Memória: Ausência e presença
A maior homenagem a Beth é assumir de forma radical a defesa da plena cidadania das mulheres.
por Marco Aurélio Garcia
Elizabeth Lobo no 1° Seminário de Formação sobre a Questão da Mulher Trabalhadora, Baixada Santista, 1989. Foto reproduzida da revista: Teoria & Debate, n° 14, junho 1991 (Arquivo de Família) |
Marco Aurélio Garcia*
“Nunca fomos de falar, ele e eu. Traficantes de palavras – ele por vocação e aprendizado consciente, eu por acidente – não acreditávamos na nossa mercadoria. As palavras servem para encher o vazio, são dispensáveis onde não há o vazio. Nunca foram necessárias ao nosso convívio. E se nunca precisei dizer a ele o que sentia, certamente não preciso dizer em público”.
Estas palavras foram escritas pouco após a morte de Érico Veríssimo, por Luis Fernando, seu filho, na coluna diária que mantém na imprensa. Há muitos anos, ainda em nosso exílio em Vincennes, Elisabeth recortou o pedaço de jornal onde estavam impressas e prendeu-o nestes quadros que muitos de nós mantemos na parede.
Desde que voltamos ao Brasil, em 79, o recorte continuou no quadro de seu escritório e lá continua. Poderia interpretar de muitas formas esta mensagem na parede. Elisabeth sucumbira a um belo e conciso texto, por exemplo, e o utilizava talvez para expressar os sentimentos que lhe provocaram a perda de seu pai durante nosso exílio. Mas, ao reler aquelas palavras, sob a aparente homenagem à discrição, creio haver encontrado a expressão de suas convicções mais profundas sobre as relações entre o público e o privado.
Mostrava suas reservas para com aqueles que “todos os dias fazem publicamente a toillette de suas almas”, para repetir as mordazes palavras de Sartre em relação a Gide e Valéry.
Espero ser fiel a esta indicação e por isto não vejo razão, nem interesse, para falar dos sentimentos de ausência e perda que me atravessam e, imagino, que a todos aqueles que estiveram muito próximos de Elisabeth, não apenas no plano intelectual e político.
Não creio, no entanto, que esta fundada discrição me iniba de falar da Elisabeth que tantos conhecemos, a intelectual, a feminista e a militante. Ao fazê-lo, não quero empreender uma dolorosa volta ao passado, falando de sua ausência, mas situá-la no futuro. Quero falar de sua presença entre nós.
Muitos de seus amigos, colegas e companheiros mencionaram que Elisabeth nos deixou em um momento luminoso de sua vida, quando sua reflexão havia atingido maturidade.
Com efeito, suas pesquisas sobre as classes trabalhadoras, em especial sobre a condição da mulher trabalhadora, haviam transcendido o espaço de uma reflexão sobre um objeto específico de conhecimento e se transformado em olhar mais abrangente e profundo sobre a sociedade e a política. Este resultado – do qual temos algumas indicações em seus últimos escritos e reflexões eram a conseqüência não só de uma extraordinária disciplina intelectual, que ela exercia cotidianamente com a obstinação de uma artesã, mas também da forma pela qual articulava o conhecimento e a política.
Por mais que o dia-a-dia da militância a irritasse, ela nunca foi capaz de dissociar sua atividade intelectual da política, o que se refletia não só na escolha de seus objetos de preocupação, como também, e principalmente, na forma de sua abordagem. Por esta razão, como intelectual, não teve dificuldades de aderir ao PT desde antes mesmo de sua fundação, participando em todos os momentos de sua construção.
Como intelectual, igualmente, mas sobretudo, como mulher, experimentou as dificuldades que estão reservadas para umas e outras na militância política. A tradição de esquerda não atribuiu sempre bons lugares para os intelectuais.
Antigas concepções, que começaram a desmoronar ruidosamente nos últimos anos, mas que ainda hoje persistem, conferiam aos intelectuais um papel superior na vida política, ao considerá-los supostamente decifradores das verdades históricas, cujo, “segredo” não era acessível ao mais comum dos mortais, especialmente aos trabalhadores. Estas concepções transformaram, muitas vezes, os intelectuais em arrogantes personagens que mais se pareciam com infalíveis oráculos.
A reação a esta postura foi com freqüência simetricamente oposta. Passava-se a desqualificar totalmente os intelectuais, transformando-os em meros sistematizadores ou divulgadores de um “saber popular”, supostamente superior e que se encontrava depositado nas “massas”.
Na sua versão mais perversa, o intelectual se transformava em um adorno exposto na vitrine do partido, com o qual este pretendia legitimar-se na sociedade mostrando sua capacidade de atrair “belas cabeças”.
