Edição nº 63 – novembro de 2006: O anti-pluralismo e o poder concentrado da mídia brasileira
Enquanto a democracia brasileira já avançou bastante na superação dos componentes oligárquicos de poder e na abertura à pluralidade das opiniões constituídas, predomina na mídia brasileira o anti-pluralismo e a concentração de poder econômico.
Enquanto a democracia brasileira já avançou bastante na superação dos componentes oligárquicos de poder e na abertura à pluralidade das opiniões constituídas, predomina na mídia brasileira o anti-pluralismo e a concentração de poder econômico.
Durante as comemorações da vitória eleitoral do presidente Lula na Avenida Paulista, uma faixa afirmava: “O povo venceu a mídia”. A frase, aparentemente sem muito sentido, chamava a atenção para um dos mais importantes fenômenos das eleições presidenciais deste ano – a atuação da grande mídia brasileira no processo eleitoral francamente hostil ao presidente Lula e ao PT e benevolente em relação ao tucanato.
Sabe-se que uma democracia consolidada necessita da existência de uma imprensa livre, independente e autônoma em relação aos poderes do Estado e a qualquer tipo de poder econômico, cerceador da liberdade de expressão. Esta condição, indispensável a qualquer democracia não é, no entanto, suficiente. É necessário também que esta imprensa livre e independente em relação ao poder do Estado seja capaz de expressar a pluralidade e a multiplicidade da sociedade civil em suas opiniões, desejos e interesses. O que as últimas eleições presidenciais demonstraram é que, se a primeira condição tem avançado muito nos últimos anos no país, a segunda mal começou a engatinhar. Em poucos períodos da história recente do Brasil a atuação da grande mídia nos processos eleitorais chamou tanto a atenção negativamente, em muitos momentos, ultrapassando os limites da convivência democrática, o que ficou comprovado, inclusive, por meio das diversas análises realizadas pelo Observatório Brasileiro de Mídia ao longo da campanha. Esta atuação partidarizada da grande mídia brasileira se expressou em editoriais, colunas e manchetes amplamente desfavoráveis ao PT e ao presidente Lula, refletindo um tratamento desigual e muitas vezes preconceituoso, na maior parte das vezes, sem levar em consideração os pensamentos majoritários da opinião pública que consolidaram os resultados eleitorais.
O pensamento único, a falta de espaço para a pluralidade de opiniões e pensamento dos grandes meios de comunicação, se revelou durante toda a campanha eleitoral e mesmo após. O simples conselho de auto-reflexão para a imprensa feita por Marco Aurélio Garcia, presidente do PT e coordenador geral da campanha de Lula, devido aos abusos cometidos durante a campanha, foi transformada por Maria Sylvia Carvalho Franco, recém colunista da Folha, em suposta expressão da “censura” típica do PT stalinista e de “partidos autoritários, ágeis no domínio das consciências” para em certa altura afirmar que “o presidente do PT, ao censurar a imprensa, fugiu à lógica” (Auto-reflexão e autocrítica 09/11). O ato de censura é assim pressuposto, sem mais explicações, sem a demonstração de que meios de comunicação tiveram suas liberdades atingidas por atos do presidente do PT, como se o direito à crítica coubesse apenas aos meios de comunicação e a sua ilimitada liberdade de expressão.
O relatório com o balanço da cobertura da imprensa sobre as eleições presidenciais nas semanas que antecederam as eleições divulgado pelo Observatório Brasileiro de Mídia é bastante revelador. Entre as revistas, Lula foi citado negativamente em 62,5% das reportagens, já Alckmin teve apenas 16,7% de menções negativas. Já entre os jornais, Lula foi citado negativamente em 65,5% das matérias, enquanto Alckmin teve 35,3% de menções negativas.
