Mas, afinal, do que trata a Rodada de Doha? Quais as implicações para a economia brasileira a respeito do chamado “fracasso”? Que lições podemos tirar para os momentos futuros da articulação do Brasil no cenário da mundialização?


por Paulo Kliass*

Em meio à interminável sucessão cotidiana de novos capítulos da infindável crise política nas terras de Pindorama, algumas notícias de grande importância correm o risco de passar quase despercebidas da maioria das pessoas. O foco dos meios de comunicação não consegue se desviar de Vavá, de Renan, dos nomes sugestivos conferidos às operações da Polícia Federal, do apagão aéreo e de tantos outros assuntos similares. Um dos casos mais emblemáticos dessa falta de atenção é o da chamada Rodada de Doha. Há poucos dias foi tornada pública uma avaliação amplamente consensual entre os especialistas e os representantes de governos, até então limitada a conversas dos corredores da diplomacia, a respeito dos limites das negociações com que se pretendia avançar inicialmente.

Mas, afinal, do que se trata? Quais as implicações para a economia brasileira a respeito do chamado “fracasso”? Que lições podemos tirar para os momentos futuros da articulação do Brasil no cenário da mundialização? Já que são tantas as perguntas, vamos tentar compreender algumas, aos poucos.

Antes de mais nada é preciso lembrar que esse é um processo de negociação internacional que se dá no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC), em uma tentativa de avançar e superar um conjunto de limites e obstáculos existentes na atuação de tal entidade. A OMC é mais uma das instituições multigovernamentais, integrada pela grande maioria dos países que atuam nas trocas internacionais, seja com importações ou exportações. No entanto, sua criação foi muito mais lenta que as demais organizações “irmãs”, como o FMI ou o Banco Mundial. O que existia, até poucos anos atrás, para regular as relações comerciais entre os países era apenas um instrumento jurídico, o GATT (sigla em inglês para “Acordo Geral de Tarifas e Comércio”), algo bem menos institucionalizado que a OMC. Apesar de seu fundamento estar alicerçado no viés claramente ideológico do estímulo ao “livre comércio” entre as nações, a realidade se revelou bem mais complexa do que pudessem imaginar seus proponentes iniciais.

Ao longo das seis décadas que nos separam do final da Segunda Guerra Mundial, momento em que foram constituídas tais instituições, houve profundas mudanças nos mecanismos e na essência do comércio internacional. Assim, o GATT sempre esteve a reboque da realidade concreta da dinâmica da acumulação e dos negócios. Inicialmente, ele foi concebido como instrumento de difusão do ideal e da prática do liberalismo sem fronteiras, para estimular o livre comércio entre os países, sem quaisquer tipos de obstáculo. Era, na verdade, um meio de estimular a penetração da circulação dos bens industrializados dos países mais desenvolvidos em direção ao chamado Terceiro Mundo, à época muito influenciado por projetos de cunho nacionalista e desenvolvimentista, que impunham barreiras às importações para tentar desenvolver e proteger as suas próprias redes de indústria nacional.

Porém, aos poucos, os próprios países mais industrializados passaram à condição de réus, em posição defensiva frente às reclamações e insatisfação dos países menos desenvolvidos. Afinal, a grande demanda destes últimos passou a ser a abertura do comércio dos países do “Norte” para o ingresso dos produtos, sobretudo agrícolas, que poderiam vir dos países do “Sul”. E a postura dos defensores incondicionais do liberalismo ganhou cada vez mais a conotação de contorcionismo retórico: liberalismo sim! Mas apenas para o quintal do vizinho… E haja imaginação e criatividade para buscar argumentos a justificar a prática protecionista, executada exatamente pelos governos que se apresentavam como os paladinos da causa do “laissez-faire, laissez-passer” na esfera internacional!

O fato é que a estrutura social e econômica de boa parte dos países europeus, dos Estados Unidos e do Japão estava assentada, e assim ainda permanece, em um volume significativo de subsídios públicos concedidos à produção agrícola e na existência de um conjunto de medidas protecionistas destinadas e preservar a produção e o emprego em tais setores de elevada sensibilidade política e social. Em poucas palavras, o “establishment” internacional obrigava os países pobres a adotar o ideário mais radical do liberalismo, por meio dos acordos com o FMI e demais instituições, enquanto se recusavam a implementar em seu próprio território as práticas que tanto apregoavam aos quatro ventos por meio de seus porta-vozes.

