A experiência hoje vivida pelos brasileiros de construir uma sociedade pós-neoliberal expõe as áreas menos densas e cobra um desenvolvimento mais pleno das potências de emancipação contidas no pensamento do grande pensador português.

A experiência hoje vivida pelos brasileiros de construir uma sociedade pós-neoliberal expõe as áreas menos densas e cobra um desenvolvimento mais pleno das potências de emancipação contidas no pensamento do grande pensador português.

Boaventura dos Santos é um crítico da narrativa da modernidade e, ao mesmo tempo, da celebração pós-moderna através de um lugar que chama, muito originalmente, de “pós-modernidade de oposição.” Assim como Habermas, que elaborou a teoria da ação comunicativa como alternativa à racionalidade instrumental que Weber configura como típica e incontornável na sociedade moderna, o sociólogo português quer construir uma alternativa sociológica à noção liberal da modernidade. Mas, à diferença de Habermas, que avalia a modernidade como ainda não tendo esgotado o seu potencial de emancipação, apresentando mais uma patologia resultante de um desequilíbrio fruto da colonização do chamado “mundo da vida” pela razão instrumental, Boaventura dos Santos postula que a modernidade ocidental já não possui respostas aos grandes problemas da humanidade que o seu desenvolvimento gerou.
Daí toda a pulsão de sua teoria em buscar outras racionalidades civilizatórias, no grande aprendizado com o Sul e o Oriente. Neste sentido, muito diferente do que é comumente usado, Boaventura dos Santos reivindica para si a condição de pós-modernidade. Mas, em última instância, o professor português continua tomando a grande narrativa liberal de Weber como referência, mesmo que de forma crítica. Isto é, sua conceituação ainda continua trabalhando com Weber como paradigma negativo, ainda não foi capaz de romper completamente com a sua lógica. A pós-modernidade, mesmo de oposição, só faz sentido como capítulo de uma outra grande narrativa que é a modernidade liberal.

Seria necessário sair desta grande narrativa, retirando a máxima consequência de dois recursos da emancipação retomados pelo próprio Boaventura dos Santos: o multiculturalismo (a possibilidade de trabalhar com lógicas civilizatórias plurais, fugindo à imitação dos padrões da modernidade liberal anglo-saxã) e a multitemporalidade (fugindo de uma perspectiva histórica linear, que considera atrasadas ou simplesmente ultrapassados diferentes modos de vida social).

É muito interessante, neste sentido, retomar o modo como os modernistas de 1922, em particular Mário de Andrade, elaboraram respostas ao enigma da civilização brasileira. Isto é, de modo muito particular, eles recusaram a imitação das civilizações européias ou norte-americanas como meta, propondo a construção de uma identidade civilizatória própria, em diálogo com as outras civilizações, a partir de nossa própria experiência. Em segundo lugar, recusaram opor passado/futuro, formulando a noção de tradicionalização, isto é, o modo de se apossar do passado referindo-o aos dilemas do presente. Dando, em outras palavras, vida e sentido ao que passou através de um trabalho reflexivo, que separa as formas mortas do que se presentifica e até contém promessas de futuro.

Em terceiro lugar, exercendo uma nítida desconfiança em relação à ambição moderna liberal de desencantamento do mundo, tornado possível através da plena racionalização de todas as esferas da vida social. Na civilização brasileira que se deveria construir, o sentido do lúdico, do erótico, do transcendente não deveria ser deixado para trás. Na cultura do marxismo, coube à chamada tradição da Teoria Crítica ou Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Benjamin e Marcuse) fazer a crítica de uma civilização dominada pelas “frias luzes da razão”. Mas esta crítica se fez sob a pressão das “pulsões de morte”, derivadas das experiências trágicas do nazismo e do estalinismo. Na cultura do Modernismo de 22, esta crítica se faz como que pelas pulsões de vida, irresistíveis na vida telúrica popular, que resistem às pressões da racionalização extremada.

O lugar comum do público

Certamente um dos diagnósticos centrais da reflexão de Boaventura dos Santos está na identificação da centralidade da relação entre Estado e sociedade civil para a constituição das teorias de emancipação. Crítico do modo como a tradição liberal formulou esta questão, concedendo à sociedade civil uma condição de precedência e de possessão de direitos contrapostos ao Estado, o sociólogo português mostra com grande acuidade como a metáfora base/superestrutura, em uma certa tradição marxista, acaba por não romper com o modo liberal de equacionar esta questão decisiva.

Em razão desta elaboração, Boaventura dos Santos construiu em suas teorizações a crítica aos que, na crítica ao estatismo de certas tradições de esquerda, tenderam a formular a noção extremada de “autonomia dos movimentos sociais”, como se eles pudessem se compor e formar suas agendas, suas formas organizativas, suas projeções fora de qualquer instituição estatal. A seu modo, muitas vezes provocativo de formular novos desafios teóricos, Boaventura dos Santos chega a formular certas experiências de democracia participativa, que conformam princípios de uma nova institucionalidade, como se este Estado fosse expressão de um “novíssimo movimento social”.

É, pois, no sentido da reconfiguração de novos espaços públicos que o professor Boaventura encaminha uma nova síntese teórica. Esta formação de novos espaços públicos é formulada, em geral, em uma linguagem contratualista, isto é, através da denúncia do modo como as democracias liberais modernas têm estreitado a sua base social de reconhecimento de direitos e deveres, expulsando trabalhadores do mercado formal e obstruindo as portas de entrada das novas gerações que chegam ao mercado de trabalho. Este duplo movimento de expulsão e fechamento tem gerado, em particular nas sociedades periféricas, situações que Boaventura dos Santos, elevando o tom da denúncia, chama de “fascismo social”: pessoas tão à margem dos direitos que podem sofrer violências de toda ordem, a qualquer hora e em qualquer lugar, não sabendo ao certo como terminarão, se terminarão, o dia que amanheceram.