Portanto, enquanto Lula e o PT eram obrigados a conviver com duras críticas durante o período eleitoral, as administrações estaduais e municipais do PSDB eram praticamente esquecidas pela grande mídia. A medíocre administração do governo Alckmin em São Paulo não foi seriamente avaliada em nenhum grande órgão de imprensa. A este respeito, o próprio ombudsman da Folha de S. Paulo, Marcelo Beraba, notou que as administrações tucanas foram mal cobertas. Como evidência disto, cita o fato de que a informação sobre o déficit do estado de São Paulo só apareceu no finalzinho do primeiro turno, fora da cobertura rotineira do jornal, numa pequena coluna das “sociais” (“Notícias de S. Paulo” 05/11).
Mídia e opinião pública
Uma das questões que mais chamaram a atenção dos especialistas nestas eleições foi a existência efetiva de um descolamento entre a opinião e os interesses da grande mídia em relação à opinião pública. Diante da persistência da liderança da candidatura Lula, iniciou-se uma reflexão sobre o porquê da força da candidatura petista apesar da exposição negativa em jornais e emissoras de TV. Mais uma vez, a incompreensão e intolerância dos grandes meios de comunicação chegaram às portas do preconceito. Não conseguindo distinguir as opiniões de seus veículos da opinião da população, analistas políticos sempre acreditaram que são formadores de opinião, em última instância, que são a opinião pública. Desta forma, uma das justificativas dadas à liderança da candidatura petista foi a falta de informação da base que elegeu Lula, majoritariamente de renda mais baixa. Por informação, entenda-se as reportagens veiculadas pelos mais poderosos meios de comunicação do país. Durante algumas semanas, vigorou o argumento do “povo desinformado”, do povo “que não sabe votar”, neste caso, a maioria mais pobre que votou em Lula. Para se ter idéia, Maria Sylvia Carvalho Franco chegou a utilizar a imagem da “servidão voluntária” para se referir a essas massas que optam pela “escravidão” à “liberdade”.
Em entrevista à revista Caros Amigos, o jornalista Franklin Martins, ex-comentarista político da TV Globo e atual contratado da TV Bandeirantes, tenta explicar a perda de influência da mídia usando a teoria da “pedra no lago”. A opinião deste grupo de jornalistas irradiaria para o conjunto da população a visão sobre os fatos. Para Martins, os primeiros anéis da onda, para usar a referência da imagem, deixaram de ser as classes ricas e médias e passaram a ser as classes C e D, mais diretamente afetadas pelas políticas governamentais e pela redução da miséria e da pobreza. No raciocínio do jornalista, não só houve um deslocamento como o voto das classes mais pobres passou a influenciar o da classe média, fazendo referência ao crescimento que Lula obteve entre este segmento na reta final das eleições. Para o jornalista Luís Nassif, este fenômeno poderia ser associado ao fato de que no começo dos anos 1990 começou a surgir a “banda B” da opinião pública, quando as classes D e E começam a ter voz.
Para o professor de comunicação da UnB Venício A. de Lima, em entrevista para a agência Carta Maior, o quadro atual poderia ser explicado também com outro referencial: a ‘teoria da cascata’, do cientista político italiano Giovanni Sartori. Segundo ela, há um processo de irradiação das idéias das elites econômicas e políticas, além da mídia, para o conjunto da população. Mas a medida em que a ‘água’ desce, ela é ‘contaminada’ pelos variados níveis da cascata, numa nova referência visual para explicar o fato de que a população interpreta as idéias dominantes de acordo com os seus valores. A teoria ajudaria a explicar como as condições da população teriam papel importante na formação da opinião política para além dos interesses da grande mídia. Desta forma, o impacto das ações do governo foi fundamental na formação das opiniões eleitorais na medida em que as camadas populares viram o Estado trabalhar em seu benefício.
