretizaram. Mas, na obra de Marx, os erros ou profecias não cumpridas sobre o capitalismo são ofuscados e transcendidos pela acurada precisão com que revelou a natureza deste monstro. Enquanto tudo que é sólido continuar se desmanchando no ar, o vívido retrato feito em O Capital das forças que governam nossas vidas – e da instabilidade, alienação e exploração que produzem – jamais perderá a ressonância ou o poder de colocar o mundo em foco. Como o artigo da New Yorker de 1997 (escrito por Marshal Berman) conclui: ‘Valerá a pena ler seus livros enquanto perdurar o capitalismo.’ Longe de ter sido soterrado pelos destroços do Muro de Berlim, Marx só agora emerge em seu verdadeiro significado. Ele ainda pode vir a ser o mais influente pensador do século XXI.” Assim, com um recomeço e uma abertura para o futuro, termina o belo livro de Wheen.

Wheen segue aqui o curso da leitura proposta por Marshall Berman que identifica a própria incompletude da obra tardia de Marx ao “modernismo descontínuo do nosso século”. Para este, o autor de O Capital seria “um dos gigantes atormentados do século XIX – ao lado de Beethoven, Goya, Tolstói, Dostoiévski, Ibsen, Nietzche e Van Gogh – que nos angustiam com sua própria loucura, mas cuja agonia engendrou grande parte do capital espiritual de que ainda nos nutrimos.”

Voltar a ler esta obra magnífica, pela primeira vez editada no Brasil pela Abril Cultural, em seis volumes a partir de 1983, com tradução de Regis Barbosa e Flavio Kothe, sob a coordenação e revisão técnica de Paul Singer, é talvez o sopro, o alento, o desejo que o estilo literário brilhante de Wheen excita no leitor.

A gestação

Se tomarmos como ponto de partida os primeiros estudos e escritos de Marx em economia política, a publicação do primeiro volume de O Capital em 1867 veio à luz após 23 anos de trabalho. O segundo volume (compilado por Engels, a partir dos rascunhos deixados por Marx, falecido em 1883) apareceu apenas em 1885 e o terceiro em 1894. O que se denomina “quarto volume” – Teorias da mais-valia – só foi editado em 1905, com base nos trabalhos de Karl Kautsky sobre as anotações de Marx.

No ano de 1858, em uma informação ao editor, Marx havia escrito que sua “exposição crítica do sistema da economia burguesa” se dividiria em seis livros: 1. O Capital (com alguns capítulos introdutórios). 2. A propriedade territorial. 3. O trabalho assalariado. 4. O Estado. 5. O comércio internacional. 6. O mercado mundial.” Fica evidente a natureza não apenas de rascunho de boa parte da obra publicada (os volumes II, III e IV), como também a sua incompletude.

A vida que se fez para a obra. Não se trata apenas de compreender o cruciante auto-sacrifício que Marx impôs a si e a seus familiares para empreender o seu gigantesco trabalho teórico. O liberalismo moderno resultou de um diálogo entre várias gerações de filósofos e economistas; a crítica moderna do liberalismo firmou os seus fundamentos a partir do trabalho concentrado de um autor. Exilado, perseguido, vivendo em precaríssimas condições, apesar da ajuda do seu fraternal amigo Engels, Marx perdeu três filhos e forçou a sua saúde ao limite do desumano. “Minha doença sempre se origina na mente”, admitia Marx em uma carta. O estilo do livro estaria “manchado de problemas biliares”. A revisão final do primeiro volume foi feita em parte em pé, quando uma crise de hemorróidas o impediu de sentar-se. O arsênico, anestésico usual, “entorpece meu pensamento, e eu preciso manter a cabeça no lugar.” Quando terminou, teria praguejado, segundo o seu biógrafo: “em todo caso, espero que a burguesia se lembre de meus furúnculos até o dia da sua morte”.

O nascimento

O centro da tese do livro é que a produção cada vez mais social da riqueza no capitalismo entra em contradição cada vez maior com a sua apropriação privada. A conseqüência do aumento da riqueza social é, portanto, um aumento do pauperismo oficial. “Essa é a lei geral da acumulação capitalista”, que “como todas as outras leis, é modificada em sua realização por variadas circunstâncias, cuja análise não cabe aqui fazer.” A noção de pauperismo não abarca apenas a dimensão monetária, não devendo ser lida em uma chave economicista. Trata-se da aniquilação do espírito humano; “mutilam-no, transformam-no em um fragmento de homem, degradam-no e convertem-no em um apêndice da máquina…”

Em 1976, um livro de 450 páginas, escrito por S.S. Prawer, dedicou-se inteiramente a recuperar as referencias literárias de Marx contidas no primeiro volume de O Capital. Há citações “a Bíblia, de Shakespeare, Goethe, Milton, Voltaire, Homero, Balzac, Dante, Schiller, Sófocles, Platão, Tucídides, Xenofonte, Defoe, Cervantes, Dryden, Heine, Virgílio, Juvenal, Horácio, Thomas More, Samuel Butler – além de alusões a narrativas de terror sobre lobisomens e vampiros, panfletos alemães, obras do romantismo inglês, baladas populares, canções e jingles, melodrama e farsa, mitos e provérbios.”

Não se trata certamente de um recurso de forma ou de ilustração de um argumento que se organiza em um campo analítico complexo e de penosa leitura. Sessenta anos depois de ter lido O Capital, na edição francesa no Museu Britânico, Bernard Shaw escreveria: “Apenas no século XIX, quando Karl Marx extraiu os relatórios dos inspetores de fábricas de nossos esquecidos livros azuis e revelou todas as atrocidades do capitalismo, o pessimismo e o cinismo atingiram a mais sombria profundidade. Ele comprovou exatamente que o capital, ao buscar aquilo que denominou Mehrwerth, que traduzimos por mais-valia (e incluiu aluguel, juros e lucros comerciais), é implacável, e nada o deterá, nem mesmo mutilação, massacre, escravidão branca e negra, droga e bebida, caso prometam-lhe um xelim a mais que os dividendos da filantropia. Antes de Marx, houvera bastante pessimismo. Na Bíblia, o livro do Eclesiástico está cheio disso. Shakespeare, em Rei Lear, Timão de Atenas, Coriolano, bebeu dessa fonte e se fartou. O mesmo fizeram Swift e Goldsmith. Porém, nenhum deles pôde documentar a questão a partir de fontes oficiais como Marx fez.”

Um novo mundo é necessário, seguindo Bernard Shaw. Na Rússia, traduzido por um populista de São Petersburgo, Nikolai Danielson, o livro teve surpreendente acolhida, tendo sido vendida em um ano a edição de três mil exemplares. Por ironia, o livro passou pelos censores do czar, com o argumento de que não teria qualquer aplicação na Rússia.

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