por Pedro Cláudio Cunca Bocayuva

O ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso vem correndo o risco de disputar os últimos lugares da lista dos piores governos de nossa história, ao lado de Dutra e Collor. Enquanto o presidente Lula vem disputando os primeiros lugares dentre os governos que mais sofreram denúncias de corrupção e teve seus correligionários acusados de práticas ilícitas, ao lado de Vargas e JK. A conjuntura eleitoral se aqueceu ao longo da reta final para o desfecho do primeiro turno e, como tudo parecia resultar numa vitória de Lula, mesmo com as denúncias diárias das trapalhadas do tipo “Dossiê Serra”. Mesmo com o fato de que não interessa ao PSDB e às elites dominantes investigar e levar a termo a verdadeira conexão entre oligarquização liberal dos poderes e corrupção (já escrevi sobre as relações óbvias entre as CC5, os precatórios, o Banestado, a publicidade governamental, as emendas ao orçamento federal, a emenda do segundo turno, os lobbies, a sonegação, os paraísos fiscais, a privatização, os fundos de pensão, o mensalão e as sanguessugas). Por isso, o ex-presidente sugeriu ao ex-governador ressuscitar o espírito reacionário que rondava o ciclo político de 1946-64, o do ex-governador Carlos Lacerda.

Ao final do primeiro turno o objetivo do candidato do PSDB-PFL, segundo FHC, deveria ser o de mudar o formato da campanha em moldes lacerdistas. Segundo FHC, Alckmin precisava bater forte em Lula, com o espírito do Corvo (Carlos Lacerda). Fazer com Lula o que Lacerda fez com seus adversários. Golpeando Lula, assim como ocorreu com Vargas ao se construir a imagem do “Mar de Lama” que atingia o Palácio do Catete. Assim como ocorreu com JK, no apelo para a “Vassoura” que deveria limpar o Palácio do Alvorada levando Jânio Quadros (um Enéas brilhante e bêbado) ao posto de supremo mandatário da República. Assim como ocorreu com Jango, que foi apeado do poder pelo golpe militar em processo que buscava legitimidade, na ação conspiratória e na mobilização das hostes da família de classe média contra a “República Sindicalista”, o “Comunismo” e as “Reformas Sociais de Base”. Em todos esses momentos políticos a oratória e a conspiração de Lacerda estiveram a serviço da contra-revolução.

No processo eleitoral do primeiro turno, essa nova cruzada começou utilizando o aparato midiático e os erros do adversário. As paixões se aqueceram alimentando a crítica moralista de antigos aliados de Lula. Alckmin cresceu amparado pelo véu construído do esquecimento sobre a relação entre corrompidos/aparelhistas/esquemas financeiros, pela colocação das malas de dinheiro no lugar dos bancos. As “camisas negras” de Garotinho se somaram às novas hostes da Marcha da Família pela grande propriedade e ao janismo, através do novo vôo do Corvo. As “Aves de Rapina” da Carta Testamento de Getúlio Vargas voltaram a voar no céu da República, visando atingir ao presidente Lula e seu governo.

Lula passou a ser duramente atacado menos pelos seus erros do que pelos seus pequenos acertos: distribuição direta de renda, aumento do salário mínimo, crédito popular, mudança na matriz energética, construção naval, reparo de infraestrutura, apoio ao pequeno produtor familiar rural, apoio ao cooperativismo, nova política cultural, acesso a Universidade, queda limitada da taxa de juros, controle da inflação, crédito popular, ação afirmativa, concursos públicos, geração de emprego, reconhecimento de direitos ao emprego doméstico, ação da Polícia Federal contra o crime organizado, política externa multilateral e latino-americana, acesso a telemática etc.