Por outro lado, que fatores tornaram possível uma postura tão agressiva e intolerante da grande mídia em relação ao PT e ao governo Lula? Para o jornalista Luís Nassif, há uma série de fatores internos ao jornalismo relacionadas à precárias condições de trabalho, passando pela característica da imprensa brasileira com origem oligárquica e monopolizada e seus poderosíssimos interesses econômicos. Por outro lado, haveria também fatores externos à imprensa como os erros do próprio governo e do PT diante da relevância da questão da corrupção, o que desencadeou um número estrondoso de reportagens incriminatórias em que o abandono do princípio da presunção da inocência se tornou a tônica das matérias. Neste sentido, a questão não é que a imprensa tenha inventado pura e simplesmente os escândalos, como acusam o PT de pensar, mas é que o enquadramento da cobertura que a grande mídia realizou tanto do governo Lula quanto do PT expressou uma presunção de culpa que ao longo dos meses seguintes foi se consolidando por meio de uma narrativa própria, à revelia dos fatos. Em relação à Folha de S.Paulo, mais uma vez o ombudsman Marcelo Beraba percebeu este fato. No recente caso da quebra do sigilo de um dos telefones do jornal, o editorial “Direitos ameaçados” pede que a polícia e o Ministério Público sejam menos levianos, mas o jornal não hesita em publicar informações que vazam de inquéritos inconclusos a tal ponto que “algumas notícias chegam a ser incompreensíveis, tão fragmentadas e incompletas estão” (Gato Escaldado 12/11). O ombudsman encerra a matéria lembrando que nos últimos anos a grande imprensa criou a figura da “presunção de culpa” em que até provas consideradas ilegais pela justiça foram às páginas dos jornais sob o argumento da liberdade de imprensa.
Em relação ao governo e ao PT, segundo Luís Nassif, isto começou no ano passado, quando alguns colunistas, não oriundos da imprensa propriamente dita, começaram uma crítica mais pesada a Lula e ao PT. Essa crítica, num determinado momento, resvalou para uma posição de intolerância e teve eco na classe média. Neste momento, a Veja passou a se tornar o padrão editorial ao ecoar explicitamente esta cobertura intolerante e monolítica, o que Nassif considera um suicídio editorial. A partir daí, criou-se um clima muito pesado de patrulhamento e ataques em que os colunistas, de uma maneira quase unânime, entraram. Essa verdadeira guerra comprada pelos meios de comunicação levou a uma cegueira dos veículos, que acabaram se auto-referenciando e perdendo sensibilidade em relação ao leitor e à opinião pública.
Por uma mídia plural
A perda da influência da grande mídia no caso das eleições presidenciais deste ano não pode levar a supor, entretanto, que os meios de comunicação perderam seu papel na formação de valores e da agenda pública. A mídia torna visíveis fenômenos sociais, eventos e atores que compõem nosso sistema político. A democracia, tem na visibilidade das questões políticas e do debate de idéias elemento importante para sua existência, dependendo portanto da mídia como espaço fundamental de reprodução. Além disto, para além das eleições presidenciais, o quadro eleitoral aponta também a reprodução de grupos dirigentes que, não por acaso, têm ligações com os donos das redes de televisão, rádio e dos jornais nos estados.
Por isto mesmo, o aperfeiçoamento da democracia brasileira passa, além de consolidar as liberdades dos meios de comunicação, promover o desenvolvimento de uma mídia plural que saiba acolher a multiplicidade e pluralidade da sociedade brasileira sem voz na grande mídia. Vários fóruns e instâncias existentes sobre o tema, assim como movimentos sociais, já possuem acúmulos e propostas que precisam ser ampliados, reforçados e dinamizados. A proposta da “rede pública de comunicação”, com estrutura correspondente ao alto grau de qualidade do setor e o controle democrático da sociedade constitui uma das propostas dos movimentos sociais assim como o incentivo às rádios e TVs comunitárias.
Enquanto propostas deste tipo não se tornam políticas públicas, a mudança nesta estrutura de uma grande mídia monolítica e defensora dos mesmos interesses estará distante, já que junto com a condenação do governo Lula vem a crítica antecipada a qualquer tentativa de constituir um sistema de mídia nacional plural e democrático, o que significaria perda de poder para o restrito e concentrado grupo que detém o controle dos meios de comunicação do país.