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As vitórias de Lula e do PT em 2006, conquista histórica do povo brasileiro, iluminam os caminhos novos da transformação do país. Como será o Brasil após estes quatro anos?

As vitórias de Lula e do PT em 2006, conquista histórica do povo brasileiro, iluminam os caminhos novos da transformação do país. Como será o Brasil após estes quatro anos?

1 Assim como os quatro anos do primeiro mandato de Lula podem ser pensados a partir dos resultados eleitorais de outubro de 2006, síntese política das suas conquistas e limites, a voz política das urnas pode ser decifrada pelo futuro que descortinam.

O futuro do Brasil ao povo pertence, Deus e destino não necessariamente excluídos, já que também já se disse que a voz de um é a voz do outro. Tornou-se um lugar comum a avaliação de que nestas eleições, mais do que em qualquer outra da história republicana brasileira, emergiram os sujeitos populares, soberanos em suas razões de voto. São estes sujeitos soberanos, “milhões de Lulas” nas planícies, vales e montanhas – e também planaltos – deste país que inventarão o novo futuro. Não cabe nem prescrever nem idealizar o futuro, no sentido de saltar arbitrariamente os obstáculos à sua realização, mas de fazer com que seus possíveis ocupem o pensamento.

A terra nova do pós-neoliberalismo e suas veredas. Mas em que sentido é possível falar em pós-neoliberalismo, qual é mesmo esta terra nova, como caminhar por suas veredas?

No início dos anos 1990, um inteligente e precioso livro de ensaios, organizado por Emir Sader e Atilio Boron, trazia o título “pós-neoliberalismo” para a cultura política brasileira. Aqui no Brasil, em seu próprio e retardatário tempo de chegada, o programa neoliberal recém conquistava o centro do Estado brasileiro e por longos anos dominaria a cena. Mas aquele pequeno livro retraduzia para os brasileiros a crítica de esquerda já acumulada às experiências neoliberais no centro e em outras partes do mundo, contribuindo de forma decisiva para o caminho da resistência que, afinal, foi se tornando democraticamente vitoriosa entre os intelectuais e na consciência popular.

Falava-se ali em “pos-neoliberalismo” porque, examinado como fenômeno internacional, o neoliberalismo já apresentava evidentes sinais de esgotamento e perda de legitimidade. Assim, a luta contra o programa neoliberal no Brasil não tinha necessariamente que percorrer as mesmas etapas travadas por outros povos mas deveria, ao contrário, adiantar-se, ir além, imaginar o pós-neoliberalismo.

Mais do que um programa econômico, o neoliberalismo era formulado e entendido como uma vontade política de reorganização do Estado, adversária ao mesmo tempo, da social-democracia histórica (não aquela que se compôs com ele nas fórmulas da chamada Terceira Via) e do socialismo.

Quando se fala hoje em pós-neoliberalismo, após o período de transição que marcou com suas conquistas e limites a experiência do primeiro governo Lula, está se afirmando o enfraquecimento e a deslegitimação desta vontade política neoliberal, aqui representada fundamentalmente pela coalizão dirigida pelo PSDB com o PFL. Seria incorreto, neste sentido, afirmar que as realidades criadas pelo neoliberalismo no Brasil – a financeirização da economia, a dívida pública e seu sistema de garroteamento das finanças do Estado, a conformação de um largo desemprego estrutural, uma certa perda da capacidade republicana do Estado brasileiro em áreas fundamentais – foram deixadas para trás. Não se trata de saltar obstáculos mas de compreender que novas condições foram criadas para sua superação em uma lógica, que de conjunto, não precisa, não deve mais ser de transição, mas conformar-se em uma dinâmica alternativa, solidariamente dotada em suas várias áreas, política, econômica, social e cultural, de um sentido novo de Estado.

Crise do PSDB

Todo governo democrático é sua vontade política menos a força da vontade política da oposição. A potência governativa nova do segundo mandato Lula – expressa neste segundo turno pela magnífica vitória no pleito nacional, pela forte recuperação no centro-sul do país e pela vitória de importância amazônica no Pará – tem a sua contrapartida na crise de futuro do partido que organizou a vontade neoliberal no país.

Mais do que a derrota eleitoral de Alckmin, no segundo turno foi o programa neoliberal que saiu desmoralizado porque sequer conseguiu se constituir claramente no centro da cena. A imagem do candidato da coligação PSDB/PFL com a jaqueta das quatro estatais, para fugir da acusação de privatista, vale por mil análises. A autocrítica pública, liderada por Fernando Henrique Cardoso, de que teria sido eleitoralmente mais proveitoso para o candidato defender as realizações de seus dois mandatos presidenciais não passa no teste mais elementar de popularidade. O amorfismo de Alckmin, primo pobre do transformismo de Serra em 2002, um figurando a condição de médico cuja vida é voltada para os pobres, outro com a carteira de trabalho na mão entre artistas vestidos de macacão operário, não foi criação ou culpa do candidato mas sua sina e sua herança.

É sobre este pano de fundo histórico, o da flagrante contradição entre a opinião pública majoritária do país e a imaginação neoliberal, que deve ser analisada a derrota política da mídia nas eleições de 2006. O seu status quo,

suas linhas editoriais, seus colunistas, suas agendas artificialmente vocalizadas, seu vocabulário, sua visão de mundo atualizaram-se nos anos FHC. Foram nestes anos, por exemplo, que se reconstituiu a “modernidade” de O Estado de S.Paulo, que se consolidou a Veja como expressão mais forte do império editorial da Abril, que as organizações Globo e o grupo Folha de S.Paulo criaram o Valor Econômico, em um projeto que associava a empresa líder na mídia eletrônica e a empresa líder no jornalismo. O PT e a liderança de Lula, a nova consciência popular, não são propriamente inimigos a derrotar: são ameaças à sua própria credibilidade e, portanto, colocam em risco os seus negócios e interesses. Não há, pois, ponto de conciliação: qualquer imparcialidade, pluralismo editorial ou isenção jornalística seria contra-producente.

Esta que é a maior crise histórica do projeto PSDB, que nasceu como cisão liberal ao programa democratista e nacional-desenvolvimentista difuso do PMDB, tem hoje o nome de Serra e Aécio. O PSDB nordestino histórico, aquele que se formou em torno a um programa de modernização liberal do Ceará, foi inapelavelmente derrotado nas urnas em 2002. Tasso Jereissatti é hoje um líder sem liderados. Sua continuidade na presidência do PSDB, como se divulga, revela o peso inercial da crise.

Mas quem é hoje mesmo Serra, o fugaz prefeito paulistano e novo governador de São Paulo? Serra é a maior inteligência nacional-desenvolvimentista que foi reposicionada historicamente pela liderança liberal polarizadora de FHC. A sua campanha em 2002, centrada em um ethos novo da criação de empregos formais como solução para a crise brasileira, retomando um tema da velha social-democracia histórica do Estado do Bem-Estar Social, é uma solução transformista mas autêntica. Isto é, Serra na constelação de forças do PSDB, estava no extremo oposto do malanismo que dominou a cena nos governos FHC. Como esquerda do PSDB, Serra é pois sua consciência culpada, no melhor sentido que esta expressão pode ter, isto é, na sua angústia e no seu desejo de regeneração.

Se antes se apresentou como um liberal-desenvolvimentismo, agora quer ser mais desenvolvimentista sem deixar de ser liberal. O que não deixa ainda de ser contraditório. A especulação que se divulgou sobre sua intenção futura de vir a liderar a formação de um novo partido de centro-esquerda, mais desenvolvimentista e mais nacional, parece ser a versão da esquerda do propósito de “refundação do PSDB”, anunciado por FHC, com a atração de “novas lideranças”, como Gabeira, Roberto Freyre, Jarbas Vasconcelos, entre outros.

Este pequeno ensaio de identificação político-cultural de Serra deveria ser combinado com a tradição paulista do PSDB. Por que o PT ali nunca conseguiu ser majoritário, senão por breves períodos na capital e nem mesmo de forma duradoura senão em duas letras do ABCD? FHC nos anos 1980 já identificava São Paulo como a sociedade lockeana (de John Locke, fundador do liberalismo na filosofia política) contra o Estado hegeliano situado em Brasília, isto é, contra o Estado que planejava uma nação, seja no “populismo” ou no regime militar. A terra magna da pulsão dos interesses do capital, de seu pluralismo hierarquizado pelo mercado, versus a “metafísica” da Nação, de Vargas, Golbery ou de Lula. O PSDB de São Paulo é a expressão, com as mediações devidas, desta cultura de interesses. Da composição destes interesses provincianos e cosmopolitas, Serra quer fazer emergir algum plano de Nação: será possível? Ou pensando bem, este caminho não vem sendo feito historicamente, pelo outra ponta dos interesses, o mundo do trabalho, pelo PT?

Em Minas, também o PT nunca foi majoritário embora tivesse se assentado mais duradouramente no governo da capital e Lula tenha vencido por larga margem no estado nas duas últimas eleições. Mas por outras razões o PT não chegou ao governo estadual: porque tem perdido a capacidade de, através da esquerda, liderar o “centro”. E Minas, em sua tradição político-cultural, é o país do “centro”, da mediação, da mitologia da unidade nacional, nem muito ao sul nem muito ao norte, composto em sua vária geografia, ao sul com São Paulo, ao norte com a Bahia, na zona da Mata com o Rio de Janeiro e na ponta do nariz com o centro-oeste.

