Edição nº 62 – outubro de 2006: A lição republicana definitiva
A garantia da vitória sobre Alckmin em 29 de outubro só virá se a denúncia programática frontal da ameaça neoliberal se combinar com atos e palavras que restabeleçam plenamente o diálogo da candidatura Lula com os princípios da ética pública.
A garantia da vitória sobre Alckmin em 29 de outubro só virá se a denúncia programática frontal da ameaça neoliberal se combinar com atos e palavras que restabeleçam plenamente o diálogo da candidatura Lula com os princípios da ética pública.
Imagine-se por um momento que a cena final da disputa eleitoral das eleições de 1 de outubro não tivesse sido toda marcada pelo episódio em torno ao dossiê contra Serra.
É legítimo supor que a bancada federal do PT, de deputados federais e senadores, bem como o número de deputados estaduais eleitos, seriam bem maiores. Em relação às eleições de 2002, o PT elegeu 83 deputados federais contra 91 antes e obteve cerca de dois milhões de votos a menos (13,9 milhões contra 16 milhões). O recuo foi de cerca de 10, mesmo assim garantindo ao partido a segunda maior bancada, pouco atrás dos 89 eleitos pelo PMDB, e a condição de isoladamente o partido que mais recebeu votos nestas eleições. Provavelmente sem o caso do dossiê, o PT, cuja imagem é mais vulnerável e foi mais diretamente atingida que a candidatura Lula, teria conquistado bem mais votos e deputados do que em 2002.
Certamente, na disputa para os governos estaduais, os resultados colhidos seriam ainda melhores que os atuais, em si mesmo superiores aos obtidos em 2002. Apenas a magnífica vitória na Bahia seria suficiente para conferir um significado histórico a estas eleições, além dos importantes governos do Acre, Piauí e Sergipe. É razoável supor que no Pará e no Rio Grande do Sul, a senadora Ana Júlia e Olívio Dutra teriam ido ao segundo turno em melhores condições. Impressiona o fato de que mesmo sofrendo o impacto do epicentro da crise do dossiê, a candidatura do senador Aloísio Mercadante tenha obtido cerca de 30 dos votos válidos! Não é despropositada a hipótese que sem o impacto negativo do dossiê, a candidatura Mercadante pudesse ter chegado às portas de forçar um segundo turno.
Na disputa presidencial, sem o caso do dossiê, Lula teria sido certamente eleito no primeiro turno. Na pesquisa Datafolha, por exemplo, no dia 11 de setembro a distância que separava Lula de Alckmin era de 17 nos votos válidos ( 55 contra 38).
Este raciocínio hipotético é importante para se avaliar o resultado das eleições com ponderação e equilíbrio. Com exceção da conjuntura excepcional de Minas Gerais, onde se criou um quadro extraordinariamente favorável à candidatura do PSDB ao governo do estado, mas onde Lula era largamente majoritário, a situação era francamente favorável às forças democráticas e populares. Mesmo no Sul, até então, não era claro que houvesse nitidamente um quadro favorável ao avanço dos partidos neoliberais. A vantagem de Alckmin nesta região era instável, no Paraná não é correto assimilar a candidatura de Roberto Requião ao programa neoliberal, no Rio Grande do Sul não estava definida um curso tão forte de avanço da candidatura de Yeda Crusius.
Foi, assim, a repercussão instrumentalizada da grave prática anti-republicana, desastrosa e inaceitável, levada adiante por companheiros do PT, ao que tudo indica atraídos para uma armadilha tecida pelo comando neoliberal, e levada adiante fora de qualquer conhecimento ou acordo partidário, que conteve parcialmente o avanço das forças democráticas e populares nestas eleições. Se o pragmatismo – a utilização dos meios julgados necessários para se atingir fins almejados – tem o seu último pilar na consideração dos resultados obtidos, esta foi, sem dúvida, a lição definitiva as práticas anti-republicanas tornaram-se nitidamente perante a democracia brasileira um grande obstáculo ao avanço nas transformações do país.
