Memória: Anos incríveis
por Celso Marcondes
De pé num banco de jardim no largo do Paissandu, eu e um desconhecido levantávamos com orgulho a bandeira do Brasil e gritávamos o Hino Nacional. Uma multidão estimada em quinze pessoas (ou seriam dez?) nos acompanhava. Mal havíamos chegado ao “brado retumbante”, um barulho forte e muita fumaça interrompiam nossa “manifestação-relâmpago”. A correria recomeçava. Sirenes, C-14s, cassetetes, gritaria, até cada um se perder na multidão do centro de São Paulo em hora de rush ou ser levado delicadamente para o camburão.
Esta imagem, de 1977, não sai da lembrança. Tá lá, gravadinha num arquivo que não tem delete que destrua. E como me orgulho dela! Foram tempos de muita coragem e emoção. Manifestações, passeatas, atos públicos, cultos ecumênicos, milhões de assembléias, bilhões de reuniões, grupos de estudo, livros e mais livros, folhetos rodados em mimeógrafo a álcool no quarto da empregada. Tempos também de muita tensão e nervosismo, de insônias freqüentes, de cabelos caindo, de brigas com a família, de faltas às aulas, de atrasos no emprego. Mas, tempos que eu sempre achei que valeram a pena.
Quem viveu, viu
Depois da devassa patrocinada pelo AI-5 em todo o movimento social do país, no começo da década de 70 as universidades viviam aquele clima de prostração para todos e de medo para alguns. Os professores “progressistas”, na sua maioria, tinham sido demitidos. Cartazes, pichações, nem pensar. Os corredores da USP eram assépticos, pareciam hospitais. Protestos, só nas portas dos banheiros, misturados com aqueles versinhos legais dos tempos de ginásio, cheios de rimas falando de órgãos genitais. “Aos sovietes, companheiros do Camboja!”, dizia um inesquecível, lá no WC dos “barracos”, nome que dávamos ao conjunto de faculdades da área de Humanas, construções de blocos de concreto cobertos de telhas de amianto, quentíssimas no verão e geladas no inverno.
Mas, o campus já era muito bonito. Grandes jardins, o bosque, anfiteatro ao ar livre, um belíssimo centro esportivo, com piscinas e quadras. Nós jurávamos que tudo tinha sido construído daquele jeito para “alienar os estudantes”. Os prédios das faculdades eram longe dos outros “para evitar o contato”. O Crusp, o conjunto residencial, estava fechado para provar nossa tese. “Nossa” de quem? Daquelas poucas dezenas de rapazes e moças que haviam sobrevivido ao “rapa” ou que entravam naquele momento na vida universitária almejando um pouco mais que um diploma.
Para todos estes, os canais que sobravam eram os centros acadêmicos, que ainda permitiam eleições diretas todos os anos. Promoviam filmes “polêmicos”, shows do Gonzaguinha, editavam “cadernos de debates” com textos de Celso Furtado, Fernando Gasparian, Maria Conceição Tavares, de um certo Fernando Henrique Cardoso, publicavam jornaizinhos tamanho ofício (em preto e branco, claro, batidos a máquina, com títulos em letraset) rodados nos raros mimeógrafos a tinta que sobreviviam em alguns “centrinhos”. O contato entre estes gatos pingados se dava em reuniões semiclandestinas, que tinham como objetivo estratégico a reconstrução do Diretório Central dos Estudantes, proibidíssimo na época.
No início dos anos 70, éramos tão poucos que não dava para falar de uma “geração”, muito menos “espontânea”. Espalhados pelas diversas faculdades, militantes da Ação Popular (AP), da Ação Libertadora Nacional (ALN), do PCdoB, do PCB, entre outros, eram os impulsionadores de todas estas atividades “extracurrilares”, que iriam dar base para o ressurgimento vigoroso do movimento estudantil nos anos seguintes. Todos grupos muito pequenos. Os trotskistas? Bom, nós também cabíamos num fusca… Naquela época, dois agrupamentos se formavam: a FES – Frente Estudantil Socialista (ligada à Organização Comunista 1º de Maio) e a Tendência pela Aliança Operário-Estudantil (animada pelo Grupo Outubro). Unidos, mais tarde, iriam dar origem à Liberdade e Luta. Diz a lenda que um certo Glauco encontrava-se todas as semanas numa praça com os três integrantes que formavam a FES, que tentavam cooptá-lo. Eles chegavam de carro, num Volkswagen, é claro, e um deles descia para discutir com o “contato” as lições da leitura dos livros da semana. Reuniam-se os dois na praça, despediam-se até o próximo ponto. Passados alguns meses os três da FES decidiram que Glauco já estava pronto para integrar o grupo. Pararam o carro a seu lado como faziam todas as semanas. Em vez de um descer, perguntaram a ele da janela: “você já está pronto para entrar na FES. Quer entrar?”. Diante do sim do novo militante, abriram a porta do carro e disseram: “então, entra!”. Dali em diante, Glauco passou a se reunir com os três juntos, toda semana, dentro do carro.
Pode não ter sido exatamente assim que aconteceu. Mas, é como eu sempre gostei de lembrar… e contar.
