Soldados da borracha: trabalhadores entre o sertão e a Amazônia no governo Vargas conta a história extraordinária de homens e mulheres, a grande maioria nordestinos, que participaram da chamada “Batalha da Borracha” – um programa de emergência para lidar com o enorme déficit de borracha nos Estados Unidos no contexto da Segunda Guerra Mundial. Trata-se de uma obra que ajuda a esclarecer a complexidade das relações trabalhistas e da questão da cidadania durante o governo Vargas, analisando o lugar do trabalhador rural, do Nordeste e da Amazônia nos discursos e na política do Estado Novo.

Confira abaixo entrevista com a autora, María Verónica Secreto:

O que mais atraía os milhares de nordestinos que atenderam ao chamado do governo Vargas para ocuparem a Amazônia?
Acredito que como em toda (i)migração o atrativo é um conjunto de elementos. A decisão de deixar a própria terra é uma decisão difícil, implica numa renuncia, implica abrir mão de amigos, família, de uma rede de relacionamentos, lugares, sabores, etc. A migração entre o nordeste e Amazônia já estava estabelecida quando o chamado do Governo Vargas, mas é evidente que este chamado molda um tipo de migrante. O chamado terá um apelo maior entre aqueles que não eram dados à aventura, entre aqueles que viam finalmente a possibilidade de migrar para Amazônia sem desamparar a própria família, já que o discurso do estado, veiculado por uma série de instrumentos de propaganda era de responsabilizar-se por esta. Também o elemento “patriótico” deve ter jogado algum tipo de atração. Se julgamos também pela propaganda é de supor que se esta utilizava insistentemente de expressões como “frente da borracha”, “mais borracha para a vitória”, “soldados da borracha”, etc. tudo no contexto da Segunda Guerra Mundial e do alinhamento brasileiro com os Aliados, era porque este apelo surtia algum efeito.

Uma das principais fontes de pesquisa do livro são as cartas das mulheres e familiares daqueles que se embrenharam pela Amazônia. O que revelavam essas cartas?
Dentro da correspondência com que temos trabalhado há dois conjuntos. Um formado pelas cartas que as mulheres dos soldados da borracha escreveram a seus maridos. Trata-se de cartas escritas no Núcleo (uma coisa parecida com um acampamento) onde ficaram “amparadas” as mulheres e filhos dos soldados da borracha. O outro conjunto é formado pela correspondência dirigida ao Presidente Getúlio Vargas. No primeiro o tom é privado, afetivo, íntimo. No segundo, sem deixar de ser afetivo, é essencialmente político. As cartas aos maridos são uma fonte riquíssima, transparecem uma escrita impregnada de adjetivos que reforçam um tom trágico. Nestas cartas uma mulher podia definir-se como “tua triste e sem sorte esposa”, ou dizer que “Hoje as saudades cruxificam-me mais do que nunca”, ou dizer que: “É com olhos erguidos para o céu que oro a Deus para que estas linhas mensageiras das minhas saudades vão a ti encontrar gozando pares de saúde e felicidade”. Mas estas cartas não são somente cartas de saudades, românticas, são cartas de queixas informando a seus maridos sobre a desilusão da “proteção às famílias” que os contratos assinados por eles previa. Por isso estas mesmas cartas também diziam “Quanto a mim vou passando horrivelmente. Devido a umas tantas coisas que aqui tem aparecido”, ou “Cursino aqui já botaram inquisição” ou ainda num tom muito mais combativo: “não aceitamos as leis dela [a possível futura diretora do Núcleo em que estavam as mulheres] porque ela é do Rio e nos somos do interior e essas leis não podem serem criadas não sabe ela que buliu com os cães dentro da garrafa, que ha tempo estava tampada”.

Já a correspondência remetida a Vargas é de cobrança, trata-se de correspondência coletiva, assinada por um conjunto de mulheres no pós suspensão do pagamento da assistência às famílias. Os contratos de “encaminhamento dos trabalhadores” deixavam muitas brechas e foi com essas brechas que jogou o estado o seu jogo de “desamparo”.

A que se atribui o fracasso da política de colonização da região Norte empreendida pelo governo Vargas, que incluiu essa enorme migração de nordestinos para a Amazônia?

O fracasso, como muitos outros casos de políticas públicas se deve à distância enorme entre as planificações, incluindo em muitos casos os marcos legais criados especificamente, e a realidade na qual pensa-se em “mexer”. Se bem os trabalhadores enquadrados como “soldados da borracha” partiram com assinatura de um contrato que previa o amparo a suas famílias, e esta mesma campanha contou com um planejamento que implicava a criação de uma série de organismos estatais, como a Superintendencia de Abastecimento do Vale Amazônico, o Banco de Credito da Borracha, o próprio Serviço de Mobilização de Trabalhadores para Amazonas, etc. mas não se implementaram mecanismos de fiscalização, nem se evitou que os grandes proprietários se “apropriaram” destas políticas em beneficio próprio. As coisas fracassam não só por falta de vontade política, embora este é um elemento muito importante, mas pelas resistências da classe proprietária, pelo mesmo motivo que continua a existir “trabalho escravo”. É uma forma de trabalho, a do trabalho por dívida, que não é incompatível com o capitalismo, é parte dele. Vejamos outro exemplo de distância entre os mecanismos legais e a operacionalidade destes: a constituição prevê a função social da propriedade e prevê a desapropriação em caso da utilização não adequada dos recursos naturais como assim também no caso de não cumprimento das disposições que regulam as relações de trabalho. A pesar desta brecha, não pequena, é difícil haver uma desapropriação em ambos os casos.


Por que o episódio, apesar de ser considerado como a Batalha da Borracha e tendo envolvido milhares de brasileiros, é tão pouco conhecido no país?

O pouco conhecimento se deve ao lugar marginal que os trabalhadores rurais tem dentro da historiografia. O filé mignon é o trabalhador urbano. Isto em termos gerais, mas esta tendência acentua-se quando nos referimos ao período Vargas. Lembremos que os trabalhadores rurais não foram incluídos nas leis trabalhistas. Um dos quadros do varguismo explicava as migrações dos sertões para as grandes cidades a partir da privação que os trabalhadores rurais tinham do “progresso dos operários das cidades do litoral”. A legislação social, continuava ele, só poderia ter começado nos centros urbanos para avançar nas esferas rurais em um momento posterior. O trabalhador rural há tido pouca visibilidade para a historiografia. Mas isto está mudando.

Também há outro problema que são as formas híbridas de trabalho. Entre o trabalho escravo e o trabalho assalariado há um leque enorme de possibilidades. É que os proprietários foram e são muito “imaginativos” quando se trata de explorar, falta a nós historiadores, aos cientistas sociais e ao Estado “acompanhar” essa imaginação.

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