Preocupada em entender (e transformar) a sociedade, Elisabeth tratou praticamente de construir uma nova relação com os movimentos sociais, superando as posturas professorais ou o falso servilismo diante do “saber popular”, o que significava não renunciar a uma postura crítica, que é marca da atividade intelectual, nem arrogar-se em tutora e deixar de compreender os distintos lugares, desde onde se constróem as representações da realidade e os projetos de sua transformação.
Esta atitude, construída em anos de contato com o movimento social, sem mimetismos ou concessões demagógicas, permitiu-lhe entender os sentimentos de fascínio e rejeição que opõem tantas vezes intelectuais e trabalhadores, e que refletem o justo ressentimento que estes sentem por estarem excluídos do mundo da cultura e, ao mesmo tempo, o fascínio explicável que este mesmo mundo da cultura exerce.
A condição de feminista foi mais difícil de viver do que a de intelectual, pois, a despeito de todas as dificuldades, de resto historicamente explicáveis, o PT foi capaz de estabelecer com seus intelectuais uma relação até certo ponto inédita na trajetória da esquerda brasileira.
Os preconceitos para com as mulheres e para com o feminismo eram (e são) bastante mais profundos, até porque a reflexão feminista no Brasil tinha sido efêmera e fragmentada e, portanto, incapaz de oferecer-lhes uma resistência maior.
Os movimentos de mulheres, particularmente aqueles com maior implantação nos setores populares, que experimentaram um crescimento significativo no final dos anos 70 e começo dos 80, não cresceram com se supunha, assumindo e dando força social às reivindicações que um feminismo renovado pelos ventos de 68 havia originalmente colocado na ordem do dia.
É interessante observar, no entanto, que se o feminismo e os movimentos organizados de mulheres não cresceram como pareciam que iriam crescer, muitas das reivindicações que uns e outros colocaram, ganharam grande irradiação na sociedade. Isto apareceu claramente no debate da Constituinte, em 1987, e igualmente em lutas localizadas – mas nem por isso, sem importância – contra a violência em relação às mulheres ou à discriminação destas no mundo do trabalho, para só citar dois exemplos.
O feminismo foi vítima da fragilidade de suas formulações, somada às resistências que encontrou entre homens e também mulheres. Expressão disso foi sua segmentação em grupos de escassa influência social, às vezes, pequenas seitas onde se confundiam público e privado. Outros setores realizaram louváveis trabalhos na denúncia da violência contra as mulheres, ou conseguiram desenvolver, nas esferas institucionais do Estado – conselhos, coordenadorias etc. -, trabalhos que materializavam aspirações antes defendidas programaticamente. Algumas companheiras, finalmente, trataram de construir, dentro do próprio PT, instâncias que fossem capazes de manter viva as lutas das mulheres, incorporando-as às concepções e, sobretudo, às práticas partidárias. O debate e as concepções vigentes no partido sobre a questão não permitiram avanços substanciais e as comissões de mulheres, na maioria das vezes, se viram confinadas à condição de “subseção” dos “setores discriminados”, ao lado dos deficientes, negros e outros.
Haviam muitas formas de superar este isolamento, passando, sem dúvida, pela necessidade de dar uma nova densidade à reflexão sobre a condição da mulher. Esta reflexão era tão mais importante à medida que ao lado dos tradicionais preconceitos, mais ou menos explicitados, o feminismo sofria a ação de descrédito das(os) defensoras(es) do “pós-feminismo”, do “retomo à feminilidade” e de outras pós-modernidades…
Elisabeth dedicou-se particularmente a aprofundar sua reflexão sobre as mulheres trabalhadoras. Trabalho, dominação e resistência, seu livro póstumo, que a Editora Brasiliense deverá publicar até o fim do ano, é, em grande medida, um protocolo destas preocupações. Nelas está presente uma obsessão analítica com profundas implicações políticas. A discriminação das mulheres não é simplesmente um problema de “minorias”, até porque as mulheres são maioria. Ela não é tampouco um problema “específico” que devesse se subordinar a um problema mais “geral”, “a” dominação capitalista.
Por trás da discussão aparentemente sofisticada da categoria gênero, Elisabeth colocava elementos teóricos para pensar a questão da dominação de forma mais complexa, e não segundo as hierarquias que um marxismo vulgar havia até então proposto, que faziam a dominação da mulher depender apenas da dominação capitalista.
Quando concentrou suas energias políticas na intervenção junto aos sindicatos e quando se orientou para a necessidade de recuperar a dimensão histórica das lutas das mulheres trabalhadoras, o que fez até a véspera de sua morte, participando de uma entrevista com Elisabete Teixeira – a fascinante personagem de Cabra marcado para morrer -, Elisabeth Souza Lobo revelava dois supostos intelectuais implícitos em sua estratégia política frente à questão das mulheres.
