Massacre da Lapa Trinta Anos Depois
Trinta anos se passaram desde o fatídico 16 de dezembro em que perdemos João Batista Franco Drummond, Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que tombaram vítimas da sanha assassina da ditadura militar, pelas mãos dos agentes do Exército e da polícia política.
Trinta anos se passaram desde que Aldo Arantes, Haroldo Lima, Elza Monnerat, Joaquim Celso de Lima e Wladimir Pomar foram presos e torturados sistematicamente, por vários dias, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Espancamentos, “cadeira do dragão”, “geladeira”, foram os métodos de tortura utilizados contra os militantes presos na operação da Lapa.
Perdemos com Drummond, nos seus 34 anos de vida, a juventude e a generosidade de um lutador que não hesitou em enfrentar os torturadores no próprio terreno destes, que era o antro da rua Tutóia, o sinistro DOI-CODI do II Exército.
Perdemos com Arroyo, nos seus 48 anos de vida, o militante operário da greve dos 300 mil no ano de 1953, e o comandante guerrilheiro que logrou escapar ao cerco das forças armadas ditatoriais no Araguaia.
Perdemos com Pomar, nos seus 63 anos de vida, o experiente lutador que enfrentou a repressão do Estado Novo e participou ativamente da reorganização do antigo PCB e das grandes vitórias dos comunistas no período da legalidade.
Malditos sejam os torturadores e assassinos a serviço da Ditadura Militar e os generais que lhes davam ordens e os acobertavam. Malditos sejam todos aqueles que organizaram, financiaram ou estimularam a repressão política, materializada em siglas de macabra fonética: DOPS, OBAN, DOI-CODI, CENIMAR, CISA.
E ainda pedem que nos esqueçamos! Querem nossa amnésia. Mas não nos esqueceremos, nem de Drummond, nem de Arroyo, nem de Pomar, nem das centenas de mortos e desaparecidos políticos, nem dos milhares de presos e torturados, nem dos milhares de perseguidos e humilhados.
É espantoso que alguns tentem ressuscitar a tese de que a repressão, no Brasil, foi “até econômica” — a expressão cínica é de autoria do general Leônidas Pires Gonçalves, que comandou o CODI do I Exército e mais tarde, no governo Sarney, foi ministro do Exército —, “econômica” porque morreram “apenas” quatrocentas pessoas.
Na Argentina de Kirchner — um governante de perfil moderado — a Lei do Ponto Final foi anulada e generais estão na cadeia. Repressores estão sendo processados. O comandante do Exército pediu perdão ao povo argentino pelos crimes cometidos por sua corporação.
No Chile de Bachelet, governado por uma moderadíssima coalizão de centro-esquerda, Manoel Contreras, outrora chefe da poderosa DINA, está preso. Dois oficiais que ousaram defender em público as atrocidades praticadas por Pinochet foram expulsos do Exército, sem hesitação. A Lei de Anistia será revista.
No Brasil, porém, a cada 31 de março a sociedade é obrigada a ouvir perturbadores elogios ao golpe militar, proferidos por ninguém menos do que os chefes do Exército. E nada lhes acontece, nem ao menos uma repreensão por parte dos governantes a quem deveriam prestar obediência. Até quando as vítimas da ditadura serão obrigadas a tamanha humilhação, a tão grande insolência?
Há pouco mais de dois anos, o Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex) emitiu uma ultrajante nota sobre o caso Herzog, louvando abertamente a ditadura. Da crise decorrente resultou a demissão do ministro civil da Defesa, sem culpa no episódio. Nenhum dos oficiais-generais envolvidos foi punido. A memória de Herzog foi ultrajada.
Ainda hoje, trinta anos depois do Massacre da Lapa — a última operação sangrenta dos famigerados DOI-CODI —, constatamos desolados que o Brasil mudou pouco no que concerne ao poder institucional dos militares. As Forças Armadas, e o Exército em especial, continuam a comportar-se como nos vinte anos em que exerceram o poder, colocando-se acima da lei e considerando-se credoras e tutoras da sociedade brasileira.
