Um imenso grotão?, por Otávio Velho
A grande votação de Lula não permite que a consideremos como oriunda dos grotões: é impossível que haja tanto grotão assim
Em décadas passadas, pesquisei, no sul do Pará, como os pequenos agricultores eram atormentados pela possibilidade da “volta do cativeiro”, assunto recorrente entre eles e que tinha a ver com as ameaças brutais e permanentes a sua existência social.
Retornando recentemente à região, fui surpreendido pelos testemunhos de que já não se fala mais disso e de que, ao contrário do que parecia ser seu destino inexorável, os pequenos agricultores não desapareceram. Hoje, organizados de variadas maneiras, recuperaram muitas das terras que haviam sido ocupadas ilegalmente pelos grandes proprietários desde o século 19. O outrora poderoso patriarca da principal família da oligarquia local se encontra em prisão domiciliar, acusado de assassinato.
Testemunhos como esse se multiplicam e são trazidos por diversos observadores de várias regiões do país, sobretudo Norte e Nordeste: atividade intensa na produção e no comércio local, novas iniciativas, uma nova dignidade. Despercebidas das camadas médias das nossas metrópoles, transformações importantes vêm ocorrendo, ainda que as disparidades sociais permaneçam imensas.
Pois é em ambientes como esses que muitas vezes são implantados os programas sociais do governo. Ou seja, esses programas não só não partem do zero como também demonstram capacidade de afinar-se com o que já vinha se dando. Ajudam a acelerar as transformações em curso que levam seus protagonistas a multiplicar articulações e a ganhar uma percepção globalizada da situação. Esses programas não podem ser paternalistas: os agentes governamentais é que seguidamente têm de “correr atrás” do que já vem ocorrendo.
Os habitantes dessas regiões em geral sabem disso, o que explica por que nessas eleições votaram maciçamente em Lula -figura certamente paradigmática e com a qual estabelecem uma comunicação que não é só a das palavras. Assim, votaram não por terem sido submetidos a uma nova servidão, pois o que está em jogo é a libertação do cativeiro, inclusive do cativeiro político, substituído por uma disponibilidade para o estabelecimento de parcerias com os agentes sociais que estejam dispostos a se aliar a eles.
O ambiente social e econômico de intenso dinamismo faz lembrar por analogia os efeitos do microcrédito, que foi responsável recentemente pela outorga de um Prêmio Nobel a Muhammad Yunus. Nesse ponto, política social e econômica se encontram, e a idéia de que as políticas econômicas dos governos Lula e FHC são iguais não leva em conta essa interseção, reiterando uma visão restrita e segmentada. Visão, aliás, que não é das elites, pois de outro modo não se entenderia sua renhida oposição a Lula.
Na falta de conceitos adequados, a tendência é ignorar o que se passa ou tentar reduzir tudo a imagens anteriores. Imagens como a da divisão do país entre uma face supostamente progressista e outra atrasada, dos “grotões”, tidos como dependentes do Estado -quando, na verdade, essa dependência se traduz num volume de recursos que nem de longe se aproxima daquele de que se beneficiam, direta ou indiretamente, os setores considerados avançados.
Ainda está por se fazer a teoria econômica e social de tudo isso. Mas a eleição que agora termina teve o mérito de não deixar que se continue a ignorar o que se passa, mesmo à custa de muita perplexidade. Isso porque a grande votação de Lula não permite que a consideremos como oriunda dos grotões: é impossível que haja tanto grotão assim. Além do fato de que não foram os grotões que elegeram Maluf e Enéas; e não foi o suposto centro que derrotou Severino Cavalcanti e ACM.
O movimento do primeiro para o segundo turno abalou as crenças sobre a importância dos “formadores de opinião” e a suposta transmissão de informações e de valores partindo do centro para a periferia. O que houve foi uma inversão de mão e uma extensão, por meio de mecanismos moleculares que pouco conhecemos, daquele que já havia sido, no primeiro turno, o voto preferencial da chamada periferia. Foi ela que mostrou, assim, sua capacidade de influência e indicou a possibilidade de reduzir os riscos da polarização Norte-Sul vaticinada por alguns.
Vamos ver de quanto tempo precisaremos para absorver tudo isso. Absorver, inclusive, que o crescimento econômico precisa ser qualificado e que não se trata apenas de fazer crescer o bolo. Nesse ínterim, esperemos que a capacidade de reconhecer a nova situação prevaleça sobre o ressentimento.
*Otávio Velho é antropólogo e professor emérito de antropologia do Museu Nacional.