A invasão da PUC em São Paulo: uma nova etapa?

por Alex Solnik e Tão Gomes Pinto*

A noite de quinta-feira passada, uma noite violenta, pode marcar o início de uma nova etapa do movimento estudantil em São Paulo. Até aquele momento, na história recentíssima desse movimento, poderiam ser destacados nove episódios ao todo, entre atos públicos, assembléias nos campus, passeatas-relâmpago pelas ruas do centro. E, ao final desses nove episódios, com a população de São Paulo assistindo e, muitas vezes, aplaudindo as manifestações, jogando papel picado sobre os grupos que se aveturavam a sair às ruas gritando pelas “liberdades democráticas”, todos pareciam já habituados a essa rotina e a alguns pequenos transtornos.

Sim, pequenos transtornos, já que ao longo dos nove episódios era possível se observar uma preocupação em não ultrapassar certos limites, tanto por parte dos estudantes, como do lado da polícia. Estudantes eram detidos e levados ao DEOPS para prestar depoimentos, policiais corriam atrás de rapazes e moças agitando seus ameaçadores cinturões. Mas até quita-feira passada podia-se dizer que entre mortos e feridos salvaram-se todos.

Formigando idéias

Desde março até o início do segundo semestre, o movimento estudantil, aproveitando-se do clima de insatisfação mais ou menos generalizado, atraía para suas fileiras não apenas militantes com a cabeça formigando de idéias, mas conseguia sensibilizar a chamada “massa universitária”.

A mobilização policial, por outro lado, intensificou-se, sofisticou-se com equipamentos como os já célebres sprays lacrimogênicos do coronel Erasmo. Na quarta-feira passada, por exemplo, dia marcado para o III Encontro Nacional, os estudantes pretendiam se reunir no campus da USP, mas a polícia se antecipou. Ela é que se reuniu na USP (o coronel Erasmo, atribuindo-se poderes especialíssimos, declarou a Universidade “em recesso”). Numa entrevista a uma rádio chegou a dizer que abonaria as faltas dos alunos impedidos de chegar a Universidade por cem de cem policiais estrategicamente colocados nos acessos à Cidade Universitária.

Na manhã de quarta-feira, os estudantes se reuniram na Faculdade de Medicina, localizada fora da Cidade Universitária, para decidir como poderiam realizar o encontro previsto para o campus da USP. Um novo cerco policial foi estabelecido, com a prisão dos estudantes que se encontravam dentro do prédio. Mas, à noite, o secretário reunia a imprensa para avisar que, apesar de tudo, os estudantes detidos (cerca de 150) seriam libertados rapidamente, como de fato foram, e que ninguém seria enquadrado na Lei de Segurança Nacional, embora esse enquadramento fosse possível, já que um dos motivos do III Encontro era dar mais um passo visando a rearticulação da União Nacional dos Estudantes, a UNE, extinta em 1965. Encerrando a entrevista, o coronel Erasmo declarava, num tom entre sério e aliviado: “Esse foi o nono episódio de uma novela triste”.

O décimo episódio

O décimo episódio, porém, seria bem mais triste e movimentado. A polícia desabou sobre a PUC, na noite de quinta feira [22/9/1977], com tropas de choque e dezenas de agentes à paisana. Até o momento em que começou o avanço, precedido de uma barragem de bombas de efeito moral, os estudantes, cerca de 2 mil, permaneceram em seus lugares, no jardim do teatro da Universidade Católica.

Daí para frente, bombas estourando, cassetetes vibrando, a única saída era se refugiar dentro da Universidade, ao lado do teatro. Os policiais foram atrás, deixando vidraças quebradas no caminho. No prédio novo de sete andares e 110 salas – havia até cursos do Mobral, um coral se exercitava –, os policiais acabaram com as aulas, mandando alunos e professores saírem em fila. Fila por um, explicavam. Não houve reações e mesmo assim muitos levaram cacetadas enquanto caminhavam. Dos prédios vizinhos, as pessoas assistiam. Desta vez sem o papel picado das outras ocasiões. Agora, quem tinha coragem para falar, gritava “assassinos, assassinos”. Pais e mães chegavam à PUC desesperados à procura dos filhos.

Não foi ainda desta vez que surgiu o tão temido cadáver. Mas houve pessoas feridas, cinco passaram a noite no Hospital das Clínicas para serem medicadas por queimaduras provocadas pelas bombas de gás – e, no fim, um diálogo desalentador desenrolou-se entre a reitora da PUC, Nadir Kfouri, e o secretário de Segurança.

