Há dois terrenos possíveis para a campanha do segundo turno, o do moralismo e o da disputa de projetos. O primeiro é favorável ao PSDB e o segundo a Lula. Quem conseguir impor o ritmo da batalha leva nítida vantagem.

Há dois terrenos possíveis para o embate entre Lula e Alckmin no segundo turno. O primeiro é a senda da chamada “ética”, para onde o tucano tenta puxar o petista. Abalado pela desenvoltura de Hamilton Lacerda e seus tabajaras que não estão no mapa, Lula sente-se fragilizado neste quesito. Isso não se dá pelo fato de Alckmin ser mais ou menos honesto, mas por manejar mais firmemente o discurso udenista clássico da direita. Além disso, o ex-prefeito de Pindamonhangaba foi muito mais competente que o petista em abafar possíveis escândalos ao longo de sua permanência no palácio dos Bandeirantes, em São Paulo. Foram 69 as CPIs abortadas, por força do rolo compressor da maioria governista na Assembléia Legislativa do Estado. Aqui, Alckmin conta com um poderoso aliado: as grandes empresas de mídia.

O segundo terreno possível é mais favorável ao petista, mas implica uma guinada em sua conduta dos últimos quatro anos. É o da discussão programática e de projetos para o país, da confrontação do modelo financista-privatista de FHC com a perspectiva de mudanças imediatas e sólidas na política econômica e social do governo. Implica cobrar Alckmin pelas privatizações e pelas parcerias público privadas em São Paulo e em sinalizar que abandonará o receituário continuísta que marcou até aqui sua gestão, apontando claramente para quais setores governa prioritariamente.

Bola quicando na área

Lula investirá na segunda opção? A julgar por seu desempenho na entrevista coletiva desta segunda feira, 2, a resposta é não. Vejamos o seguinte trecho:

“Rádio Jornal do Commercio, Pernambuco – O que se diz é que o senhor vai se vestir como candidato dos pobres e tentar vestir Alckmin como o candidato dos ricos. Vai?

Lula – Se fosse assim eu já teria sido eleito. Governei para pobres e ricos. Se alguém quer dividir os candidatos… A luta me fez chegar à presidência da República. A sociedade brasileira, a cultura brasileira não permitem essa divisão… (…) Quando os dados mostram que tiramos pouco mais de 19% dos brasileiros da pobreza, todos ganham – eles, os pobres, e os ricos. Todos ganham com um processo de produção de riqueza contínuo. Vou continuar privilegiando os mais necessitados. Por isso que tenho política de desenvolvimento para o Nordeste que durante muito tempo ficou esquecido”.

A pergunta embute uma clara simpatia do jornalista pelo presidente-candidato. Uma bola quicando foi jogada no pé de Lula, que estava em frente ao gol, ou às câmeras e refletores. O natural é que falasse claramente para quem governa, o que define prioridades de governo. Leonel Brizola jamais perderia uma chance dessas. Espinafraria as “elites” e se dirigiria aos setores desfavorecidos da sociedade.

Ao invés disso, Lula segurou a bola e adentrou no pantanoso terreno das generalidades. Aliás, este foi o tom da coletiva. Para quem desejava a voz de um guerreiro, pronto a animar seus correligionários e simpatizantes, o que se viu foi a obviedade de um concorrente assustado. Se fosse em economia, poder-se-ia dizer que Lula entrou no segundo turno com viés de baixa. E Alckmin, em coletiva minutos depois, desfiou o lugar-comum de sua jornada: “choque de gestão”, “ética” e “transparência”.

Ousadia e ofensiva

Em situação que guarda algum parentesco com a atual, outro líder demonstrou que o importante nessas horas é a ousadia. O líder é Hugo Chávez – comparado a Lula na capa da semana passada da The Economist. – e a data é 3 de junho de 2004, em Caracas.

O dia era dos mais tensos. A oposição tentara, por meses, obter 20% das assinaturas do total de eleitores para convocar o referendo revogatório, chamando a população a escolher se manteria ou não o ex-coronel do exército no poder. Os meios de comunicação, em sua maioria, animavam a campanha oposicionista. Viam ali a brecha para, legalmente, tirar Chávez do poder. Na seara governista, aliados se manifestavam com eloqüência, desqualificando a tentativa da direita. A tensão subiu tanto, que a realização ou não do referendo virou vitória ou derrota para cada parte.

A coleta de firmas ocorrera dias antes e as apurações estavam no fim. No meio da tarde, quando se confirmou o sucesso da oposição, um clima de derrota tomou conta dos chavistas, que choravam pelos cantos em pleno palácio de Miraflores. O zum-zum-zum geral era de fim de governo.

Chávez recolheu-se em seu gabinete e anunciou um pronunciamento para o início da noite. Suspense geral no país.

Racionalidade

Horas depois, impecavelmente vestido com um terno preto, o presidente fez uma fala extremamente racional, sem grandes arroubos, durante quase uma hora, a partir da biblioteca do palácio. Sem mencionar a suposta derrota, de saída, cumprimentou a oposição. “Bem vindos à democracia! Vocês saíram do golpismo e se submetem ao mecanismo que nós colocamos na Constituição”.

Sem a orientação de marqueteiros, foi direto ao ponto. “Ouvi opositores dizerem que estou derrotado. Devo dizer a todos que aqui em minha alma não tenho o menor sentimento de derrota. O jogo não está jogado; ele começa agora”, disse o presidente. Mencionou um episódio histórico da Venezuela, a Batalha de Santa Inês, ocorrida em 1859, durante a Guerra Federal. Na ocasião, o general Ezequiel Zamora atraiu as tropas governistas para a cidade de mesmo nome, simulando um recuo de seu exército. Quando o inimigo pensava colher vitória, seus destacamentos atacaram por trás, num rasgo de excepcional tática militar. O que parecia defensiva mostrou-se subitamente uma feroz ofensiva.

Com sua voz de barítono, Chávez valeu-se do antecedente histórico para dizer que estava acontecendo uma nova batalha de Santa Inês. “A oposição pensa que o fato de conseguirem as assinaturas para o referendo é uma vitória. Não é! É nossa preparação para retomar a ofensiva”. Findo o discurso, euforia geral. O ânimo de seus apoiadores era diametralmente oposto ao de horas antes.

Lula talvez não conheça o episódio. Perdeu várias oportunidades em sua coletiva. A primeira foi deixar a peleja deslizar para o terreno mais favorável aos tucanos. A segunda é não mostrar à população que não está na defensiva. Tem ainda 25 dias para fazer isso. Mas cada hora a menos é território que não se recupera.

*artigo publicado no portal da Agência Carta Maior em 04/10/2006

*Gilberto Maringoni é jornalista e cartunista da Carta Maior, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo