Por Raquel Rolnik

 

Por Raquel Rolnik

Depois de 11 anos de negociações e adiamentos, o Congresso aprovou o Estatuto da Cidade, lei que regulamenta o capítulo de política urbana da Constituição de 1988. Encarregada de definir o que significa cumprir a função social da cidade e da propriedade urbana, a nova lei delega esta tarefa para os municípios, oferecendo para as cidades um conjunto inovador de instrumentos de intervenção sobre seus territórios, além de nova concepção de planejamento e gestão urbanos.

As inovações contidas no estatuto situam-se em três campos: novos instrumentos de natureza urbanística voltados para induzir – mais do que normatizar – as formas de uso e ocupação do solo; nova estratégia de gestão que incorpora a idéia de participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o destino da cidade e a ampliação das possibilidades de regularização das posses urbanas, até hoje situadas na ambígua fronteira entre o legal e o ilegal.

No primeiro conjunto – dos novos instrumentos urbanísticos –, a evidente interação entre a regulação urbana e a lógica de formação de preços no mercado imobiliário é enfrentada por dispositivos que procuram coibir a retenção especulativa de terrenos e de instrumentos que consagram a separação entre o direito de propriedade e o potencial construtivo dos terrenos atribuído pela legislação urbana. A partir de agora, áreas vazias ou subutilizadas, situadas em áreas dotadas de infra-estrutura, estão sujeitas ao pagamento de IPTU progressivo no tempo e à edificação e ao parcelamento compulsórios, de acordo com a destinação prevista para a região pelo Plano Diretor.

A adoção deste instrumento pode representar uma luz no fim do túnel para as cidades que, em vão, tentam enfrentar a expansão horizontal ilimitada, avançando vorazmente sobre áreas frágeis ou de preservação ambiental, que caracterizam nosso urbanismo selvagem e de alto risco. Que cidade média ou grande de nosso país não tem uma ocupação precocemente estendida, levando os governos a uma necessidade absurda de investimentos em ampliação de redes de infra-estrutura – pavimentação, saneamento, iluminação, transporte – e, principalmente, condenando partes consideráveis da população a viver em situação de permanente precariedade? Que cidade média ou grande de nosso país não é obrigada a transportar cotidianamente a maior parte da população para os locais aonde se concentram empregos, oportunidades de consumo e de desenvolvimento humano, desperdiçando inutilmente energia e tempo?

Ainda no campo dos instrumentos urbanísticos, o Estatuto consagra a idéia do Solo Criado, através da institucionalização do Direito de Superfície e da Outorga Onerosa do Direito de Construir. A idéia é muito simples: se as potencialidades dos diferentes terrenos urbanos devem ser distintas em função da política urbana (áreas que em função da infra-estrutura instalada devem ser adensadas, áreas que não podem ser intensamente ocupadas por apresentarem alto potencial de risco – de desabamento ou alagamento, por exemplo), não é justo que os proprietários sejam penalizados – ou beneficiados – individualmente por esta condição, que independe totalmente de sua ação sobre o terreno. Desta forma separa-se um direito básico, que todos lotes urbanos devem possuir, dos potenciais definidos pela política urbana.

Vozes críticas em relação a estes novos dispositivos tentaram, durante o longo o processo de tramitação, caracterizar estes instrumentos como ‘mais um imposto’ ou ‘confisco de um direito privado’. Este discurso procura inverter o que realmente ocorre em nossa cidades – a apropriação privada (e na mão de poucos) da valorização imobiliária decorrente dos investimentos públicos e coletivos, pagos pelos impostos de todos. Além de configurar um confisco, este mecanismo perverso é de tal forma alimentado pela desigualdade de condições urbanas que caracteriza as nossas cidades, que acaba sendo responsável também por instaurar um urbanismo condenado a um modelo excludente: as poucas áreas que concentram as qualidades de uma cidade bem desenhada e equipada são destinadas para os segmentos de maior renda. Para os mais pobres, em nosso país as maiorias, resta a ocupação das franjas, das áreas longínquas ou pouco aptas para urbanizar como as encostas de morros, as beiras de córrego, os mangues. Desta forma uma poderosa máquina de exclusão territorial é posta em operação, monstro que transforma urbanismo em produto imobiliário, negando à maior parte dos cidadãos o direito a um grau básico de urbanidade.

Mas não reside apenas na regulamentação deste conjunto de instrumentos a importância do Estatuto da Cidade. Na verdade, pela primeira vez em nossa história, temos uma regulação federal para a política urbana que se pratica no país, definindo uma concepção de intervenção no território que se afasta da ficção tecnocrática dos velhos Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado, que tudo prometiam e nenhum instrumento possuíam para induzir a implementação do modelo idealizado proposto. De acordo com as diretrizes expressas no Estatuto, os Planos Diretores devem contar necessariamente com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos econômicos e sociais, não apenas durante o processo de elaboração e votação, mas, sobretudo, na implementação e gestão das decisões do Plano.

Assim, mais do que um documento técnico, normalmente hermético ou genérico, distante dos conflitos reais que caracterizam a cidade, o Plano é um espaço de debate dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e negociadas, por uma estratégia de intervenção no território. Não se trata aqui da tradicional fase de ‘consultas’ que os planos diretores costumam fazer – a seus interlocutores preferenciais, ‘clientes’ dos planos e leis de zoneamento, que dominam sua linguagem e simbolização. O desafio lançado pelo Estatuto incorpora o que existe de mais vivo e vibrante no desenvolvimento de nossa democracia: a participação direta (e universal) dos cidadãos nos processos decisórios. Audiências públicas, plebiscitos, referendos, além da obrigatoriedade de implementação de orçamentos participativos são assim mencionados como instrumentos que os municípios devem utilizar para ouvir, diretamente, os cidadãos em momentos de tomada de decisão sobre sua intervenção sobre o território.

Ainda no campo da ampliação do espaço da cidadania no processo de tomada de decisões sobre o destino urbanístico da cidade, o Estatuto da Cidade prevê o Estudo do Impacto de Vizinhança para empreendimentos que a lei municipal considerar como promotores de mudanças significativas no perfil da região onde se instalar e inclui a obrigatoriedade de controle direto, por representação da sociedade civil,das Operações Urbanas.

Operações Urbanas, de acordo com o Estatuto, são definições específicas para uma certa área da cidade que se quer transformar, que prevêem um uso e uma ocupação distintos das regras gerais que incidem sobre a cidade e que podem ser implantadas com a participação dos proprietários, moradores, usuários e investidores privados. O Estatuto da Cidade admite a possibilidade de que estas operações ocorram; entretanto exige que em cada lei municipal que aprovar uma Operação como esta deva ser incluído obrigatoriamente o programa e projeto básicos para a área, o programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação e o estudo de impacto de vizinhança. Com estas medidas se procura evitar que as operações sejam somente ‘liberações’ de índices construtivos para atender a interesses particulares, ou simples operações de valorização imobiliária que impliquem expulsão de atividades e moradores de menor renda.

O terceiro conjunto de instrumentos trata da regularização fundiária de área ocupadas – e não tituladas – da cidade. Os números não são precisos, porém podemos afirmar que mais da metade de nossas cidades é constituída por assentamentos irregulares, ilegais ou clandestinos, que contrariam de alguma forma as formas legais de urbanização. Uma parte significativa destes assentamentos é composta por posses de propriedades públicas ou privadas abandonadas ou não utilizadas. Desde os anos 70, os municípios vêm investindo nas chamadas favelas, reconhecendo sua existência como parte da cidade.

Entretanto, embora a urbanização das favelas venha sendo defendida e praticada há décadas, a titularidade definitiva destas áreas para seus verdadeiros moradores vem esbarrando em processos judiciais intermináveis e enormes dificuldades de registro junto aos cartórios. Para enfrentar esta questão, o Estatuto aprovado no Congresso previa a regulamentação do usucapião (inclusive coletivo) para regularizar posses em terrenos privados e a concessão do direito real de uso para imóveis públicos ocupados por posseiros. Tanto o usucapião como a concessão só se aplicariam para imóveis até 250 metros quadrados, que são a única moradia do ocupante, que se encontra na terra há mais de 5 anos, sem contestação por parte do proprietário legal.

Infelizmente, o presidente ao sancionar a lei vetou todos os artigos referentes à concessão, permanecendo apenas o usucapião. Isto que dizer que as ocupações de imóveis públicos – que são na verdade a maior parte das terras onde se encontram as favelas em nossa cidades – ainda não estão sendo tratadas por lei federal. É lamentável que estes artigos tenham sido vetados. Sabemos que embora nada impeça que as prefeituras façam a concessão de terrenos de sua propriedade, as cidades urbanizam mas não conseguem regularizar a propriedade de bairros inteiros que estão assentados sobre terras pertencentes a entes estaduais ou federais.

Neste ponto, as críticas, temores (ou justificativas) que fundamentaram as posições contrárias à permanência da Concessão no Estatuto se apoiaram em um discurso ambientalista para defender uma possível tomada massiva de áreas frágeis ou de preservação ambiental de propriedade de entes públicos. Ora, se os imóveis, públicos ou privados, têm outra destinação (inclusive permanecer vazios para fins de preservação ambiental), seus proprietários podem solicitar a reintegração e as áreas passam a não ser mais passíveis de usucapião ou concessão.

Muitas cidades no Brasil não esperaram o Estatuto para aplicar – com êxito – estas inovações. Um Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que desde a Constituinte vem lutando pela aprovação do Estatuto, tem também atuado a nível local para romper o cinismo dominante na política urbana que se pratica no país, que de um lado reitera nos planos e leis uma regulação urbanística excludente e de outro negocia, na administração do dia a dia, com os interesses pontuais e corporativos através de práticas clientelistas e de compra de votos.

O Estatuto abre uma nova possibilidade de prática, apresentando uma nova concepção de planejamento urbano, mas depende fundamentalmente do uso que dele fizerem as cidades. Boa parte dos instrumentos, sobretudo urbanísticos, dependem dos Planos Diretores; outros de legislação municipal específica que aplique o dispositivo na cidade. Os cidadãos têm, entretanto, o direito e o dever de exigir que seus governantes encarem o desafio de intervir, concretamente, sobre o território, na perspectiva de construir cidades mais justas e belas.


Artigo originalmente publicado no Jornal do Brasil de 15/07/2001.
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