O processo de lacerdizar Alckmin gerou uma operação sem precedente de encobrimento e ocultação do debate que silencia a voz dos quadros críticos da esquerda. A voz silenciada é a dos contingentes majoritários da crítica política radical aos limites de quase-políticas públicas e a timidez reformista do governo Lula. Mas nesse segundo turno os movimentos sociais e os críticos de esquerda unificados na grande oposição interna no PT começam a mostrar a sua força, ainda debilmente representada no novo comando de campanha. Desta forma, os ataques da direita não poderão calar a voz que reentrou em cena, a força que mais atuou no apoio critico ao governo Lula e contra os que desenvolvem o “Ornitorrinco”. Ao lado da onda de bom senso que vai ganhando força no país, que considera Lula entre o mal menor e um primeiro movimento de reforma social, a “Refundação” petista vai ter um papel chave na luta pela vitória de Lula. Que dependerá muito da credibilidade dos que compõem esse contingente de esquerda organizada do país. A força do petismo democrático socialista e dos movimentos sociais será decisiva para derrotar o movimento neo-lacerdista de FHC/Alckmin. Depois de um atordoamento por força de tantos erros do grupo dirigente paulista vemos um reanimar de militância que explodiu na Bahia e já atingiu o Rio Grande do Sul. A esquerda radical e democrática se reorganiza apoiando Lula criticamente. Porque compreende a lógica golpista do PSDB e do PFL com sua construção de um novo “grande medo”, de um brandir das vassouras que pretende restaurar o autoritarismo em nome de uma suposta eficiência. Porque pode ver os enormes efeitos de uma pequena reforma social-distributiva, que por pequena que seja tirou da fome milhões de pessoas.

Mas os ecos de 64 retornam combinando a farsa com a tragédia. Por isso, cabe situarmos os elementos clássicos dessa operação na atualidade. Vamos examinar o processo de mascaramento de Geraldo Alckmin.

Na era da política do espetáculo a opção por essas ou aquelas personas (máscaras através das quais ressoa a voz dos artistas do teatro clássico greco-romano) aparece mais como uma mercadoria ou um velamento para o jogo competitivo, que busca envolver o cidadão, passivo espectador. Criando um teatro de máscaras pós-moderno, onde, ao invés de arquétipos temos a projeção de virtualidades que disputam no palco das imagens uma passagem da visão irreal do cotidiano para uma (hiper) realidade. A política como mercadoria é retroalimentada pela produção de um oceano de factóides (pseudo-fatos que ganham força imaginária na disputa) que nos envolvem num simulacro de política. Mas, quando esse processo falha, se abre uma brecha na fabricação diária de fatos que visam destruir a memória coletiva. O processo de transformar a política pela produção da profusão de imagens falha porque houve mudanças consistentes na dinâmica material e simbólica da disputa política.

O reservatório de idéias dos marqueteiros se esgotou por força dos limites e da desconfiança de um público que se informa por outros meios, que desconfia da informação e da fabricação de uma disputa alienada. Só resta aos adversários travar a luta com outras armas que acentuem contrastes, que gerem temores e movimentos velozes de opinião. A disputa passa a se dar entre as leituras e interpretações sobre o que é real. Por que tanto afã em destruir a imagem de Lula e do PT? Destruir a credibilidade do adversário se torna o ingrediente clássico que toma a cena. Os sofistas retornam, posto que são os intelectuais da arte da retórica. FHC é o grande sofista do momento. A política vira novamente um teatro. O que se torna bastante revelador para a definição das relações de força, posto que as fantasias precisam se alimentar no caldo da cultura.

A história se vinga fornecendo os trajes que podem alimentar o imaginário. Os tipos históricos se transformam em estilos, a memória das lutas volta travestida das tragédias para despertar as paixões do inconsciente coletivo da polis.

