por Marco Aurélio Garcia*

por Marco Aurélio Garcia*

A Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores, decidiu estruturar um projeto de história e memória do PT. Entendemos que esse projeto não poderia se circunscrever exclusivamente a uma história institucional do partido, mas que deveria abordar a vida partidária na sua complexidade, isto é, não só resgatar os congressos e encontros partidários, a trajetória dos dirigentes, as grandes polêmicas; mas também os pequenos fatos, as pequenas personagens, que em realidade constituíram e deram carne e osso à trajetória dessa experiência política do País. E, ao mesmo tempo, nos pareceu de fundamental importância que um projeto de memória e história do Partido dos Trabalhadores procurasse também fazer uma reflexão sobre as circunstâncias históricas, nacionais e internacionais, que cercaram e presidiram, não só o surgimento, como o desenvolvimento do PT. Assim, teremos oportunidade de discutir neste seminário como as mobilizações ocorridas em 1977 no movimento estudantil, da mesma forma que as de 1978 no movimento operário e em setores da periferia das grandes cidades brasileiras, tiveram uma importância, uma incidência muito forte, na constituição de um movimento social de novo tipo no Brasil, que viria a ter como uma de suas conseqüências, não a única, mas, como uma de suas conseqüências, a criação do Partido dos Trabalhadores.

Esse foi um dos primeiros motivos que nos levou, aproveitando a comemoração dos 20 anos da reorganização do movimento estudantil de 1977, a propor a realização desta reflexão para nos ajudar a entender a história partidária e a história social e política do país nestes últimos anos. Por outro lado, nos pareceu também que havia uma segunda razão para que realizássemos este seminário, ela é exatamente – e olhando para o público aqui presente eu vejo que ela se fez perfeitamente justificada – o fato de que o movimento estudantil passou por mutações muito profundas nestes 20 últimos anos. Não são poucos aqueles que têm, inclusive, um olhar crítico sobre o que é o movimento estudantil hoje. Talvez seja de importância, para os que estão preocupados em refletir sobre a questão do movimento social, tomar como um dos parâmetros, o que foi a reorganização de 1977.

Assim, há uma questão que nos pareceu, também, de fundamental importância. Em que medida, pensando o movimento de 1977, teríamos condições de iluminar um pouco a discussão sobre as ligações entre os diversos períodos e os caminhos, ou descaminhos atuais, do movimento estudantil? Acho que esses são elementos que por si sós justificam a realização deste evento.

Poderíamos acrescentar um terceiro elemento, que pode parecer secundário, mas que eu acho que tem uma importância muito grande. O que observamos, é que, desde o momento em que pessoas se mobilizaram para que este seminário pudesse se realizar, essa mobilização produziu uma enorme convergência daqueles que participaram ativamente dos acontecimentos importantes do ano de 1977, propiciando um reencontro de militantes daquele período hoje incorporados às mais variadas atividades. Caberia registrar, a título de exemplo e para agrado nosso, a presença aqui do ex-deputado Arnaldo Jardim e do vereador Henrique Pacheco, ambos destacados participantes do movimento estudantil daquele período. O que demonstra cabalmente que eles não estão aqui na condição de ex-combatentes, mas de atuais combatentes de causas distintas, mas seguramente ligadas ao que foi aquele período histórico.

Eu não poderia encerrar essa breve introdução, sem fazer uma menção específica das razões que nos levaram a escolher a Pontifícia Universidade Católica como local de realização deste seminário, aproveitando para enfatizar a lhaneza da acolhida que o Magnífico Reitor da PUC – o professor Ronca, que nos honra com sua presença nesta mesa – nos está dispensando. Não foram simplesmente razões de praticidade, tendo em vista que a PUC é sabidamente um lugar atraente, que nos levaram a propor que este seminário se fizesse aqui. Foram fundamentalmente razões de natureza histórica: não podemos eliminar de maneira nenhuma da nossa memória dois acontecimentos de extrema importância que cercaram a reorganização do movimento estudantil e que em certa medida são emblemáticos desse período. Um deles, sem dúvida nenhuma, foi a realização da reunião da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC) em 1977. A SBPC vinha, desde os anos 1973-1974, transformando-se em um grande fórum de debates para repensar o Brasil, não só no que diz respeito ao imperativo de democratizar o país, mas, sobretudo, de compreender que essa democratização tinha que transcender o estrito terreno da modificação institucional e deveria abranger também o campo da democratização social. Não foi à toa que os debates da SBPC, a partir de então, passaram a ser um importante fórum de elaboração dos intelectuais brasileiros associados à universidade, que assumia naquele momento um papel crítico, como corresponde a toda universidade assumir. Mais do que isso: passaram a ser o local privilegiado para realização de painéis e mesas-redondas em que se discutiam, com a participação de um grande público e com grande cobertura de imprensa, os mais importantes problemas que afligiam a sociedade brasileira naqueles anos de opressão. Oxalá, nós tivéssemos, hoje, a maioria das universidades brasileiras possuídas do mesmo espírito crítico que tínhamos naquele momento. No ano de 1977 essa movimentação alcançava o seu ápice e todos aguardavam ansiosamente a realização da reunião anual da SBPC no campus da Universidade de São Paulo. As autoridades não permitiram que isso acontecesse: vetaram a reunião no campus da USP. Foi então que, corajosamente, a PUC aceitou o papel histórico de sediar a 29a reunião da SBPC. Eu menciono este como um dos episódios mais significativos da luta pela preservação da dignidade universitária.

O segundo elemento, mais conhecido, é o ato de vandalismo, de brutalidade, que a Pontifícia Universidade Católica sofreu dois meses depois, quando foi invadida pelas tropas da Polícia Militar, a mando, sem dúvida nenhuma, do regime ditatorial, com o objetivo de impedir a realização do III Encontro Nacional dos Estudantes, passo decisivo no seu processo de reorganização. As conseqüências foram, como é sabido tremendamente trágicas, e poderiam ter sido inclusive mais trágicas ainda do que o foram. Nesses dois episódios a PUC foi um território exemplar, como tem sido desde então e como esperamos que continue a ser.

Assim é que, hoje, temos a felicidade de fazer uma reflexão histórica, num lugar histórico. Fazemos uma reflexão histórica, não apenas com os olhos voltados para o passado, mas tentando resgatar do passado mais do que episódios e personagens, tentando resgatar, fundamentalmente, aquelas esperanças que existiam no passado e que cremos que devam continuar alimentando a nossa ação futura.

* Marco Aurélio Garcia, na ocasião, era coordenador do Projeto “Memória” da Fundação Perseu Abramo. Atualmente é assessor especial da presidência da República e professor licenciado da Universidade de Campinas (Unicamp).
 

Texto extraído da exposição feita na sessão de abertura do Seminário “Reorganização do Movimento Estudantil – 20 anos”, realizado pela Fundação Perseu Abramo na PUC-SP de 22 a 25 de setembro de 1997.
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