Espírito, Matéria e Vida: eras do humano
As sínteses históricas são, a miúde, arbitrárias. A nossa também o é. Mas elas atendem a uma exigência que temos por marcos orientadores que nos ajudam a entender a nós mesmos e nossa própria história. Fazemos então uma espécie de leitura de cego que capta apenas os pontos relevantes. Vejo três grandes percursos, verdadeiras eras, que assinalam as relações do ser humano para com a natureza.
As sínteses históricas são, a miúde, arbitrárias. A nossa também o é. Mas elas atendem a uma exigência que temos por marcos orientadores que nos ajudam a entender a nós mesmos e nossa própria história. Fazemos então uma espécie de leitura de cego que capta apenas os pontos relevantes. Vejo três grandes percursos, verdadeiras eras, que assinalam as relações do ser humano para com a natureza.
A primeira é a era do espírito. Ela plasmou as culturas originárias e ancestrais. Os seres humanos sentiam-se movidos por forças que agiam no cosmos e neles, realidades numinosas e omni-englobantes que lhes conferiam proteção e segurança. Era a experiência xamânica do espírito que perpassava todas as coisas, criando uma union mystique com todos os seres e dando a percepção de pertença a um todo maior. Grandes símbolos, ritos e mitos davam corpo a esta experiência fontal. Foi então que se projetaram imagens do Divino. Essas imagens, continuando imagens, significavam também centros energéticos da vida e da natureza com os quais o ser humano devia se confrontar e ouvir seus apelos. Havia também todos os avatares da condição humana, mas era o espiritual que dava sentido a todas as instâncias. Essa era marcou nosso inconsciente coletivo até os dias atuais.
A segunda é era da matéria. Os seres humanos descobriram a força física da matéria e da natureza. Já não viam ai uma imagem do Divino. Era um objeto para o seu uso. A agricultura do neolítico há dez mil anos revela a presença desta era. Os pais fundadores do método científico deram-lhe um quadro teórico, dizendo que a natureza não tem consciência, portanto, podemos tratá-la como queremos. Interferiram até chegar ao mundo atômico e subatômico com o qual se pode destruir e construir. As forças espirituais e psíquicas da era anterior foram consideradas magia e superstição e como tais combatidas. A concentração nesta experiência introduziu a profanidade. Deus é pensado sem o mundo, fazendo com que surgisse um mundo sem Deus. Operou-se pelas energias arrancadas da matéria a dominação da natureza e a ilimitada exploração de suas riquezas. Já fomos além dos limites de suporte da Terra e dispomos de meios de nos destruir totalmente. Mas surgiu também uma nova responsabilidade e a exigência de uma ética do cuidado.
Estamos entrando agora na era da vida. A vida une matéria e espírito. Ela representa uma possibilidade da matéria quando distante do equilíbrio e em contexto de alta complexidade. Então irrompe a vida. Para eclodir, a vida supõe a teia de interdependências do físico com o químico, da biosfera com a hidrosfera, com a atmosfera e com a geosfera. Tudo está ligado à vida seja como pré-condição, seja como ambiente. Portanto, ela ocupa a centralidade. No conjunto dos seres, o ser humano tem essa missão: de ser o jardineiro e curador da vida. A ela cabe salvaguardar a vida de Gaia, preservar a biodiversidade e garantir um futuro para si e para todos. É o desafio do atual momento de aquecimento global.
A era da vida está ameaçada. Urge manter as condições de sua continuidade e coevolução. A vida, e não o crescimento, deveria ser o grande projeto planetário e nacional. Não perceber esse deslocamento é auto-enganar-se. A bom tempo nos conclama a sabedoria bíblica: "eu lhes proponho a vida ou a morte. Escolha, pois, a vida para que você e seus descendentes possam viver" (Deut. 30,19).
*Leonardo Boff é teólogo