A tentativa de construir um cenário de degradação da política, com base nos erros dos aparelhistas e carreiristas que estreitavam os limites do projeto petista, fracassou. A estratégia de criminalização do governo Lula e do PT não conseguiu apagar os pequenos grandes avanços de prioridades sociais e culturais realizados ao longo do quadriênio em curso. O uso da mídia como arma, as armações e os erros acabaram por permitir um retorno do reprimido. As grandes maiorias populares querem avançar mais na direção de conquistas de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais e no acesso aos fundos e políticas públicas, com vistas a uma inversão redistributiva.

A força das redes sociais e políticas de resistência democrática e popular conseguiu qualificar o debate ético-político na direção da demanda por uma construção substantiva da justiça social. A idéia de um Brasil para todas e todos começou a ganhar sentido, sem necessitar da pirotecnia dos marqueteiros e do manejo de verbas publicitárias. O processo sustentado de transformações capilares com seus efeitos sobre as prioridades do Estado brasileiro abriu as portas para avanços. A interpretação positiva das conquistas parciais permite vislumbrar avanços futuros.

O efeito paradoxal de uma continuidade dos termos do contrato perverso do ajuste neoliberal combinado com o controle da inflação se fez acompanhar de uma lógica alternativa de pressão distributiva. A direita ficou sem bandeira e não pode mais utilizar o Estado, o orçamento e os fundos públicos numa perspectiva puramente concentradora. Seu horizonte de desestruturar a política e a mobilização da sociedade através da alimentação de um moralismo sectário e manipulador levou ao segundo turno. Mas acabou forçando uma reflexão sobre o conteúdo concreto das políticas. O resgate da memória pela ação pedagógica da comparação com os anos FHC vem barrando uma solução do tipo tapetão e “impeachment”, apesar dos esforços e das ameaças lacerdistas que ainda contaminam o ar da República.

A derrota parcial das oligarquias pefelistas, a divisão do centro emedebista, e o desnudamento da face autoritária das elites paulistas do PSDB, mesmo com todo o apoio do “príncipe eletrônico global” e das artimanhas jurídicas, desnudaram a lacuna histórica do bloco do capitalismo dependente. Eles não tinham e não têm um projeto para o Brasil, são os responsáveis históricos pela espoliação e a estrutura da corrupção, são os que recusam o corpo coletivo do povo. A cara do Brasil é outra. Nossas cores são outras. Tentaram racializar-nos e desqualificar-nos a partir dos erros do governo, mas não estão conseguindo continuar manipulando e perpetrando golpes.

A democracia avança como demanda de transformações sociais mais amplas e profundas. O novo intento de manter a política de contra-revolução permanente não encontra eco e legitimidade numa sociedade que sabe apontar as raízes da violência. O nome do crime é genocídio social, o responsável é a desigualdade de classe, gênero, étnico-racial e geracional.

O processo de transformação cultural que começou a se entranhar no senso coletivo como valor da comum liberdade e da comum igualdade como condição de construção de uma nova civilidade, abre o caminho para os contornos de uma verdadeira República. O povo não parece assistir bestializado ao martelar dos factóides e das manipulações. O simulacro de política permite que o processo de refundação do PT se articule com esse desejo de avançar como condição de superação da morbidez política, de crise do Congresso, de crise dos aparelhos de manipulação midiática. Onde se evidencia a pseudo-neutralidade dos comentaristas e do saber das elites. O processo de construção de uma outra opinião se sustenta numa nova inteligência coletiva que se apóia em mais renda, mais acesso e outras formas de crítica e argumentação. É como se a rede da nova democracia brasileira já se desenhasse nas diferentes esferas antropológicas de construção de um esboço de programa para a nação.

Por uma ironia da história o fracasso das elites só se acentuou com o fracasso da sua retórica e dos seus métodos. Sem programa e sem projeto que não fosse a sua auto-reprodução no poder vão saindo pelo ralo as forças do “Ornitorrinco”, dentro e fora do PT. Valeu, Refundação petista. Falta pouco. Os próximos golpes virão do poder mais intransparente e menos construtor da liberdade e da qualidade da informação, como os complexos como Globo e Veja. Temos certeza que Brizola ficaria contente de ver o “Sapo Barbudo” ganhar nas pesquisas encomendadas por eles e apesar deles. Embora os 20% de diferença não mereçam manchete para esses veículos “profissionais e isentos” (sic).

O fato é que processo virou. O feitiço se virou contra o feiticeiro. Começamos a aprender que na modernidade da comunicação as redes horizontais fazem um outro processo de leitura política. Como uma verdadeira esfera pública, onde se trava um debate de mulheres e homens livres. Estamos construindo o debate e o balanço crítico do processo eleitoral baseado numa leitura onde o virtual se ancora no real. Onde o direito a uma construção da informação qualificada vira potência de transformação, capacidade de julgamento e ação de resistência. Somos uma sociedade que se emancipa da fetichização da cultura e da política espetáculo do consumo passivo. Agora, o sentido da política ganhou expressão na forma da participação ativa na construção do direito a ter direito de fazermos nossas escolhas.

Essa eleição está despertando uma paixão maior, a partir de um sofrimento maior, a partir de uma crítica dura contra os riscos que o grupo dirigente do PT nos colocou. Mas um novo petismo ganha força e seu futuro dependerá da sua capacidade de ligação com as forças liberadas pelos efeitos iniciais de mudanças parciais. Nós podemos muito mais. Ousar lutar e ousar vencer.

Esse é um manifesto panfleto pela força das redes eletrônicas, dos movimentos sociais e dos militantes políticos que sabem o que está em jogo no risco de retrocesso. No caminho traçado por Alckmin só poderemos acabar num Estado de exceção policial permanente, na reprodução do país de enclaves e ilhas de riqueza nas mãos de poucos, cercadas por um enorme apartheid social, racial, territorial, delirantemente submetido ao globalismo servil no interior do Império.


*Pedro Cláudio Cunca Bocayuva
é doutor em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ) e membro do núcleo Eder Sader do PT-RJ

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