O III ENE e a invasão da PUC
Eu estava lá, naquela sala de aula da PUC, onde conseguimos finalmente realizar o III Encontro Nacional dos Estudantes, depois das tentativas frustradas de Belo Horizonte, em junho, e da USP alguns dias antes. Cercados pelas tropas do então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, coronel Erasmo Dias, com os companheiros dos outros estados sendo perseguidos nas ruas de São Paulo, decidimos que deveríamos nos ater ao fundamental. Deixar de lado por um momento as teses, contrateses, discussões e mais discussões sobre o caráter da Política Educacional do Governo, o caráter da conjuntura pela qual estávamos passando ou da luta democrática na qual todos estávamos envolvidos. Resolvemos deixar tudo isso de lado por um momento e nos unir em torno do que era realmente fundamental: avançar na reorganização do movimento estudantil em nível nacional, avançar na reconstrução da UNE (União Nacional dos Estudantes), nossa entidade nacional destruída pela ditadura quase uma década antes.
Enquanto alguns dos diretores organizavam uma reunião aberta com os estudantes no Salão Beta da PUC, nós, os que não estávamos alocados a outras tarefas, por exemplo, os sistemas de comunicação e informação, nos reunimos disfarçadamente em uma das salas de aula daquela universidade que, alguns meses antes (julho de 1977), já tinha tido a coragem e a energia para sediar a reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Sentados como alunos em uma das salas de aula do segundo andar do Prédio Novo, com um companheiro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul à nossa frente, fingindo-se de professor (para que quem passasse pelos corredores – e eles estavam cheios de “tiras” – pensasse que se tratava simplesmente de uma aula qualquer), rapidamente chegamos a um consenso e rapidamente concretizamos nossas esperanças de avançar na reorganização do nosso movimento, criando a Comissão pró-UNE.
Depois disso – o III ENE em si, realizado nessas circunstâncias, não durou mais de uma hora – saímos apressadamente dali. Havíamos conseguido driblar as forças policiais que nos perseguiam desde junho em Belo Horizonte, a sanha feroz do coronel Erasmo Dias, que, em várias ocasiões, havia esbravejado, declarado, prometido, jurado e reiterado, impedir a realização do III ENE.
Eu saí da PUC levando comigo dois companheiros e uma companheira – do Rio, Minas, Rio Grande do Sul. Estava encarregada de cuidar da segurança deles até o dia seguinte, quando iriam embarcar de volta para os seus respectivos estados. Algum tempo depois, a realização do III ENE foi comunicada à assembléia estudantil reunida no Salão Beta. Quando estacionava o carro logo depois, na porta da casa dos meus pais na Lapa, ouvimos pelo rádio que, apesar de todas as proibições, os estudantes haviam conseguido realizar o III ENE. Imaginávamos a fúria do Erasmo ao receber a notícia.
Entre nós o clima era de comemoração. Estávamos entusiasmados porque, finalmente, com aquele reunião, realizada clandestinamente (ainda que numa sala de aula da PUC, em plena luz do dia), havíamos conseguido duas coisas muito importantes: em primeiro lugar, dar mais um passo no processo de reorganização do movimento estudantil. Em segundo lugar, provar, uma vez mais, que éramos capazes de nos organizar e manifestar apesar das proibições existentes na legislação vigente, e da repressão policial. Além dos três companheiros a que me referi, estavam nessa tarde na casa dos meus pais minha irmã Helena, caloura da Cências Sociais da USP, mas já engajada na nossa luta e Beatriz Tibiriçá (a Beá), que havia integrado a primeira diretoria do DCE-Livre da USP.
Nesse clima de festa, não imaginávamos as terríveis conseqüências que a nossa façanha teria, nessa mesma noite, algumas horas mais tarde, quando se concretizou a invasão da PUC.