É nesse contexto que se situa a questão da abertura dos arquivos militares. Sim, é preciso desarquivar o Brasil! É preciso escancarar os arquivos da ditadura para que a sociedade conheça tudo que se passou, em toda a sua inteireza. Não é só uma questão de justiça. É um pressuposto para que a sociedade brasileira torne-se verdadeiramente democrática.
Já são muitas as decisões judiciais favoráveis às famílias dos mortos e desaparecidos, e também a cidadãos torturados. Mas ainda se espera do governo brasileiro — tendo à frente Lula que iniciará em breve seu segundo mandato, mais uma vez com enorme respaldo popular — ainda se espera do governo brasileiro uma atitude firme e digna para abrir caminho não apenas ao direito individual à justiça, que é uma garantia constitucional, mas também ao direito da sociedade brasileira de escrever a história dos anos de chumbo.
Contrariando as expectativas de todos os democratas, o governo federal recorreu de uma corajosa sentença judicial que ordenou a abertura dos arquivos relacionados à Guerrilha do Araguaia. Depois comprometeu-se a abrir todos os documentos das Forças Armadas referentes à repressão política, mas não o fez. Até hoje não o fez, pelo contrário. Em 2005, por iniciativa do governo, o Congresso aprovou a MP 228/04, que institui o “sigilo eterno” de determinados documentos.
Ora, será que teremos no Brasil uma democracia digna desse nome enquanto pairar sobre nós a pesada sombra dos crimes da ditadura militar? Enquanto vigorar uma lei da Anistia que contempla torturadores e assassinos? Enquanto os papéis que documentam os crimes da repressão política estiverem a salvo de pesquisadores, de jornalistas, de familiares das vítimas do regime militar?
Por tudo isso, é preciso aplaudir Janaína Teles e seus familiares, que ousaram desafiar um legado cruel da ditadura ao processar o coronel Brilhante Ustra, pedindo à justiça que reconheça nesse oficial sua condição de torturador. Questionam assim os limites e a legalidade da anistia que os militares se autoconcederam. Reafirmam: “Não haverá perdão para a covardia da tortura, para os carrascos! Não esqueceremos!”
Embora já estivesse enraizada nos costumes do aparelho repressor do Estado brasileiro muito antes da ditadura militar, tanto para presos comuns como para presos políticos, a tortura foi em certo sentido institucionalizada após o golpe de 1964, como “arma de Estado” contra militantes de esquerda. Foi justificada e defendida por vários generais. Mas o pior é que em pleno século 21 a tortura continua acontecendo. A tortura persiste dentro e fora das dependências policiais de todo tipo, e mesmo em alguns quartéis do Exército, nos quais os supliciados são militares submetidos a bizarros rituais de passagem.
Outras heranças da ditadura ainda impregnam as instituições do Estado brasileiro. É o caso das Polícias Militares, que foram criadas pela ditadura para servir como força auxiliar das Forças Armadas e para atuarem como força antimotim. Ainda hoje, são as PMs brasileiras as forças policiais que mais matam no mundo. A pena de morte não existe na Constituição, mas as PMs têm carta branca para aplicá-la. Isso ocorre cotidianamente, mas em determinados episódios a licença para matar torna-se mais visível, como ocorreu nos casos do Carandiru, de Eldorado dos Carajás e mais recentemente no episódio de execução em massa de “suspeitos” em maio deste ano no estado de São Paulo. A pretexto de combate aos criminosos do PCC, inúmeros cidadãos inocentes, moradores das periferias, foram executados por PMs. O governo de Cláudio Lembo — um antigo membro da Aliança Renovadora Nacional, a Arena, o partido da ditadura — não investigou a matança e não puniu os responsáveis.
Abrir sem demora os arquivos da ditadura; banir para sempre a tortura e a “licença para matar”; democratizar as Forças Armadas e as polícias, que precisam ser transformadas em instituições a serviço da população e da democracia. Estes são desafios postos para o governo e a sociedade, desafios que precisarão enfrentar se quiserem derrotar definitivamente a ditadura militar.
Muito obrigado.
* Texto de autoria de Pedro Estevam da Rocha Pomar e lido pelo autor no ato 30 anos do massacre da Lapa, promovido pela Fundação Perseu Abramo em 19/12/2006, no Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.