“O que aconteceu, coronel?”, perguntou a reitora logo depois de chegar ao estacionamento em frente à PUC, onde 2 mil pessoas estavam detidas, sentadas no chão e vigiadas pelos policiais. O coronel Erasmo Dias explicou que os estudantes estavam realizando um ato ilegal. “Mas o ato não era fora?”, retrucou a reitora. “Vocês depredaram a faculdade.”

“Vamos reparar os danos”, respondeu o coronel Erasmo. “Há danos que não podem ser reparados”, disse a reitora. E na sexta, enquanto todas as atividades da PUC eram suspensas, a Universidade pedia a abertura de inquérito policial e a realização de perícia, e manifestava “profunda vergonha e indignação” contra a operação desse grave décimo capítulo (que custou à polícia 200 mil cruzeiros, segundo o coronel Erasmo).

Mas há danos mais graves e talvez tenha razão a professora Kfouri. As setecentas pessoas conduzidas (em vários ônibus requisitados pela polícia) para um quartel da PM foram libertadas na sexta, mas trinta e duas serão enquadradas na Lei de Segurança Nacional, cujo artigo 43 prevê pena de dois a cinco anos de prisão. Não houve o cadáver, mas surgiu, pelo menos, um poderoso fator complicador numa situação já complicada.

Viagem a Brasília

Há dez dias o coronel Erasmo viajou para Brasília com tanta discreção que seus assessores, no início, tentaram desmenti-la, afirmando que o secretário seguira para o interior, “talvez para Bauru”. Essa viagem parece ter sido decisiva para definir uma posição oficial do governo em relação às manifestações estudantis. Dois dias depois, o coronel anunciava que o III Encontro Nacional dos Estudantes não se realizaria, nem mesmo dentro do campus. Essa afirmação não chegou a intimidar os estudantes. No domingo, dia 18, no Santuário da Penha, depois da missa organizada pela Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, os estudantes fizeram seu teste. Talvez sem saber que a polícia também os estava testando. Quando a missa acabou teve início uma passeata, com faixas, cartazes, slogans, e a polícia interveio com sua tropa de choque, cassetetes e bombas, mais o pessoal do DEOPS, à paisana. Numa atitude que se tem repetido com freqüência, o coronel Erasmo comandou pessoalmente esse teste, tendo, entre outros feitos, efetuado pessoalmente a prisão de Maria Helena Gregori, a esposa do advogado José Gregori, um dos oradores da solenidade. A prisão foi cercada de lances entre violentos e grotescos. Maria Helena chegou a ser empurrada bruscamente pelos policiais, enquanto o coronel Erasmo, por se tratar de uma senhora, queria que ela fosse conduzida ao DEOPS no seu próprio carro, o LTD chapa oficial SSP001. Mas ela queria ir com os demais presos. E foi.

Até aquele momento, o coronel parecia manter-se firme no seu propósito de só reprimir quando a autoridade ou a ordem pública fossem colocadas em xeque, naturalmente segundo os seus critérios. É bom que se diga que os critérios do coronel são geralmente controvertidos. Na quinta-feira na PUC, por exemplo, ele gritava possesso: “Cadê a Veroca aquela agitadora?” (Vera Paiva, filha do falecido deputado Rubens Paiva). “Cadê o Marcelo?” (Marcelo é da Geologia-USP). Em outras ocasiões, porém, ele chega a elogiar o comportamento dos estudantes.

Conhecimento mútuo

Polícia e estudantes, mesmo entricheirados um frente ao outro, aprenderam a se conhecer mutuamente e a conviver numa paz relativa, dependendo da ocasião. Naturalmente aprenderam também a provocar-se, tocando no ponto fraco do adversário. Assim, tudo parece indicar que a decisão de não considerar mais os campus como santuários onde os estudantes podiam manifestar-se à vontade, foi tomada pelo próprio coronel Erasmo, e teria sido comunicada às autoridades federais na recente viagem do secretário a Brasília.

Derrubar a inviolabilidade do campus seria, por outro lado, a única forma encontrada pelo governo para cumprir sua determinação de não permitir a realização do III Encontro Nacional. Lideranças estudantis, por sua vez, decidiram que esse encontro teria de se realizar de qualquer maneira, e ele de fato se realizou na quinta-feira, dia 22, embora sem a pompa e a circunstância que os estudantes desejavam. Impossibilitados de chegarem até o campus da USP na quinta-feira, ficou decidido que o III Encontro seria no dia seguinte, numa sala de aula da PUC. De fato, setenta estudantes, representando nove Estados, estiveram lá, enquanto agentes especiais da Secretaria de Segurança vigiavam uma simples Assembléia Metropolitana, no Salão Beta da PUC.

