por Gleyton Trindade

A militância revolucionária e nordestina de Luiz Maranhão, desaparecido político, tem a relevância histórica de evocar uma busca pioneira do diálogo entre marxistas e cristãos.

As décadas de 50 e 60 marcaram no Brasil o princípio do diálogo entre tradições que até então pareciam totalmente antagônicas: o catolicismo e as esquerdas socialistas e comunistas. Se nas décadas anteriores a relação Igreja/comunismo se caracterizava pelo mais puro estranhamento e negação mútua, em meados do século XX as condições políticas específicas vivenciadas pela América Latina e pela igreja abririam a possibilidade de diálogos positivos entre as duas tradições em torno de temas em comum: a defesa da democracia, dos direitos humanos, da justiça. Este árduo trabalho de diálogo foi, antes de tudo, resultado da ação política de homens ilustrados, capazes de reconhecer as ricas possibilidades da aproximação entre a esquerda socialista e o catolicismo progressista. Na biografia “A aposta de Luiz Ignácio Maranhão Filho” (Editora UFRJ/Revan, Rio de Janeiro, 199),escrita por Maria Conceição Pinto de Góes, somos colocados diante de um destes homens ilustrados que foram capazes de se colocar como “corda sobre o abismo”, provavelmente o mais importante elo entre Igreja e comunismo no interior do PCB.

A “aposta” a que se refere a biografia se expressa na opção de um homem pelo socialismo como meio de se alcançar uma sociedade mais justa, tarefa só possível, no entanto, com a conciliação daquelas tradições que se fundamentam na dignidade da pessoa humana. A aliança entre comunismo e o catolicismo progressista seria, assim, a aposta de um ateu convicto, profundamente humanista e solidário. Luiz Ignácio Maranhão Filho ou simplesmente Luiz Maranhão, como era mais conhecido, nasceu sertanejo no interior do Rio Grande do Norte, mas se criou na cidade de Natal. Conviveu na infância e adolescência com a agitada Natal dos anos 30 e 40; a cidade da Intentona Comunista e posterior perseguição política de seus líderes, sede também da base aérea militar dos Estados Unidos durante a 2ª. Guerra Mundial.

Do contexto político vivenciado na cidade carregaria impressões que marcariam sua personalidade e militância política. Estudante e posteriormente professor do tradicional colégio Ateneu, tomaria contato e simultânea aversão ao fascismo, então em moda no país e particularmente em Natal onde era defendido por Câmara Cascudo, mais prestigiado professor do colégio. Contra o fascismo, tornaria sua personalidade decididamente democrática. Dos tempos do colégio outras duas experiências lhe seriam decisivas: as leituras de Marx e Nietzsche. Do primeiro Luiz Maranhão aprenderia a reconhecer no capitalismo a civilização da “coisificação” do homem, das injustiças e opressões humanas. No segundo, tema de sua conferência no colégio em 1943 quando tinha 21 anos, reconheceu um antídoto contra todo tipo de dogmatismo e preconceito. Em suas próprias palavras: “Vindo de um mundo intensamente emocional foi que eu cheguei para Nietzsche e encontrei Zaratustra. Naquele livro, que Nietzsche considerou para todos e para ninguém, livro em que a vida e os valores da vida se encaram de uma maneira nova e surpreendente, deparei-me com idéias, que, em dado instante, exerceram uma ação de obscurecimento sobre todas as coisas que eu antes vira e aprendera”.

Neste contexto, ser comunista para Luiz Maranhão significava se colocar contra o fascismo e a favor dos movimentos de cultura popular e das liberdades democráticas. Desta forma, entra para o PCB em 1945, já então professor, jornalista e estudante de direito. Dando mostras de sua “aposta” desde o início de sua militância, funda uma célula chamada “Frei Miguelinho”, homenageando um padre potiguar, republicano e libertário que pegou em armas contra o Primeiro Reinado. Desenvolveria suas atividades políticas em estreita conexão com movimentos católicos como a Juventude Operária Católica e a Juventude Universitária Católica em consonância com as idéias defendidas pelo Concílio Vaticano II. Eleito deputado estadual no Rio Grande do Norte nas eleições de 1958, sua atuação parlamentar seria caracterizada pela luta contra a “privatização do Estado” realizado pelas oligarquias e pela defesa da reforma agrária e educação popular. Na busca de somar opiniões em favor destes temas, organizou uma diligência percorrendo seu estado, viagem que ficaria conhecida como “Trem da Reforma Agrária”.

Como parlamentar, Luiz Maranhão teria papel destacado também em duas campanhas eleitorais importantes: na “Frente do Recife” que elegeu Miguel Arraes prefeito da capital de Pernambuco em 1959 e na “Cruzada da Esperança” que elegeu seu irmão Djalma Maranhão prefeito de Natal em 1960. Nestas duas administrações municipais se desenvolveriam experiências sínteses do tipo de articulação política desejado por Luís Maranhão. O “Movimento de Cultura Popular” de Recife, coordenado pelo católico e educador Paulo Freire e a campanha “De Pé no Chão Também se Aprende a Ler” de Natal conciliavam a participação de sindicatos, movimentos sociais, partidos de esquerda e setores progressistas da igreja em favor da cultura popular, da conscientização política e dos direitos de cidadania. Experiências ricas de possibilidades rompidas com o golpe de 64.

Na década de 60, já em plena repressão da ditadura, Luiz Maranhão se tornaria o homem designado pelo PCB para articular a oposição em conjunto com a igreja. Como resultado de seus estudos sobre o catolicismo e a política, organizou para publicação os textos das três encíclicas do Concílio Vaticano II em um volume intitulado “A Marcha Social da Igreja” com introdução de Alceu Amoroso Lima. Neste mesmo período troca correspondências com o filósofo e dirigente comunista francês Roger Garaudy.

Embora profundamente pluralista e tolerante Luiz Maranhão não deixou de ser vítima da incompreensão e preconceito presentes na trajetória política do país. O homem que caracterizou sua atuação política pela negociação e debate, pela defesa intransigente dos direitos humanos, que condenou á repressão á Primavera de Praga e defendeu a democracia durante o IV congresso do PCB sofreu com a perseguição durante toda sua vida política. Isto desde sua primeira prisão em 1948 com o fechamento do jornal Folha Popular do qual era diretor passando pela prisão e terrível tortura em 1952 na base aérea de Natal, ambas em pleno regime democrático. Já durante a ditadura, Luiz Maranhão seria preso em 1964 na ilha de Fernando de Noronha com Miguel Arraes e Djalma Maranhão além de ser processado pelo regime militar. Posto em liberdade, Luiz Maranhão entraria num táxi no dia 27 de março de 1974 após encontro com um companheiro de partido em São Paulo e nunca mais seria visto novamente. Seu corpo nunca foi encontrado apesar dos esforços de entidades como a OAB e a CNBB e de sua obstinada esposa Odete Maranhão.

Certa vez, indagado por esta última sobre sua inquietude e desassossego político, assim respondeu-lhe Luiz Maranhão numa carta: “Sei que não me transformei, ainda, nem quero me transformar, nesse tipo de gente para quem nada existe de melhor do que uma hora de sossego, seja em torno de uma mesa ou em cadeiras na calçada. Longe de tudo isso. Para mim o sentido da vida está na ação. Muito mais do que na contemplação”. Aposta de uma vida.

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