O compromisso com a ética pública, porém, não deve se basear em cálculos eleitorais. Eles dizem respeito à própria identidade do PT e à relação básica de confiança com sua base social. Como escreveu o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos em artigo “A oportunidade da democracia”, publicado no dia 26 de setembro no jornal Folha de S. Paulo, é inadmissível que um partido com a responsabilidade social do PT, sigla depositária das expectativas dos operários urbanos, trabalhadores rurais, pequenos agricultores e grande parcela dos profissionais liberais, tenha sua prática marcada por episódios com os do dossiê.
Para vencer Alckmin
A grande tarefa neste segundo turno é demonstrar claramente para a população brasileira a ameaça neoliberal que significa uma eventual vitória da candidatura PSDB/PFL, unindo todos os setores progressistas, democráticos e populares contra ela. Um excelente artigo de Emir Sader – “O que está em jogo”-, editado no dia 2 de outubro na agência Carta Maior, faz um contraponto área por área, tema por tema, das diferenças programáticas fundamentais entre um segundo mandato do governo Lula e o retorno dos neoliberais ao governo federal.
A questão é que a campanha de Alckmin optou pelo que chamamos de “amorfismo, uma forma sem conteúdo e um conteúdo sem forma, ao invés de disputar o voto através de sua identidade neoliberal. Assim, ele tergiversou sobre o que seria seu futuro governo em aspectos fundamentais e tomou distância durante toda a campanha da defesa dos governos Fernando Henrique Cardoso.
Esta ausência de uma identidade política e programática claramente neoliberal transformou-se no mês de setembro, valendo-se do caso do dossiê, em uma identidade anti-Lula a partir do critério da ética pública. “A ética vencerá a corrupção”, disse simbolicamente no dia da votação. Esta nova identidade, recém conquistada e ainda não cristalizada, é que permitiu à candidatura Alckmin avançar posições para além do 1/3 do eleitorado, de mais nítida definição ideológica e conservadora, forçando o segundo turno. É ela que, somada à força orgânica do conservadorismo, seu poder econômico, na mídia, poderá lhe dar uma vitória no segundo turno.
A campanha de Lula cometeu três erros complementares em relação a este tema de justo e largo impacto entre os eleitores. Em primeiro lugar, tratou-o de forma marginal ou secundária, exceto no momento em que colocou para o debate público com prioridade a necessidade da reforma política. Em segundo lugar, olimpicamente recusou-se a responder às gravíssimas acusações dos adversários, no cálculo de uma vitória já garantida no primeiro turno. Por fim, absteve-se de questionar frontalmente a absurda e falsa identidade ética da tradição PSDB/PFL e do próprio Alckmin.
A imagem ética de Alckmin está longe de estar cristalizada. Não é por outra razão, além dos cálculos regionais imediatos, que César Maia e a candidata Denise Frossard acusaram tão fortemente o golpe de sua aliança pública com o casal Garotinho. E não será difícil demoli-la concomitantemente ao esforço de retomar o diálogo franco e convincente da candidatura Lula com a ética pública. Tem, pois, toda razão o presidente Lula ao declarar no dia 4 último que “pretende discutir profundamente ética” neste segundo turno.
Este desmascaramento da imagem ética de Alckmin, um dever democrático, exporá imediatamente na disputa o sentido anti-popular e conservador de sua candidatura. Contribuirá para isolar completamente o absurdo sectário e autoritário da resolução da direção do PSOL, optando pela neutralidade no segundo turno, posicionamento já aliás publicamente contraditado por várias lideranças políticas e intelectuais do recém criado partido.
Na política, como na vida, é preciso estabelecer sentido e dignidade mesmo àquilo que parece imediatamente adverso. A moralidade democrática deste segundo turno – a sua lição republicana – pode ser, então, assim elaborada: será preciso que o nosso programa e a nossa voz soem plenos para que a terra nova do pós-neoliberalismo se estabeleça.