Na política européia, o baralho é manuseado pelo campo conservador. Quem está à esquerda tem de olhar para o Sul para ver a dimensão da mudança na cena política. Na Itália, Berlusconi e Bento XVI ainda têm os trunfos na mão.

Flávio Aguiar

É difícil caracterizar bem a cena: foi Ségolène Royal, do Partido Socialista francês, que foi prestigiar a esperada vitória de Cristina Fernandez Kirchner na Argentina, ou foi a vitória de Cristina que, com a presença de Ségolène, deu um novo élan ao prestígio da colega francesa?

Porque na Europa, na cena política convencional, quem dá as cartas são os conservadores de todos os naipes e de todos os trunfos. Na Polônia, foi necessário o conservador Donald Tusk derrotar o ultra-conservador Jaroslaw Kaczynki para que o quadro político mudasse. Na Suíça, a vitória de Cristoph Blocher, com uma campanha xenófoba e reacionária, animou as direitas por todo o continente. Na Alemanha, em que pese a tentativa de guinada a bombordo (à esquerda) do Partido Social-Democrata, e a fundação do novo partido Die Linke (A Esquerda), quem dá as cartas é a democrata cristã Ângela Merkel, com sua política de adotar o ambientalismo à Al Gore como bandeira tanto interna quanto mundial, e um assistencialismo bastante eficaz em relação a minorias desassistidas.

Na política mundial a estrela é Putin, às voltas com a reedição da Guerra Fria por parte do governo Bush, que, ao mesmo tempo, procura cercar o Irã e manter o cerco à Rússia. E nada mais czarista, embora em ponto menor, do que a política de Putin no momento. E por aí vai.

Na Itália as coisas não são diferentes. Berlusconi e Bento XVI estão à solta, e isto vai comprimindo o campo dos adversários. Berlusconi está em alta novamente, diante de um governo de centro-esquerda, o de Romano Prodi, que é seguidamente descrito na imprensa como em fase terminal.

No Vaticano, neste fim de semana que passou, oficializou-se a beatificação de quase 500 religiosos católicos mortos na Guerra Civil Espanhola, entre eles 2 bispos e 24 padres. Sabe-se que a Guerra Civil foi pródiga em atrocidades de parte a parte, mas o movimento da Cúria Romana reforça, por mais que os seus porta-vozes assegurem que o único interesse dessa beatificação é o religioso, a direita tanto na Espanha quanto na Itália. Felizmente a festa não foi o que seus promotores esperavam, pois os mais entusiastas prometiam colocar na praça da Santa Sé um milhão de pessoas. Conseguiram uma estimativa oficial de 30 mil, e olhe lá, porque entre estas havia muitos dos tradicionais turistas que lá ocorrem nos domingos.

Neste cenário, realizou-se o primeiro congresso do novo Partido Democrático, fundado com a liderança de Walter Veltroni, o atual prefeito de Roma. A retórica de Veltroni é a da modernização da política italiana. Uma modernização pós-moderna, é claro, com a insistência na tecla de que a política deve assumir uma cultura de eficiência empresarial.

Veltroni foi diretor do jornal L’Unitá, do antigo Partido Comunista Italiano, fundado (o jornal) por Antonio Gramsci. Converteu-se a novos valores com a débâcle do comunismo em escala mundial, e assumiu que seus avatares são perfis como os de John Kennedy e Tony Blair. O que isto vai dar na cena italiana ainda não se sabe. A primeira decisão de Veltroni é espinhosa: se ajuda ainda a manter o combalido governo de seu mestre e amigo Prodi, ou se lhe retira o apoio, apressando seu fim e abrindo caminho para sua ascensão, quando terá de enfrentar a estrela de Berlusconi e a sombra de Bento.

O Partido Democrata reúne de membros centristas da Democracia Cristã a ex-comunistas que não aceitam a liderança de Prodi. Seus números são impressionantes. Cerca de 3 milhões de eleitores (inclusive de diferentes partidos) escolheram os 2853 delegados para o congresso, e escolheram Veltroni como secretário-geral. Dos delegados, 50% são delegadas, o que mostra a presença do novo PD nessa nova tendência mundial de o eleitorado se voltar para as mulheres como preferência.

A cena vem sendo descrita na imprensa européia como algo que põe fim às antigas desavenças de dois personagens romanescos na literatura italiana, o comunista Peppone e o padre Dom Camilo (vivido no cinema por Fernandel), que fizeram a alegria da minha geração quando muito jovem. Mas, por outro lado, há comentários de que esse partido tem uma plataforma discursiva tão ampla que qualquer um poderia nele sentir-se bem. Ou mal, quem sabe.

Publicado em 29/10/2007 na Agência Carta Maior