O Brasil da modernidade global eletrônico-informacional e midiática está se revelando um país de grande capacidade de leitura política. Quando os meios de criação do presente absoluto se tornam incapazes de resolver a disputa, os atores precisam apelar para a nostalgia. Alguns apelam para o saudosismo recriando personagens da história republicana, figuras emblemáticas, tipos ideais de homens públicos, outros buscam reavivar o drama coletivo, a alma popular. Nesse cenário os protagonistas entram no palco com um esforço maior de marcação de identidades. Mais do que mudar estilos os atores se vestem de personagens do gênero histórico, na luta desesperada para ganhar autenticidade. O teatro que sai das sombras começa a se desdobrar em atos sem máscara, como numa telenovela realista. A crítica histórica e o resgate da memória coletiva se tornam uma importante operação intelectual e política. As forças reacionárias buscam traçar seu tipo ideal a partir do resgate da figura mais característica do grande orador e conspirador de direita, deixando de lado os tipos ideais de políticos conciliadores ao estilo do velho PSD. O PSDB agora se identifica de maneira aberta com a velha UDN.

As polarizações artificiais ganham medida depois da desenfreada desmedida de ataques desferidos contra Lula. As intenções reais do atores se revelam nas escolhas, nos enredos e na fantasia. Mas a leitura política da disputa depende agora da opinião direta, o coro se rebelou. A polarização formal vai ganhando tessitura real, pois os interesses e valores se revelam. O jogo das identificações se desmercantiliza. Os atores mostram a sua cara, sua verdadeira face e voz se projetam no centro do palco em meio às multidões. Num momento como esse a política não pode mais ser mercadoria. Os políticos deixam de ser apenas os vendedores de simulacros substitutivos. A doxa, a opinião, se constrói doravante no terreno do senso comum dos grupos sociais. As divisões na opinião ganham as conotações do repertório de bom senso dos cidadãos que, deixam de depender dos especialistas, tornando-se eles mesmos os intérpretes ativos que contracenam com os artistas. Não temos mais uma final de Big Brother, ou uma final de campeonato de futebol. Não temos os personagens secundários que davam o toque de ópera bufa nas disputas políticas (Sarney, Collor, Itamar, Maluf possuem força mas, não podem aspirar novamente o centro do palco, vivem da inércia da consciência). Não temos mais os figurantes que servem de objeto e espelho.

O candidato Geraldo Alckmin conseguiu transformar a máscara através da qual sai o som da voz do artista numa verdadeira carapuça. As lições de Carlos Lacerda, controversas como administrador (vide seu segmento segregador e falho na história política do Rio de Janeiro até o “Cesarismo”), foram sendo assimiladas pelo comando tucano-pefelista alimentado pelos ex-comunistas (como sempre os que fazem o pior papel). As características de Carlos Lacerda são valorizadas. Essas são, em resumo: 1. O Denuncismo e terrorismo verbal; 2. a alimentação dos preconceitos e temores das classes médias; 3. o verbalismo autoritário em nome da peudo-competência modernizante; 4. a busca de alinhamentos naturais em defesa dos interesses privados e da aliança do governo com os interesses da corporações capitalistas internacionais; 5. o acento numa norte-americanização “natural”, no mimetismo cultural, na geopolítica militarista, na subserviência econômica; 6. o ódio ao pobre e o preconceito de classe.

A contra-revolução e a contra-reforma social permanente reaparecem no ator político Geraldo Alckmin, não mais como máscara, posto que se cola com perfeição ao representante do estilo arrogante e prussiano de governar. A carapuça está enfiada, as paixões foram alimentadas, mas dessa vez nem a vassoura nem a espada podem ser mais do que alegorias da nostalgia das oligarquias liberais.

No teatro da história o coro veio para o centro do palco no teatro político, com toda a grande corrupção que é a desigualdade do latifúndio, do grande capital, com toda a violência das aves de rapina, o novo Corvo parece não estar tendo êxito. É bom lembrar que o Corvo sempre foi um sapador mais do que um general. Geraldo Alckmin não passa de um cadete, um aprendiz de feiticeiro. Como Corvo reencarnado não passa de uma pálida imagem do velho inimigo da democracia brasileira. Esperemos que dessa vez a política do espetáculo não coloque mais um porta-voz das elites no comando do executivo federal; esperamos que a farsa não se converta em mais uma catástrofe collorida dos produtores na novela global brasileira.

*Pedro Cláudio Cunca Bocayuva é doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ) e membro do núcleo Eder Sader do PT-RJ