Assim como a fundação do PT expressou a síntese entre as novas vanguardas sociais e os valores renovados da esquerda, a possível confirmação das tendências da vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2006 pode significar a abertura de uma síntese histórica inédita entre a consciência do povo brasileiro e os valores renovados do socialismo democrático.


Assim como a fundação do PT expressou a síntese entre as novas vanguardas sociais e os valores renovados da esquerda, a possível confirmação das tendências da vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2006 pode significar a abertura de uma síntese histórica inédita entre a consciência do povo brasileiro e os valores renovados do socialismo democrático.

As vésperas das eleições de 2006 combinam uma disputa nacional em vias de ser definida (embora não se possa afirmar ainda a certeza de uma vitória de Lula no primeiro turno), campanhas para governos estaduais em algum grau autonomizadas da disputa presidencial e um quadro de eleições para o Congresso Nacional no qual já não se afirma mais, como antes se fazia de modo generalizado, a certeza de um decréscimo substantivo da bancada do PT e da esquerda. Assim, toda a energia política e social da militância deve ser mobilizada nestes dias para fazer frente aos ensaios desesperados de reação neoliberal, para confirmar e ampliar as vitórias sobre o neoliberalismo.

Uma síntese de um conjunto de pesquisas de intenção de voto tornadas públicas nestes primeiros dias de setembro, indicam um patamar basicamente estacionário, com Lula oscilando entre 48% e 51% dos votos, uma leve ascensão de Alckmin, em boa parte associada a uma clara inversão das tendências de crescimento da Heloísa Helena e a uma queda de sua performance eleitoral. Não está claro, no entanto, se os dias finais de decisão do voto para presidente simplesmente confirmarão este dinamismo muito superficial, parcial e limitado, incapaz até agora de gerar um segundo turno.

A estrutura da decisão de voto dos brasileiros neste ano, no entanto, como se analisou no Periscópio desde março aludindo a figura de pirâmides invertidas, tem mantido uma notável solidez e confirmam uma polarização social de nitidez inédita nas eleições presidenciais desde a redemocratização do país. A imagem das pirâmides invertidas relaciona o caráter crescente do voto em Lula à medida em que se avança em direção à massa dos pobres e menos escolarizados e a dimensão crescente dos votos em Alckmin à medida em que se avança para o topo da pirâmide das classes sociais.

Como se analisou no Periscópio passado, no ensaio “ Da lógica de transição à agenda democrática e popular”, este sentido social forte e polarizador da definição do voto em Lula, a decisão primeira dos eleitores mais pauperizados e nordestinos, definiu até agora a dinâmica da disputa eleitoral. É um cenário, portanto, muito diverso daquele de 2002 quando a pressão financeira e as chantagens do PSDB tiveram como resposta o compromisso firmado na “Carta ao povo brasileiro” da candidatura Lula.

A mensagem central da campanha de Lula afirmou-se pela reiteração simbólica e demonstrativa de seus compromissos com a inclusão social, a distribuição de renda, por um novo estilo de desenvolvimento capaz de se alimentar da distribuição de renda, educação e cultura. A candidatura Alckmin impossibilitada de afirmar a sua identidade programática neoliberal fez-se amorfa, passando a disputar com Lula a imagem junto aos pobres. Esta desidentidade programática de Alckmin aliás foi confirmada com a notícia da desarticulação da equipe que organizava o seu programa econômico, face à impopularidade das medidas aí propostas. A visita ao site de Alckmin não encontra lá nenhuma peça programática de conjunto.

Em um outro sentido, a candidatura Heloísa Helena, nascida para firmar uma alternativa a tudo que está aí, também não foi capaz até agora de tornar público um programa de governo. Como se demonstrou no artigo também publicado no Periscópio passado, “A candidatura Heloísa Helena e o dilema da identidade sectária”, os pontos programáticos anunciados à imprensa pelo coordenador do programa de governo, César Benjamin, certamente não seriam capazes de estabelecer uma unidade na frente sectária anti-Lula que se formou.

