Artigo: Des-democratização
Se a sociedade politicamente organizada não acionar processos de re-democratização, pode estar em causa a sobrevivência da democracia. O que vem não será uma ditadura. Será uma ditamole ou uma democradura.
por Boaventura de Sousa Santos
Os regimes democráticos são regimes em movimento. Verdadeiramente não há democracia; há processos de des-democratização e de re-democratização. O que caracteriza uns e outros são as transformações que ocorrem nos vínculos políticos que unem o Estado e os cidadãos comuns e os vínculos sociais que unem os cidadãos entre si. Estes processos nunca se confinam exclusivamente ao Estado; ocorrem também na sociedade. Identificar os processos dominantes num dado momento é fundamental para tomar o pulso à qualidade da vida política e social. Os fatores que os condicionam variam de país para país mas há também evoluções convergentes a nível internacional das quais é possível de deduzir o espírito da época.
As três últimas décadas caracterizaram-se por um conflito muito intenso entre processos de democratização e de re-democratização, por um lado, e de des-democratização, por outro. Ao mesmo tempo que se democratizaram os sistemas políticos – Sul da Europa, anos setenta, Europa Central e de Leste, África e América Latina, anos oitenta e noventa – des-democratizaram-se as sociedades com o aumento das desigualdades sociais, da violência e da insegurança pública.
Tudo indica que este conflito foi decidido a favor dos processos de des-democratização que hoje, com a possível exceção de alguns países da América Latina, dominam o nosso tempo. Eis os sinais mais evidentes. Quando as desigualdades sociais se aprofundam, as políticas públicas, em vez de as reduzirem, ratificam-nas. Exemplos: eficácia fiscal centrada nas classes médias; precarização do emprego com as mudanças no direito do trabalho que se anunciam; a degradação do serviço nacional de saúde. A proteção dos cidadãos e dos não cidadãos contra atos arbitrários do Estado ou de outros centros de poder económico está a diminuir.
Exemplos: o encerramento de centros de saúde sem avaliação de custos sociais; o desemprego decorrente das deslocalizações das empresas; a suspensão da regularização dos imigrantes. A falta de transparência das decisões e ausência de controle dos cidadãos sobre as políticas públicas.
Exemplos: a corrupção endémica; o tráfico de influências que domina as privatizações e os investimentos públicos. O aumento da violência e da insegurança pública. Exemplos: a incompreensível descoordenação entre as forças de segurança; a pasmosa falta de modernização dos meios de investigação criminal ante um crime cada vez mais modernizado; ausência de critérios para organizar o Estado segundo uma lógica territorial (serviços básicos) e uma lógica operacional (serviços especializados).
A des-democratização que ocorre no Estado é paralela à que ocorre na sociedade. Degradam-se as redes de confiança e de solidariedade; medicaliza-se a solidão e a angústia; reduz-se ao mínimo a aspiração familiar (a decisão de não ter filhos); eleva-se ao máximo o stress familiar quando há crianças e estas são as primeiras vítimas. Se a sociedade politicamente organizada não acionar processos de re-democratização, pode estar em causa a sobrevivência da democracia. O que vem não será uma ditadura. Será uma ditamole ou uma democradura.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).