Qual é o lugar das tradições marxistas na cultura atual do PT? Em que medida as riquezas e os impasses emancipatórios contidos nestas tradições marxistas se relacionam ao futuro da cultura petista?

Não são evidentes nem diretas as respostas possíveis a estas perguntas. A identidade política do PT, hoje mais do que na época de seu nascimento, advém de uma fonte plural de tradições, isto é, compõe não apenas correntes que se reclamam das tradições do marxismo, como também do comunitarismo cristão, de tradições socialistas, pensamentos nacional-desenvolvimentistas e mesmo das tradições populares brasileiras. Assim sendo, não há uma relação direta ou automática entre a evolução das tradições do marxismo contemporâneo com a evolução da cultura do PT como havia, por exemplo, nos partidos da II Internacional em seu período clássico ou nos partidos e correntes formados a partir da experiência polarizadora da revolução russa e da III Internacional. Nestas épocas, cisões no marxismo replicavam quase inevitavelmente em cisões de partidos operários.

É preciso, pois, ser capaz de pensar as mediações históricas e culturais próprias da história do marxismo no Brasil para esclarecer as relações da cultura atual do PT com as tradições marxistas. Ora, esta história não está escrita: existem apenas trabalhos ensaísticos, muito ricos por sinal, dependendo da época e da corrente tratada, mas que não compõem uma narrativa coerente e unitária do ponto de vista conceitual.

Desde a década de trinta do século passado, portanto, nos últimos setenta anos, correntes políticas inspiradas no marxismo adquiriram capacidade de influir na história brasileira, tornando-se personagens das lutas pela emancipação social. Desde a década de 1930, de forma mais nítida, inteligências fundamentadas na leitura das teorias marxistas participam do esforço de compreender o país e de buscar soluções para seus impasses fundacionais. Se valores anti-capitalistas freqüentaram, com mediações culturais próprias, lutas populares memoráveis e gravadas como êxtase e cicatriz no corpo da história do país, se imaginações anarquistas ou anarco-sindicalistas visitaram pelas viagens da imigração o nascente movimento operário da Primeira República, foi através das culturas do marxismo que certamente o anti-capitalismo tornou-se um vetor de formação e de possível projeção da moderna cultura contemporânea brasileira.

Nestas décadas de história, as culturas do marxismo sofreram duas grandes ameaças de continuidade: o golpe militar de 64 que coincidiu com a crise histórica do PCB e os anos recentes do neoliberalismo, cujos ícones, intelectuais e propagandistas, procuraram, por todos os meios, cortar os elos de ligação de toda uma geração de lutadores sociais com a imensa e incontornável dignidade que há nas tradições do marxismo.

Interessa não apenas aos que se reclamam propriamente das culturas do marxismo, aos que organizaram suas vidas militantes desde sempre alimentadas por seu ethos épico revolucionário, restaurar criticamente a dignidade destas culturas. Os fundadores das correntes do comunitarismo cristão, a inteligência de um Celso Furtado, por exemplo, e até mesmo o pensamento liberal quando se dessectarizou, souberam sempre reconhecer e dialogar com Marx e os marxistas.

Contribuir para elaborar uma narrativa histórica e cultural do marxismo no Brasil é, pois, ajudar a construir a raiz da sua dignidade. Não se constitui dignidade no que não tem história.

Povo-nação e classe-socialismo

Há vários caminhos para se aproximar da construção de uma narrativa de sentido para o marxismo no Brasil. Uma delas é identificar as matrizes dominantes do marxismo no período de hegemonia do PCB e naquele outro período em que a centralidade política da esquerda brasileira foi polarizada pelo PT a partir de seu vetor de universalização. Isto é, dos conceitos e valores a partir dos quais os marxistas, de modo característico em cada época, procuraram criar raízes e se vincular às identidades do Brasil.

O vetor de universalização do período hegemonizado pelo PCB foi claramente o de povo-Nação que subordinava e ressignificava o sentido mais propriamente classista. Em outras palavras, a noção de que a emergência do povo brasileiro, em seus valores, em sua cultura, em seus direitos, com suas lutas e sonhos, era o principal fundamento da construção de uma Nação soberana. Na medida em que os marxistas conseguissem ser, do ponto de vista histórico, a vanguarda mais resoluta e mais consistente deste processo o marxismo se enraizaria no Brasil.

As razões para que prevalecessem este vetor de universalização são multi-determinadas. A constituição da Nação dominou a cena política brasileira mais claramente dos anos 1930-64, com o fenômeno polarizador do varguismo. A urbanização e a formação de uma base classista mais ampla de trabalhadores nas cidades estava apenas em processo. A idéia de formar uma imaginação criadora através do contato telúrico com a vida do povo e de sua cultura era a grande diretriz dos Modernistas de 1922.

Ao incorporar seletivamente elementos do nacionalismo em um projeto de modernização conservadora, o regime militar agiu em muitas frentes pela desconstituição do vetor povo-Nação. Este vetor foi também atacado, em todas as frentes da inteligência brasileira, pela esquerda, interessada em refundar o marxismo brasileiro a partir de um novo vetor de universalização.

Pode-se afirmar que as culturas do marxismo que compareceram no momento de fundação do PT, já revelando este trabalho de desconstrução/construção em curso nas tradições marxistas brasileiras, estavam identificadas com um vetor de universalização classe-socialismo. Isto é, denunciando o etapismo estratégico revolucionário e a perda de identidade socialista, tratava-se de reativar uma cultura de trabalhadores, de um ponto de vista classista, repondo o seu novo lugar na vida política brasileira. Entre a organização política e social autônoma das classes trabalhadoras e a identidade socialista foi se elaborando a mediação da construção da democracia, revelando as linhas críticas de reflexão que estes marxismos, já em estágio avançado de desestalinização, haviam acumulado sobre sua própria história.

Classe-povo, socialismo e Brasil

De um modo semelhante ao regime militar que desestabilizou o campo histórico da esquerda nacionalista ao desconstituir a problemática nacional, o neoliberalismo procurou retirar o campo histórico de desenvolvimento da esquerda classista minando o trabalho em todas as suas dimensões. O PT só conseguiu vencer o neoliberalismo porque, além de resistir em suas cidadelas classistas, acumulou legitimidade no plano nacional. A nacionalização da liderança de Lula nas várias eleições presidenciais, as caravanas da cidadania, a interiorização e penetração do PT no Nordeste e na Amazônia, a incorporação de elementos fundamentais da cultura nacional-desenvolvimentista em seu programa, a colagem do vermelho ao verde-amarelo tornaram o PT mais nacional e… mais povo brasileiro. Neste contexto histórico, a identidade classista-socialista original do PT sofreu uma importante perda de brilho mas permaneceu.

A histórica vitória sobre o neoliberalismo nas eleições presidenciais de 2006 repõe na cultura do PT o desafio de fazer a síntese dos diferentes vetores de universalização contidos na história do marxismo brasileiro. Não se formará a dignidade do povo brasileiro sem uma retomada histórica, em um padrão inédito e avançado, dos direitos do trabalho nem o socialismo petista pode se enraizar se não dialogar com as dimensões culturais universalistas de nossa identidade de povo-Nação. Enfim, nesta tensão criativa entre classe-povo, entre soberania nacional e luta pelo socialismo, talvez possa se reconstituir o lugar decisivo dos marxismos na cultura do PT.

JG

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