Além disso, os procedimentos – previstos no GATT – de apresentação de queixas e de julgamento de causas entre os países eram bastante lentos, senão inviáveis. Basta recordar os longos anos que o Brasil levou para ter seu direito reconhecido, quanto aos seus pleitos contra os obstáculos impostos pelos norte-americanos à entrada de nosso suco de laranja ou algodão naquele país. E é importante ressaltar que nem mesmo a decisão favorável a um país menos influente significa, na prática, o fim dos obstáculos e a abertura de seus mercados. Afinal, alguns países “podem” bem mais do que outros no comércio mundial. E são geralmente aqueles que detêm poderes de retaliação mais efetivos, bastante utilizados para sugerir a retirada das “queixas” das instâncias internacionais.

Finalmente, o avanço de consolidação dos blocos econômicos como a União Européia, o Nafta, o Mercosul e outros, provocou um novo rearranjo dos agentes intervenientes nas trocas internacionais, aspecto para o qual nem Gatt nem a OMC estavam minimamente preparados para lidar.

Assim, de certa forma, a história dessas instituições tem sido a sucessão interminável de rodadas de negociação, sempre na tentativa de buscar um patamar mínimo de consenso para um acordo mais atualizado. E a realidade das trocas comerciais está sempre alguns passos à frente, dificultando ou inviabilizando os avanços. Tanto que a institucionalização da OMC só ocorreu em 1993, ao término da chamada Rodada Uruguai.

Doha, a capital do Qatar, emirado do Oriente Médio, passou a freqüentar ainda mais as páginas econômicas dos jornais a partir de 2001, quando tem início uma nova tentativa de negociação no âmbito da OMC. Como as primeiras reuniões ocorreram naquela cidade, essa etapa recebeu a alcunha de Rodada de Doha. Na pauta das negociações, a sempre presente questão dos conflitos de interesse entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento. A grande novidade foi a disposição mais evidente de uma atuação conjunta do bloco dos mais desfavorecidos, que pleiteavam de forma uníssona a redução de subsídios nos países industrializados e o fim das barreiras ali existentes à entrada de produtos oriundos de seus territórios. Havia os que apostavam numa possível fratura da aliança entre União Européia e Estados Unidos, de maneira a constranger estes últimos a aceitarem algum recuo. Os anos se seguirem, a Rodada prosseguia em novas tentativas ocorridas em Genebra, Paris, Hong Kong e agora, mais recentemente, em Potsdam.

A engenhosidade do ambiente diplomático chegou mesmo a criar a figura do G-4, para designar uma mesa negociadora envolvendo os Estados Unidos, a União Européia e dois representantes do “resto do mundo” (Brasil e Índia). Mas a recusa dos dois primeiros em abrir um mínimo de debate sobre o tema central fez com que o impasse saísse vitorioso. O prazo de 2007 chegou e não se logrou nenhum avanço. Em face de tal ausência de resultados, os países menos desenvolvidos continuam com as mesmas dificuldades para fazer suas exportações penetrarem os mercados de maior poder aquisitivo do mundo.

Ao que tudo indica, não existe perspectiva de mudança significativa a curto ou médio prazo. Enquanto os nossos dirigentes tupiniquins se empenham em incorporar, de forma irresponsável, o discurso liberal que vem de fora, sem o menor constrangimento em contrariar os interesses nacionais, já os representantes dos países ricos se comportam de forma mais pragmática. Por mais qualificado e profissional que seja o trabalho realizado pelo Itamaraty na área das relações internacionais, o fato é que os nossos governantes não contribuem muito. De um lado, o deslumbramento com o Primeiro Mundo e submissão à lógica dos EUA, marcadas pela época de FHC. De outro, a ingenuidade de achar que basta chamar Bush ou o ex-presidente Chirac de “companheiro” para que os grandes acordos internacionais fossem viabilizados. Aliás, o mesmo comportamento, que mesclava doses de idealismo com voluntarismo, que fez com que o Brasil tivesse sua imagem chamuscada entre seus pares, em razão de sua luta um tanto individualista e a “quase qualquer preço” para conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

É inegável que os avanços recentes obtidos na nossa pauta de comércio internacional tende a reduzir os prejuízos causados pela prática protecionista dos Estados Unidos e da Europa. Até porque o que deveria nos interessar mais é a conquista de mercados para exportação de produtos com maior grau de valor agregado, ou seja, de produtos com maior conteúdo tecnológico. Caso contrário, continuaremos a insistir na tecla dos produtos primários e do agronegócios, enquanto alguns dos chamados parceiros do Terceiro Mundo (a exemplo de Índia e China) colhem seus frutos da estratégia de diversificação de exportação de bens industrializados.

*Paulo Kliass é doutor em Economia e membro da carreira federal “Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental”. Atualmente cumpre programa de pós-doutorado na Université de Paris 13, França.