Minha mãe, teve essa clarividência. Quando chegou em casa e viu a gente comemorando daquele jeito, caçoando do Erasmo, ficou apavorada. Mais realista do que nós, previu o que aconteceria na PUC naquela noite (é claro, não previu as bombas, a selvageria da repressão, mas previu que muito provavelmente aconteceria algo grave) Ela era, na época, uma combativa participante da Comissão de Mães pelos Direitos Humanos, que tinha se organizado naquele ano para apoiar as mobilizações dos estudantes.
No fim da tarde, quando ficamos sabendo que tinha sido convocado o ato de comemoração lá na PUC, ela insistiu para que tentássemos dissuadir os promotores do ato de realizar esse evento, que muito provavelmente seria reprimido com violência. Dissemos que isso seria impossível porque a realização do ato tinha sido decisão de assembléia, mas que era importante mandar alguém para retirar da manifestação os delegados de outros estados que porventura estivessem participando. Eu não podia ir porque tinha estado no encontro da manhã e porque tinha que tomar conta do conjunto dos delegados. Mário, meu irmão, também militante ativo do movimento, era uma pessoa muito visada. Sobravam a Lena e a Beá para essa missão. Minha mãe, com justa apreensão, não gostou nada da idéia de deixá-las assumir esse risco (a Lena tinha só 18 anos). Mas não havia outro jeito.
O meu pai estava no hospital, recém-operado. O Mário foi levar minha mãe pra passar a noite com ele, e, no caminho, deixou a Beá e a Lena nas imediações da PUC. Elas chegaram quando já tinha começado o ato e estava sendo lido o manifesto preparado para a ocasião. Logo, a euforia que reinava entre os estudantes pelas realizações da manhã mudou para um pânico generalizado. A polícia invadiu a PUC e as duas emissárias foram vítimas da violência: Helena chegou a desmaiar com a fumaça desprendida das bombas de “efeito moral”, e só escapou de sofrer queimaduras por ter sido socorrida a tempo por alguns colegas. Beá machucou o pé e o joelho quando tentava escapar das bombas. Ambas foram detidas.
Quando ficamos sabendo da invasão da PUC e das prisões, foi a maior confusão; ninguém sabia direito o que fazer. Nos reunimos – os que tinham escapado da repressão policial – na casa da Carmen Cintra do Prado, nossa colega da Física, tentando nos organizar para enfrentar mais aquela situação. Eu, além de tudo, estava muito preocupada com a Lena. Minha mãe e meu pai no hospital, eu apavorada com a idéia de que meu pai ficasse sabendo que a Lena tinha sido presa. Afinal de contas, ele estava convalescendo de uma operação grave.
A partir de uma certa hora da madrugada, o pessoal começou a ser solto. Para que os estudantes fossem liberados, a polícia exigia a presença de alguém da família que se responsabilizasse por eles. O que fazer com a Lena? Como eu disse, meu pai e minha mãe estavam no hospital, eu e o Mario não podíamos aparecer, arriscávamo-nos a ser presos também. Não havia na família quem pudesse se apresentar. Aí, as valorosas integrantes da Comissão de Mães entraram em ação: organizaram o resgate dos estudantes que estavam em situação como essa da Lena (sem mães e/ou pais disponíveis para o resgate), escolhendo “mães postiças” para se apresentarem no lugar dos verdadeiros pais.
E foi assim que a Lena foi solta. Já era madrugada avançada, quase manhã, e a minha grande preocupação era chegar com ela no hospital antes que meu pai acordasse e ficasse sabendo do que tinha acontecido. Felizmente, isso foi possível. Quando minha mãe, tomando conhecimento pelos jornais matutinos do que tinha sido a repressão na PUC, telefonou para a nossa casa, foi possível dizer que a Lena já tinha sido liberada e estava a caminho do hospital.
*Laís Abramo é socióloga. Na época, estudante de Ciências Sociais e membro da Diretoria do DCE Livre Alexandre Vannucchi Leme da USP.