Ao procurar fazer uma reflexão cuidadosa sobre o PAC, temos de evitar dois riscos opostos e, de certa forma, complementares. Por um lado, um setor economista conservador, insensível às necessidades populares, está atento somente a resultados macroeconômicos, medo da inflação, do gasto público, querendo penalizar o salário mínimo dos pequenos, pensando no rombo da previdência – com o sonho oculto de privatizá-la – como se seus déficits não fossem causados em parte pela corrupção dentro do INSS e não a causa principal dos problemas das contas nacionais. Este setor considera o PAC pouco ousado por não se abrir integralmente aos jogos do grande capital e por não aceitar os custos sociais. Seu interesse se restringe aos setores dominantes nacionais e internacionais e principalmente ao fetiche religioso do mercado, como até afirma Delfim Neto com humor. Estamos cansados de ver comentadores na mídia, dia após dia, falar reverentes: “o mercado quer”, “o mercado teme’ – como se no fundo este não fosse um produto de especulações ou de jogos de bolsa.

Do outro lado, uma esquerda ideológica, fixada em slogans contra um inimigo abstrato, um neoliberalismo mal definido e generalizado, também considera o plano pouco ousado por não introduzir rapidamente e de afogadilho grandes reformas macroeconômicas, que nem sempre sabe explicitar claramente. É sensível aos discursos de Hugo Chávez – que por baixo, ao que parece, faz acordos com o grande capital e com os Estados Unidos. Talvez por isso ele não é penalizado por Bush, que pelo momento não teme problemas com o petróleo na Venezuela, mas no Oriente Médio, apesar das bravatas em público do presidente sul-americano. Para sair desse dilema simplificador, é elucidativa a posição brasileira.

O presidente Lula marcou distância de alguns que se consideravam companheiros. Apesar de inconveniências verbais aqui e ali nos improvisos, nosso presidente tem uma intuição certeira e penetrante e um grande realismo. Lembro de um fato ocorrido na primeira eleição contra FHC. Para Lula era claro que a população apostava no Plano Real em seus começos, e se fosse por sua decisão pessoal não o atacaria de frente. Mas seus assessores “luas pretas” de então, pelo contrário, o convenceram a fazer uma campanha contra o plano, o que foi eleitoralmente um equívoco.

Hoje, na América Latina, está ocorrendo um fato notável ao qual tenho me referido2 : país após país, os setores populares sinalizam sua presença e suas exigências e rechaçam as receitas ortodoxas da direita. Resta saber se os novos governantes por eles eleitos nos últimos tempos – ou provavelmente eleitos, como no caso do México – não vão frustrar logo adiante suas expectativas. As políticas são diferentes, de acordo com os países, desde o Chile e o Uruguai tratando bilateralmente com os Estados Unidos, até uma postura mais radical, que também é diferenciada, na Venezuela, na Bolívia ou no Equador. Chávez faz pensar um pouco no velho populismo de Perón, diante dos “cabecitas negras” – a história nunca é tão inédita quanto pode parecer. Perón dilapidou as reservas acumuladas durante a segunda guerra mundial, como Chávez agora usa a torto e a direito o petróleo e o gás. O primeiro colocava autoritariamente o povo contra o anti-povo, sem precisar bem, e ao mesmo tempo fazia negócios por traz do pano com o capital internacional.. O general Perón acabou deposto pelos próprios militares e pela oligarquia e a Argentina amargou anos sem poder se libertar dos mitos paralisantes e ideológicos de Evita e de um peronismo heterogêneo, do fascismo à ultra-esquerda. Hoje, o também militar Chávez, tem sucesso diante de uma esquerda órfã de análises efetivas – não sabendo subir do abstrato para o concreto, como pedia Marx; enredada em guerras ideológicas, isto é, idealistas, de falsa consciência, consciência invertida, como diria o mesmo Marx, que é mais usado como um ícone, como Fidel ou o Ché, do que como um analista rigoroso. Mas a Bolívia e o Equador são diferentes. Evo Morales tem os pés na terra do índio persistente, trazendo nas intuições e nas idéias séculos de dominação e pode cair em equívocos, mas sabe voltar atrás. Fico pensando por onde andará ali Filemón Escobar – codinome Filipo – que conheci e admirei nos anos 70; creio que é senador do MAS governista, arguto e autodidata, filho de mãe indígena. E pelo que vamos sabendo, o equatoriano Rafael Correa, antigo estudante em Lovaina, seguidor da Teologia da Libertação e de Paulo Freire, quer uma nova ética e “ver um país sem miséria nem meninos de rua… Uma Pátria amiga, repartida entre todos3”.