Em primeiro lugar, a luta das mulheres tinha de se afirmar dentro das classes trabalhadoras para que ganhasse a força e até mesmo a legitimidade necessárias, a fim de transcender a dimensão de luta “específica”. E isso por várias razões.
Os(as) trabalhadores(as) haviam irrompido na cena política brasileira, e esta irrupção se constituíra em um dos acontecimentos maiores da história contemporânea do país. Foi a partir daí que se criaram condições para se repensar o tema da democracia e para se estabelecer entre ela e o socialismo uma relação distinta daquela que a esquerda havia até aqui proposto, pelo menos, entre nós.
Esta presença distinta dos trabalhadores na vida política brasileira, da qual o PT é a principal expressão, chamava a atenção para a complexidade das formas de sua dominação e exclusão, que não se reduziam à exploração, entendida como extração da mais-valia apenas. Havia que estudar as formas específicas em que se dava a exploração, desde a organização do processo de trabalho nas fábricas e serviços, onde se configura concretamente a subordinação, até os aspectos políticos e jurídicos na esfera mais ampla da sociedade que dão maior consistência à dominação
Elisabeth buscou incorporar a questão do gênero como fundamental para a análise da dominação e para definir uma estratégia democrática e socialista. Mais do que isto, tratou de situar a discriminação da mulher, em particular da mulher trabalhadora, como um componente essencial (e não apenas subproduto) da dominação. A luta das mulheres passava assim a ter uma dimensão mais ampla, transformava-se numa causa de mulheres e de homens, transcendia o domínio das lutas “específicas”.
Em segundo lugar, ao orientar-se para a recuperação da memória das mulheres trabalhadoras e militantes, Elisabeth enfatizava a importância de constituir uma identidade do movimento, situando-o numa história dominada, até então, pelos homens e conferindo-lhe, assim, uma nova e necessária legitimidade.
Lembro-me de seu entusiasmo com o lançamento do 1º Congresso do PT e de sua disposição de multiplicar, junto com suas companheiras, iniciativas que (re)colocassem a questão das mulheres dentro do partido a partir destes enfoques. Ela já o havia feito antes em suas intervenções sobre a Constituinte ou na redação das “Propostas das mulheres para o Governo Plínio/PT”, ou em textos como “Governar para e com homens e mulheres” e “A cidadania das mulheres e o compromisso dos e das parlamentares do PT”.
Se é certo que a atividade intelectual tem uma dimensão solitária ineludível, não é menos certo que, quando se trata de uma reflexão sobre a sociedade e a política, esta atividade tem uma dimensão coletiva indiscutível ainda que não sempre visível.
Como intelectual, Elisabeth não abandonou seus supostos e instrumentos teóricos de análise crítica da realidade. Como intelectual-militante, ela nutriu sua reflexão dos problemas colocados pelo movimento, mesmo quando os tratou de forma complexa.
Muitos dos amigos e amigas de Elisabeth expressaram após sua trágica e inesperada morte a certeza de que ela continuará entre nós. Celebrar sua presença é abraçar, defender e aprofundar aquelas idéias que ocuparam sua vida até o último minuto. Não se poderá prestar maior homenagem à sua memória do que assumir de forma radical a luta pela plena cidadania das mulheres. Primeiro dentro do PT, desatando os nós que fazem de nossas companheiras personagens fundamentais no cotidiano partidário sem uma correspondente presença nas instâncias de direção e de representação partidária.
Homenagear sua memória é, antes de tudo, fazer da condição das mulheres um tema central para pensar um projeto democrático e socialista para o Brasil e não apenas uma luta “específica” a mais.
“A sua morte nos separou, a minha não nos juntará”, escreveu Simone de Beauvoir na Cérimonie des adieux, quando do falecimento de Sartre.
O realismo brutal destas palavras, relativiza toda e qualquer consideração sobre a sobrevivência política e intelectual de nossos mortos, especialmente daqueles que nos são muito queridos. Mas, se no plano das idéias eles nos deixam, na força de suas convicções e de seu exemplo, as marcas de sua presença mais além de sua morte; no plano afetivo, não raro nos deixam inesperadas e insuspeitadas mensagens que nos fazem melhor enfrentar a amargura de dias sombrios.
Volto ao quadro na parede do escritório hoje vazio e aí leio nos versos de Drummond que Elisabeth recortou de um jornal e deixou-me, talvez, como derradeiro bálsamo:
“Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
Ausência é um estar em mim.
E sinto-a tão pegada, aconchegada em meus braços
Que rio e danço e invento exclamações alegres
Porque a ausência, esta ausência assimilada
Ninguém a rouba
mais de mim.”
* Marco Aurélio Garcia é secretário de Relações Internacionais do PT.