Aécio é exatamente este centro, este liberalismo não extremado em suas pulsões mercantis de interesse como o paulista e que se apresenta com mais civilidade política, portanto mais afeito à conciliação. Tancredo não é apenas o seu avô: é seu DNA, que dirige as suas ações desde o ponto forte da memória e da formação. Tancredo, aliás, não era propriamente um anti-getulista e, apesar de figura histórica do PSD mineiro, não colou a sua imagem à de Juscelino. A sua função histórica, a de condutor da transição negociada entre o PMDB e o regime militar, foi uma síntese histórica porque proporcionada e orientada para o futuro: o regime militar teve forças ainda para barrar a emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional e o PMDB, com mais forte representação política, não tinha audácia histórica para liderar uma ruptura. “Mudança já” ao invés de “Diretas já”, afinal, foi um slogan capaz de isolar politicamente o PT e dividir as forças democrático-populares por um período.

Afinal, Aécio quer ser síntese histórica – entre um liberalismo moderado e um petismo desnaturado de sua identidade histórica – ao formular sua possível candidatura à presidente da República em 2010? Em Minas, o centro da sua imagem é: “sou Aécio, sou Minas Gerais”. Aécio seria o caminho de Minas para retornar a Brasília. Mas para unir Minas, Aécio teria que celebrar, publica ou ambiguamente, um acordo com o PT, cedendo-lhe o caminho para o Palácio da Liberdade, sede do governo de Minas. Isto é o que se diz nos jornais mineiros e à boca pequena.

Ora, este projeto de pretender ser síntese entre um liberalismo moderado e um petismo desnaturado e trocar o Palácio da Liberdade (ao qual não terá mais direito, findo um segundo mandato) pelo Palácio do Planalto, não parece ter substância nem viabilidade histórica. A forma é tancredista mas não o conteúdo irrealista da transação.

Hoje, especula-se com um novo partido de Serra enquanto Aécio jura fidelidades ao PSDB histórico. O mais provável é exatamente o contrário do que dizem: Serra e FHC fazem cálculos sobre o controle do PSDB nacional e Aécio faz cálculos do que poderia vir a ser a aventura de uma migração. Em 1930, ao forçar a reiteração de uma candidatura paulista à presidência, atrelada à oferta de um vice gaúcho, os líderes de São Paulo forçaram a cisão final da aliança do café com leite, abrindo a cena histórica do getulismo. Será que outra vez, mas em outra disposição da mesa, o leite vai se derramar?

Terra nova
Cultivar a imaginação da terra nova é mais do que prestar homenagem aos pobres do campo do Brasil e aos heróicos movimentos que desde Canudos pulsaram por uma vida nova nos sertões deste país. É que nós também, em um sentido amplo, os socialistas, corremos o risco de sermos desterrados, de ser também “levantados do chão”, sem-terra mas aterrados por um horizonte fechado de futuro que o neoliberalismo enquanto imaginação visava.

Os socialistas precisam de terra nova. Um segundo governo Lula não é apenas nem principalmente a continuidade do primeiro mandato. Ele demanda outra agenda, outro modo de composição, outra dinâmica de relação com o PT, o PC do B, o PSB e, fundamentalmente, com os movimentos sociais. Mas ele não é imediatamente, automaticamente, um porto para a terra nova: ali onde termina a metáfora começa a história.

A terra nova é uma invenção de civilização brasileira que está aí, em potência, mas não existe. Ou, talvez exista, mas ainda não está aí. Seja como for, ela tem a sua definitiva imaginação literária na obra magna de João Guimarães Rosa e na prosa de seu narrador, Riobaldo, o seu fio de composição. A prosa de Riobaldo é a reflexão sobre a luta contra a presença do mal no Sertão através do pacto demoníaco – o mundo da violência contra a violência do mundo – e a sua descoberta que é pela auto-formação que se descobre que o demônio não existe, o que existem são os avessos do homem, os seus crespos, e o mal não se vence com a violência.

O segundo mandato do governo Lula é o tempo da passagem do reformismo fraco para o reformismo forte. Mas é, sobretudo, o tempo das revoluções culturais, da superação dos avessos de valores que reproduzem a anti-humanidade dos brasileiros: o racismo, a opressão das mulheres, a interdição da dignidade aos que trabalham, a violência contra a natureza e a negação para todos dos infinitos do saber que só a educação pública pode prover.

Há um tempo de se perguntar pelas razões da infelicidade. Outra é agora a nossa situação política, cultural e histórica: devemos nos fazer, a nossos corações e, publicamente, aquelas perguntas cujas respostas, e cuja procura das respostas, são caminhos de felicidade.

O que pode ser o Brasil em 2010? Como mais distribuir renda para mais crescer? Como dar uma feição coletiva e transcendente à liderança histórica de Lula? Como dar os passos possíveis e bolivarianos para a integração sul-americana? Como realizar a reforma agrária do século XXI? Como constituir os titulares do Bolsa-Família em sujeitos plenos em sua cidadania econômica e social? Como reconstituir, enfim, a cultura socialista e cidadã do PT?

Mas talvez a pergunta mais essencial e que nos traga mais felicidade seja aquela que indaga pelas veredas desta terra nova que pode compor os valores socialistas democráticos com a magnífica cultura popular dos brasileiros.