Na reunião secreta formou-se uma “Comissão pró-UNE”, incumbida de fazer propaganda da UNE, divulgar seu histórico e elaborar um jornal periódico nacional. A notícia da realização desse Encontro a portas fechadas foi transmitida por um megafone no pátio da escola.

A pergunta generalizada era se ele fora representativo e de que maneira o coronel Erasmo receberia a notícia. Os repórteres reclamavam. Não foram convidados, não havia fotos. Como provar que havia acontecido mesmo o Encontro?

Os promotores de Encontro tentavam justificar: seu desejo era fazer uma reunião com muita gente, o que fora impossível por razões de segurança. Eles não admitiam, porém, a expressão “clandestino” para definir o Encontro. Para eles, tinha sido uma vitória, inclusive em termos de segurança, pois os participantes de outros Estados entraram e saíram completamente incógnitos. Mas terá sido assim?

A reavaliação

A verdade é que até a violenta ação policial de quinta-feira à noite o movimento estudantil – ou as várias correntes do movimento estudantil – parecia estar dando sinais de cansaço, motivado talvez pela própria rotina a que se viu obrigado nessa seqüência de assembléias, atos públicos e passeatas. Um líder do grupo Refazendo (moderado) admite ainda que (com exceção dos elementos ligados aos grupos Liberdade e Luta – a Libelu – e Resitência) se firmou uma espécie de consenso em torno da característica do movimento, que não deve ter pretensões de atingir resultados a curto prazo.

Essas correntes mais moderadas, afirmam que este segundo semestre, ao invés de passeatas ou atos públicos, devia ser reservado para a reavaliação, consolidação e retomada de fôlego. Na semana passada, poucas horas antes dos acontecimentos da PUC, um desses líderes dizia a ISTO É: “Nós não estamos mais interessados em passeatas ou passeatinhas. Se existe alguém interessado nisso é o pessoal da ‘santa aliança’ – como é conhecida a linha mais disposta à contestação aberta”.

Mas quem representa efetivamente o movimento estudantil? Os moderados ou a “santa aliança”? Nas eleições do DCE da USP, os moderados do movimento Refazendo tiveram mais de 6 mil votos. O grupo Caminhando, também moderado, teve mais de 2 mil. Liberdade e Luta ficou apenas em terceiro.

Mas, já no congresso da UEE, realizado dia 27 de agosto na Politécnica, 164 delegados representaram São Paulo e, desses, 104 eram da Libelu. Como explicar essa contradição? Um dos moderados explica falando numa retração do movimento estudantil, que refluiu nos últimos meses, deixando à mostra apenas os mais atuantes, sendo que os mais atuantes, em qualquer organização política, sempre são os menos moderados. E esses acabam sendo beneficiados politicamente por erros táticos do adversário comum a todos os grupo, a repressão, o que fatalmente acontecerá depois dos acontecimentos desta semana.

A decisão do coronel Erasmo de invadir a PUC aos trombolhões serviu para recompor os grupos mais radicais do movimento estudantil, que, andavam meio abalados pelas críticas de outros setores “oposicionistas”― como as comissões da Igreja em São Paulo, por exemplo ― pelo seu comportamento tático.

É no campo desses movimentos táticos, mais do que em qualquer outro, que o décimo capítulo da novela estudantes vs. polícia do coronel Erasmo foi uma surpresa. Um dos líderes estudantis lembrava, pouco antes do episódio da invasão da PUC, que nas vezes anteriores, mesmo ameaçando enquadrar os estudantes na Lei de Segurança, o governo de São Paulo (ou seja, o governador Paulo Egydio e o próprio coronel Erasmo) acabou mudando de idéia. “Eles estavam na linha da antecipação tática”, diz esse líder estudantil, “caracterizando uma repressão mais branda e que não deixava os radicais agirem”. O que teria mudado no enredo da novela? O coronel Erasmo, depois de sua viagem a Brasília? As pessoas que, de Brasília, supervisionam a ação da polícia em São Paulo?

É muito difícil responder, embora seja significativo que, no final da noite de quinta-feira, o coronel Erasmo, de um estacionamento em frente à PUC, ligasse para Brasília para explicar a um general (que ele não identificou mas era possivelmente o general Hugo Abreu, chefe da Casa Civil da Presidência da República) que tudo tinha acontecido porque os estudantes “estavam muito acintosos”.

*Alex Solnik e Tão Gomes Pinto são jornalistas

Publicado na revista IstoÉ em 28/9/1977, p. 6-9.