Lula parece evitar uma polarização paralisante e vai mostrando um caminho realista próprio4. Ao lançar o PAC, insistiu num plano feito em democracia e no debate e não com medidas autoritárias. Colocou-se distante do chamado “socialismo do século XXI”, que tem ares do “socialismo real” do século XX que se liquefez. As coisas são mais difíceis na democracia e no debate? À primeira vista sim. No longo prazo, melhores. Fala-se de três países emergentes com ocasiões favoráveis nos próximos anos, China, Índia e Brasil – e talvez também o México. A China dá saltos enormes com uma economia de mercado audaciosa baseada no trabalho semi-escravo e no partido único. Não parece o melhor caminho. O outro país emergente, a Índia, com um bilhão de habitantes, não consegue superar uma estratificação de castas. Voltei de lá em novembro chocado, sabendo de bilionários que compram siderúrgicas pelo mundo e ao mesmo tempo em Delhi uma população morre nas ruas, com a indiferença dos poderosos e rodeada pela placidez tranqüila das vacas sagradas. O Brasil poderia – e poderá – fazer diferente.

Este ano Lula foi a Davos, ao Fórum Econômico e não a Nairobi, ao Fórum Social. Num primeiro momento isso me entristeceu. Sou dos que acompanharam entusiasmados os Fóruns de Porto Alegre e a grande intuição de que “outro mundo é possível”. Prefiro dizer, numa perspectivas de pluralismo, que outros mundos já vão sendo possíveis, a partir de tantas práticas inovadoras. Repeli Davos dos poderosos, nas suites luxuosas da Suíça gelada. Sentia-me melhor no calor humano confiante e solidário dos Fóruns Sociais. Mas também ali descobri, ao mesmo tempo, uma novidade alvissareira e fecunda, e a sobrevivência de velhos hábitos. Citei num texto uma grande amiga: “vinho novo em odres velhos”… e, às vezes, o próprio vinho era velho5. Já em 2005, em Porto Alegre, Chávez fora a grande vedete e o público se dividiu em aplausos e vaias a Lula. Isso se reforçou no Fórum regional de Caracas e está fortemente presente em Nairobi. Lula não foi até lá, arriscava-se a ser mal recebido por alguns; Luis Dulci e outros membros do governo tiveram de fazer malabarismos para evitar situações embaraçosas. Lula esteve em Davos e a direita aplaudiu como se ele tivesse trocado de trincheira. Na verdade foi, como se diz, “agarrar o touro à unha”, pisando perigosamente em caminhos distantes do seu. Risco de confusão? Talvez. Era importante falar no espaço dos poderosos e ser levado a sério por eles, não para ser cooptado, porém para abrir brechas, possivelmente estreitas, mas mais eficazes do que declarações para as galerias. Esse paradoxo me perturba, confesso, mas ajuda a pensar um pouco melhor. Lula quer atrair capitais. Serão capitais produtivos, ou fugazes capitais “andorinhas”? Eis o desafio.

