Voto distrital, uma mistificação
Rubens Otoni
Avança a compreensão de que nosso sistema político está esgotado e requer uma reforma. Esta consciência em si é positiva, mas não dispensa a atenção de todos para as tentativas de mistificação e para as soluções oriundas da consciência mágica que, antes de resolver os problemas, aprofunda-os.
No primeiro semestre deste ano, por exemplo, na esteira da crise política, diante dos sinais de esgotamento do sistema eleitoral, o Congresso Nacional aprovou apressadamente uma minirreforma destinada a baratear os custos das campanhas eleitorais.
Como a minirreforma era cosmética e deixava de atender requisitos básicos, como o estabelecimento de um teto de gastos para cada campanha, o objetivo não foi alcançado: as campanhas de 2006 continuaram caras e desiguais.
O objetivo central de uma reforma política deve ser a ampliação dos espaços de participação democrática do povo, o que requer campanhas mais politizadas e mais baratas.
Hoje, como em cenários anteriores, começam a aparecer “soluções” ilusionistas, como a proposta de estabelecimento do voto distrital. Esta solução é antidemocrática em todos os seus aspectos, mas é vendida como uma solução mágica capaz de produzir uma volta ao campanário original de nossas aldeias, onde representados e representantes poderiam viver em idílio perpétuo. Nada mais ilusório.
O sistema distrital é um sistema de exclusão política radical das minorias. Nele, cada distrito elege por voto majoritário apenas um representante. Este método cria a possibilidade estatística de um partido, mesmo obtendo 49% dos votos em cada distrito, ficar sem representação parlamentar. Também na prática ele deforma a expressão da vontade popular, podendo até produzir o paradoxo de uma minoria eleitoral deter a maioria parlamentar.
Para ilustrar a capacidade prática de deformação da expressão da vontade popular do sistema distrital, Luiz Weiss, do Observatório da Imprensa, cita um resultado de uma eleição canadense de 1993. Naquela eleição o partido mais votado obteve 16% dos votos e elegeu dois deputados. O partido menos votado obteve 7% e elegeu nove deputados. Um partido que se situou entre o primeiro e o último elegeu 54 deputados. É evidente a distorção.
Na Inglaterra não é diferente. Na última eleição para o parlamento, setembro de 2005, os trabalhistas obtiveram 35,3% e levaram 356 cadeiras, os conservadores obtiveram 32,3% e levaram 198 cadeiras. Ou seja, um partido com 35,3% dos votos populares conquistou 62% das cadeiras do parlamento, um outro com 32,3% dos votos populares ficou com 34% das cadeiras. Trata-se de uma evidente deformação.
Esta deformação é antiga. Jairo Nicolau, em “Sistemas Eleitorais”, registra: “O Partido Liberal do Reino Unido tem sido freqüentemente prejudicado, pois o percentual de cadeiras que recebe é sempre inferior ao seu percentual de votos. O partido foi subrepresentado em todas as eleições para a Câmara dos Comuns no pós-1945: com uma média de 12,4% dos votos, obteve uma média de 1,9% das cadeiras. A diferença mais acentuado ocorreu em 1983, quando recebeu 25,4% dos votos e elegeu apenas 3,5% dos representantes.” Estes números falam por si. O sistema distrital é injusto.
Outros países europeus dispõem de instrumentos destinados a atenuar as deformações do sistema distrital. Na França, país de tradição pluripartidária, há um mecanismo chamado “ballottage” que é um segundo turno entre os dois candidatos mais votados de cada distrito, sempre que ninguém tenha alcançado a metade mais um dos votos naquela região.
Na Alemanha, também para atenuar as deformações produzidas pelo sistema distrital, foi adotado o sistema de listas para eleger a metade do parlamento. A outra metade é eleita pelo sistema distrital. Isso equivale a uma confissão de que o sistema distrital puro deforma a expressão da vontade popular.
Além disso, cabe acrescentar que o voto distrital paroquializa o debate. O representante eleito por um distrito tende a se transformar num vereador federal, pouco interessado nos temas nacionais. Portanto, com o voto distrital, a representação do povo no parlamento, que já não é boa, tende a piorar.
O voto distrital também potencializa o abuso do poder econômico e inviabiliza o financiamento público de campanha. Neste sistema, o candidato rico não precisa dispersar seus recursos por todo um Estado. Ele pode concentrar seus recursos num único distrito, sobre uma única parcela da população, o que certamente aumentará sua eficácia. Além disso, não parece tarefa fácil organizar o financiamento público de candidaturas individuais, isso se tornaria uma fonte permanente de fraudes.
Outra fonte de distorção seria a redefinição periódica do mapa dos distritos. Isso provocaria uma guerra entre partidos, personalidades e caciques em busca da demarcação do distrito ideal para cada um dos envolvidos.
Por outro lado, nada indica que o sistema distrital possa contribuir para consolidar os partidos. Pelo contrário, este sistema permite que as disputas continuem sendo travadas entre personalidades e os partidos continuem pouco representativos, pulverizados e sem projetos unificadores, o que certamente não é bom para a democracia.
Por todas estas razões considero que qualquer tentativa de introduzir o sistema distrital representa um retrocesso para a democracia e significaria colocar mais um entrave à participação do povo na vida política.
Rubens Otoni (PT-GO) é deputado federal e foi relator da Reforma Política na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
Texto publicado no Portal do PT em 28/11/2006