Os grandes empresários, os grandes bancos, o agrobusiness, a mídia liberal e conservadora estão claramente contra Lula. A esmagadora maioria do movimento sindical, dos movimentos sociais no campo, das lideranças populares estão com Lula. Esta polarização social projeta-se no cenário latino-americano certamente, com todas as forças expressivas da esquerda e da centro-esquerda no continente – de Fidel Castro a Chaves, do PS chileno à Frente Ampla no Uruguai – alinhadas na expectativa da confirmação da vitória de Lula. Polarizada socialmente mas despolarizada programaticamente, resta construir o sentido político histórico de uma possível vitória de Lula em 2002.

Rumo ao pós-neoliberalismo

É sintomático, neste contexto, que a mídia conservadora e neoliberal, com seus porta-vozes muito nítidos nas colunas de jornais e revistas, tenham centrado sua crítica ao que faltaria no programa de governo “Lula presidente”, lançado publicamente em agosto passado. Em mais uma expressão do descolamento da opinião midiática e da agenda política que vai se construindo nestas eleições, criticou-se que lá não constariam as necessárias reformas neoliberais nem uma política de contração dos gastos do Estado, nem mesmo a prioridade a uma nova reforma, de sentido fiscalista, da Previdência Social.

O sentido histórico fundamental do programa lançado é exatamente ser composto, organizado, hierarquizado e direcionado para a terra nova do pós-neoliberalismo. São coerentes neste sentido os seis pontos que organizam a sua agenda: combate à exclusão social, à pobreza e à desigualdade; aprofundamento do novo modelo de desenvolvimento: crescimento com distribuição de renda, e sustentabilidade ambiental; Brasil para todos, Educação massiva e de qualidade. Cultura, comunicação, ciência e tecnologia como instrumentos de desenvolvimento e de democracia; ampliação da democracia; garantir a segurança de brasileiros e brasileiras; inserção soberana no mundo.

Talvez a dimensão essencial desta programa, que se lança com uma legitimação política tão expressiva e historicamente inédita frente ao povo brasileiro, seja a sua mútua configuração : o nacional, o democrático, o social, o econômico e o cultural estão apontados para uma dinâmica convergente. Caberá à correlação de forças definida nestas eleições, pelo tamanho e qualidade da derrota impingida aos atores neoliberais, e na conjuntura seguinte, pela presença ativa dos movimentos sociais, definir a velocidade e a profundidade das mudanças a serem conquistadas nesta terra nova do pós-neoliberalismo.

Cultura para a terra nova

O que pode ser esta terra nova? É uma pergunta cuja resposta transcende os limites de uma análise de conjuntura e nos convida a visitar o sentido histórico de uma possível vitória de Lula nestas eleições presidenciais. Construir a inteligência deste sentido é afirmá-lo contra os neoliberais que apelam para a sua memória histórica, a perplexidade diante do retorno de Vargas à presidência pelo voto , para vestir de um modo escancarado as cores do lacerdismo. É afirmá-la também contra o discurso sectário da esquerda, que corre o risco de ser simplesmente subsumido na retórica udenista: mas o sectarismo não é, na definição precisa de Marx empenhado em construir as figuras do “partido histórico”, a identidade incapaz de dialogar com o movimento real da história?

Quando se fundou o PT, ninguém poderia saber ainda dos caminhos da criação da sua cultura. Mas havia ali uma intenção concentrada e possível de refundar os laços de uma síntese nova entre o povo brasileiro e uma esquerda voltada para reconfigurar democraticamente a sua identidade socialista. O desafio hoje é construir uma consciência nítida capaz de reconhecer e expandir política e programaticamente o espetáculo social deste novo encontro que pode se dar com a reeleição de Lula.

Que o momento deste encontro seja batizado pela valente greve dos operários da Volkswagen que fizeram recuar a demissão sumária de milhares de metalúrgicos, forçando uma acordo com a multinacional, como a demonstrar que está viva a tradição classista das nossas utopias, é um sinal promissor da terra nova.

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