Os setores populares elegeram Lula porque sentiram na pele as melhorias. Já no primeiro turno, mas principalmente no segundo, muitos profissionais e universitários se deram conta disso – alguns com certo atraso. Fui um dos que tomou a iniciativa de um manifesto de apoio a Lula, ainda em setembro, que recolheu mais de quinhentas assinaturas. Outros seguiram pensando em abstrato, sem ouvir com atenção e sensibilidade o Brasil dos pobres. É claro que não podia deixar de continuar aquele udenismo lacerdista raivoso, agora com a estranha companhia de um udenismo de esquerda. Não podemos negar que os êxitos econômicos no combate à inflação e na criação ainda insuficiente de novos empregos ajudaram. Poderia ter sido melhor? Certamente. Poderia ter havido mais audácia? Sim. Mas estamos sentindo uma mudança do estilo Palocci-Meirelles para o de Dilma Rousseff-Mantega. Este último questionou publicamente Meirelles no lançamento do PAC. Ao que parece isso não adiantou muito, pois na reunião seguinte do Copom, venceu um setor conservador incrustado no governo e que vem de mais atrás. Continuará uma certa ambigüidade, até certo ponto inevitável, de Furlan, por um lado, a Patrus Ananias de outro. Lembro de ter dito, faz uns meses, a meu amigo Patrus – com quem comparto tantas apostas, fidelidades e pensamento – que a vitória de Lula dependia em boa parte dele. E assim parece ter sido. Otávio Velho, antropólogo perspicaz, viu no Brasil do interior um panorama muito diferente dos antigos grotões dos coronéis6. Alguma coisa nova vai surgindo, para quem sabe e quer ver.

Certamente a transformação agrária teria que ser mais rápida e audaz, por parte do governo. Para isso temos a imprescindível pressão do MST. Há uma complementaridade dialética de sua postura firme com as políticas públicas. Precisaríamos de outros MSTs nas cidades e nas favelas, entre os trabalhadores informais e os bóias-frias, para pressionar sempre mais. Entusiasma-me no MST, e tenho dito e repetido, a existência de posições radicais nas exigências de políticas agrárias e sociais e um trabalho de competência empresarial em suas cooperativas, assim como a criatividade educacional em suas escolas7. Acredito com Betinho na “opção pela sociedade” e não em mudanças vindas de cima, a partir de líderes messiânicos8. Perón destruiu as intermediações entre ele e o povo, Brizola tinha uma tendência para isso, ainda que seu profundo e irrestrito patriotismo o absolva. O Brasil tem de se organizar nas bases, para discutir e melhorar o PAC.

Neste momento ouso fazer uma afirmação, como hipótese de trabalho sujeita a revisões – que poderá ser mal interpretada; mas é preciso ter a coragem de expressa-la. Não há necessariamente oposição irredutível entre assentamentos e propriedade familiar de um lado e agricultura de exportação do outro. As políticas aparentemente opostas do Ministério da Agricultura e do Ministério da Reforma Agrária poderão, uma e outra, ter aspectos relevantes. Pela primeira entramos no mercado internacional e no superávit da balança comercial. Pela segunda deveríamos fazer redistribuição e romper com desigualdades internas. Uma visão maniqueísta não aceitará esta afirmação. Ao mesmo tempo há que convir que a reforma agrária, apesar da proposta ambiciosa de um profundo conhecedor internacional como Plínio de Arruda Sampaio, se manteve timorata.

Outra contradição difícil: ecologia com desenvolvimento, obras de infra-estrutura e energia. Que o diga essa admirável Marina Silva, firme nas convicções e flexível nas decisões coletivas. A barragem de Tucuruí, faz alguns anos, envenenou a população próxima com o apodrecimento da madeira. Trabalhando na FAO, nos anos 80, vi a importância técnica da CODEVASP e, ao mesmo tempo, sua insensibilidade social com a população ribeirinha do São Francisco. A transposição das águas deste rio, aliás, desperta muito mais preconceitos prévios e interesses regionais do que análises técnicas competentes. E, principalmente, como preservar a Amazônia das ações abusivas predatórias e ao mesmo tempo, cuidar de seus habitantes? Chico Mendes deu a chave de resposta, com as reservas estrativistas e a sabedoria das populações indígenas sabia disso faz muito tempo.

Falei atrás em democracia. Era um dos temas preferidos de Betinho, que viveu na pele o período autoritário e que preferia essa noção à de popular. De minha parte quero ficar com as duas noções que se articulam bem, na América Latina de hoje; a segunda pode nada ter a ver com populismo. Democracia é participação, responsabilidade, educação cidadã, uma responsabilidade fundamental dos partidos políticos, organismos criados para a representatividade. Os escândalos recentes puseram os partidos contra a parede, ao final do quadriênio passado. Mas há um partido que teve uma origem diferente, lá nos anos 80, o PT, nascido a partir dos movimentos sindicais, sociais, pastorais e de pequenas frações da antiga esquerda. Porém sucumbiu diante de uma arrogância: acreditou-se incólume aos males e às tentações do poder. E quando caiu neles o fez com a falta de experiência e a avidez de recém chegado, diferente das velhas raposas para as quais a corrupção era co-natural. E foi um deus nos acuda na sociedade e no próprio PT. Parecia que a corrupção começava naquele instante ou então era a pior de todas. Como se não viesse de mais atrás, de governos anteriores. E como se não fosse agora que ela estava sendo apurada com vigor. Com o agravante de que outros governos, especialmente o de FHC, além da corrupção nas privatizações, tinham começado o desmonte da nação8.