Formular novos contratos de “inclusão social”, de expansão de novos direitos e deveres, é pois um movimento político necessário na contemporaneidade. A linguagem contratualista, no entanto, na filosofia política é neutra: ela indica apenas um procedimento mas como não formula substantivamente os direitos e deveres a serem contratados, pode ser usada por liberais, neoliberais, republicanos socialistas ou não. Ao lançar mão, por exemplo, de uma cultura de respeito aos contratos, os neoliberais estão se valendo de uma retórica contratualista, embora assimétrica porque garante superdireitos aos capitalistas mas nega até o direito mínimo aos trabalhadores e consumidores.

Esta necessidade de dar um sentido substantivo, não apenas formal, ao que é público reaparece no modo como o professor Boaventura dos Santos conceitua o público (em um sentido aproximado ao de Habermas): todo aquele que se vale de uma retórica dialógica, baseada no diálogo, e faz uso de regras procedimentais partilhadas. Seria necessário elevar o conceito de público a um patamar nitidamente republicano, no sentido em que esta tradição se faz presente na filosofia política. Isto é, definir o público como sendo universal, para todos, portanto, alternativo ao caráter seletivo e segregador do ethos mercantil, do modo como o mercado organiza a vida social, e democrático, no sentido forte do termo, isto é, que é autogerido e controlado socialmente através da combinação das diferentes formas de democracia (oposto, portanto, ao elitismo e tecnocratismo liberais). Este sentido do público poderia fornecer vida, ossatura e carne, sentimento e imaginação, à defesa de um novo contratualismo, de novas contratualidades socialmente integradoras e universalizantes.

Multiculturalismo e intraculturalismo

No sentido de ir além das figuras do multiculturalismo, do reconhecimento, convivência e diálogo com vários modos de civilização, o professor Boaventura dos Santos tem lançado mão da categoria de barroco para identificar a raiz da identidade portuguesa e ibérica contraposta às diretrizes estéticas e de civilização vindas do Renascimento e da Reforma.

Em seu belo ensaio “Nossa América: a formação de um novo paradigma subalterno de reconhecimento e distribuição”, em que chama para si as figuras do peruano Mariátegui e dos brasileiros Oswald de Andrade e Darcy Ribeiro, o sociólogo português indica o ethos barroco como típico dos povos americanos, “colonizados por centros débeis, como eram Portugal e Espanha”. Este ethos barroco, em seu desdém pelo evolucionismo e aberto à temporalidade da interrupção, disposto à artificialidade lúdica e subversiva, seria marcado pela intensificação da vontade e da paixão em um processo que não visaria a permanência e o repouso mas permanente incompletude e abertura.

Componentes fundamentais desta identidade barroca seriam a sociabilidade, “a invocação ao sentido comum”, a criação de novas formas como exercício de liberdade e a mestiçagem. A mestiçagem, como se sabe, é na explicação da originalidade da civilização brasileira de Gilberto Freyre e, depois, de Darcy Ribeiro, um caldeirão de novas possibilidades de vida em comum, de cultura e de criação.

Assim, mais do que marcada pelo respeito às diferenças, a civilização brasileira teria a sua identidade formada por um processo doloroso, porque marcado pelo genocídio e pela escravidão, mas potencialmente emancipatório de encontros, de síncreses, isto é, combinações que não chegam a alcançar um novo coerente, de fusões entre os diferentes.

O cerne de um processo de civilização é o modo como constitui o sentido da vida. Na civilização brasileira em formação, há nitidamente três humanismos em um processo irresolvido de diálogo: o antropocêntrico (conteúdos laicos ou laicizados de vida sob as formas da tradição cultural do Renascimento, que exaltam a dignidade do homem criador), o teocêntrico ( onteúdos como universalismo, dignidade humana, direitos naturais e bem comum retraduzidos através do neotomismo, como é aquele que se expressa, por exemplo, pela CNBB e no cristianismo popular) e cosmocêntrico (sentidos da vida pensados cósmicamente em formas laicas ou religiosas, que buscam pensar a harmonia da vida dos homens inserido na harmonia do Cosmos). Estes três humanismos, longe de freqüentarem apenas a cultura erudita, compõem também, com as mediações próprias, a vida cultural do povo brasileiro. Seria, pois, necessário que o diálogo construtivo destes três humanismos iluminasse as possibilidades futuras da civilização brasileira. O marxismo, pensado por Gramsci, filho da alta tradição do Renascimento italiano, como “humanismo absoluto”, seria um parceiro importante deste diálogo, assim como outras formas de socialismo, elaboradas em outras gramáticas.

Em um ensaio nitidamente autobiográfico, Boaventura dos Santos propõe a identidade não como algo fixo mas como fruto das negociações de sentido, de jogos de polissemia, de choques de temporalidade. Faz lembrar o verso de Camões: “quem não perde a condição, perde a vida”. Sem negar a sua condição de um natural de Coimbra, Boaventura dos Santos está, não apenas na sua condição de intelectual, envolvido em uma generosa aventura da identidade. Como autor de sua própria obra, cabe-lhe escolher a figuração brasileira de sua persona. Mas, por sugestão simpática, um seu leitor poderia lhe sugerir a carnação modernista de um mestiço Mário Oswald de Andrade ou, quem sabe, de um sociólogo batizado Florestan Darcy Fernandes Ribeiro?

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