Voltando ao PT, ao qual devo dizer não pertenço, ele é de certa forma o único partido realmente estruturado e articulado nacionalmente. Por isso a democratização do país e de seus hábitos passa pela democratização do PT. Porém o que temos visto? Como nas experiências do “socialismo real” com suas “nomenclaturas” e mordomias, e como no triste apodrecimento da Nicarágua com a sua “piñata”9, a direção do partido foi ocupada por um aparelho autoritário e voraz de poder. Num Seminário de dezembro de 2006, na Fundação Perseu Abramo, tive a ocasião de referir-me a esse fato e de criticar o aparelhismo de dirigentes e senti o apoio entusiasta das bases partidárias ali presentes, vindas de vários pontos do país. O PT será capaz de superar essa situação e, como tem sido dito, se refundar, voltando à sua prática de democracia interna dos anos 80? A eleição para presidente da Câmara, neste começo de 2007, nos faz sentir a dificuldade para tal e para saber fazer alianças respeitáveis e não fisiológicas. Aqui no Rio tivemos um precedente oposto. No momento de escolher um candidato ao Senado, o senador Saturnino Braga abriu mão de sua candidatura, deixando a vaga para Jandira Feghali, do PC do B. Gesto exemplar10.

Como se darão as alianças para a aprovação do PAC, no próximo Congresso que se anuncia com maus pressentimentos? O Brasil saberá aproveitar essa oportunidade para um salto histórico, ou se enredará numa disputa menor, visando as eleições de 2010? Com o que renunciaríamos a recriar a nação para as próximas décadas. Há que ter ousadia aliada a realismo, um pouco de Quixote, um pouco de Sancho. Lula tem alguma coisa dos dois, e por isso aposto nos anos que temos pela frente. Patriotismo ou novo nacionalismo em tempos de mundialização, para enfrentar pessimismos e má vontade, técnicos e políticos ou pensamentos falsamente cosmopolitas, sem compromisso com o Brasil e com seu povo.


Notas:
1 –
“Movimentos sociais e América Latina”, Rede, CAALL, Petrópolis, junho de 2006, nº 162.
2 – Página 12, Buenos Aires, 21 de janeiro de 2007.
3 – Candido Mendes, Lula apesar de Lula, Rio, Educam, 2006
4 – A utopia surgindo no meio de nós, cap. 23, “Lições do Fórum Social Mundial de Porto Alegre”, Rio, Mauad, 2003.
5 – “Um imenso grotão?”. Folha de São Paulo, 30 de outubro de 2006. Entrevista a CartaCapital, nº 420, 22 de novembro de 2006 e CartaCapital, número especial de fim de ano, nº425, 17 de dezembro de 2006, título geral “A mudança em marcha”, artigo de Otávio Velho, “A conquista da autonomia”.
6 – A utopia, op. cit, cap. 22, “Um país dinâmico, um pensamento claudicante”.
7 – Idem ibidem, cap. 7, “Quarto pressuposto: Opção pela sociedade”.
8 – Ivo Lesbaupin (org,), O desmonte da nação, Vozes, Petrópolis, 1999.
9 – Alguns líderes sandinistas importantes apropriaram-se rapidamente de bens públicos.
10 – A propósito, Jandira perdeu a eleição em parte por pressões indevidas de Igrejas, especialmente a minha, a Católica, mas antes de tudo pelas forças previsíveis dos currais eleitorais de Francisco


*Luiz Alberto Gómez de Souza
é Sociólogo. Diretor do Programa de Altos Estudos em Ciência e Religião, Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro. Antigo funcionário da CEPAL e da FAO, assessor de movimentos sociais e pastorais.

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