A verdade mesmo é que para todos nós que teimávamos em militar clandestinamente naquelas épocas bravas de ditadura, de medo, prisões e torturas, as reuniões eram sempre entre poucos, dentro de um carro que vagava pelas avenidas marginais até a discussão, ou a gasolina, acabar. Ou nos bancos do Ibirapuera simulando um piquenique. Lembro até de idas a Santos, em pleno inverno, para reunir na praia, três ou quatro pessoas, devidamente vestidas dos pés à cabeça. Nada suspeito, mas quais alternativas?
Lembro também que devorávamos os jornais – que eram devidamente arquivados – sempre em busca de notícias que prenunciassem o fim do regime militar ou que falassem de greves ou mobilizações da classe operária. Tarefa superdifícil, pois o pouco que acontecia neste sentido era censurado ou, mais tarde, substituído por receitas de bolo ou sonetos de Camões.
Também nos esforçávamos para aprender a falar espanhol, bem antes dos imperativos da formação do Mercosul. A tarefa era obrigatória, pois os livros marxistas que chegavam eram importados da Argentina ou da Espanha e vendidos numa só livraria, na praça da República. Trabalho Assalariado e Capital; Salário, Preço e Lucro; Do Socialismo Utópico ao Científico eram alguns dos títulos básicos. Sem notícias quentes do Brasil, as matérias de conjuntura internacional passavam a ser importantíssimas. Discutíamos horas sobre os acontecimentos da França, do Chile e do Ceilão, vislumbrávamos a todo momento a chegada de fora de uma onda revolucionária que contaminasse o país.
Mas, que nada. Em 1972, a seleção brasileira de futebol batia a de Portugal na final do Torneio do Sesquicentenário da Independência, no Maracanã, e eu, até então um ardoroso torcedor, aterrorizava meu pai com um comentário: “Devia ter perdido! Não tem por que comemorar independência, pois continuamos dominados pelo imperialismo americano! Essa vitória vai iludir ainda mais o povo!”
Não sei também se era exatamente assim que as coisas passavam nas cabeças dos colegas dos outros grupos. Creio que sim. Da nossa parte, a obsessão revolucionária crescia sem parar, apesar dos obstáculos em contrário. E isso dava muita coragem, incentivava que encarássemos como secundários um monte de “vícios pequeno-burgueses”, como namorar, ir a um estádio ou assistir filmes de aventuras. Em compensação, a vida cheia de riscos e de medo, de codinomes, de pontos secretos, de atividades clandestinas, de panfletagens proibidas ia formando os núcleos centrais das tendências de massa que iriam se formar em 76/77 e liderar as mobilizações de rua que ocorreriam nestes anos.
Estas futuras “lideranças”, é verdade, viam-se não só nas reuniões ou nas atividades culturais dos centros acadêmicos. As sessões dos cines Bijou e Belas Artes, os shows no Colégio Equipe, os bares das imediações do campus, o Riviera e a Pizzaria Micheluccio, na Consolação, eram também pontos de encontro de militantes.
Uma geração nada espontânea
Das reuniões contra o ensino pago de 1972 às freqüentes passeatas em 77, muita água correu debaixo da ponte. Mais devagar do que o almejado por nós, aqui e ali apareciam sinais de quebra da unidade das chamadas classes dominantes em torno do regime militar. Grandes jornais começavam a questionar a censura, surgiam os “jornais alternativos” (Opinião, Movimento, Versus, Ex, entre outros), ficavam públicos alguns entreveros entre os generais. Enquanto isso, nas fábricas das grandes cidades os dirigentes sindicais pelegos ainda reinavam tranqüilos, pouco se incomodando com as “oposições” que resistiam heroicamente, elas também impulsionadas pelos grupos clandestinos.
Caberia ao movimento estudantil, o “ME” , a honra de ser o primeiro a botar a cara para bater. Literalmente.
Primeiro, foram as manifestações dentro do campus. Contra diretores de faculdades autoritários, contra a política educacional do governo, por melhorias no restaurante universitário (“feijão sem repressão”, gritávamos numa animada passeata), elas se multiplicavam. Até chegar a reivindicações mais politizadas, como as das passeatas pela libertação dos presos políticos. Eram chamadas pelas cada vez mais freqüentes assembléias gerais universitárias, que uniam estudantes das diversas faculdades, tornando palpável a reconstrução do Diretório Central. Na ânsia de acertar, gastávamos horas de discussões para definir eixos de luta. Uma das grandes polêmicas daquele momento dividia os defensores da luta “pelas liberdades democráticas”, contra os que queriam a luta “em defesa dos direitos humanos”. Ganhava quem levava mais gente às assembléias. Democracia direta.
Aí já dava para falar de uma nova geração que se formava. Organicamente, fruto de anos de atividades embrionárias e pacientes de uns poucos. Para disputar as primeiras eleições para o DCE reconstruído, um grupo formado por remanescentes da AP iria formar a Refazendo, o PCdoB formaria a Caminhando, os trotskistas construiriam a Liberdade e Luta. Eram as três principais correntes da USP. Agrupavam centenas de estudantes, entre os quais dezenas se incorporavam às organizações políticas que impulsionavam.
Quando os limites do campus se tornaram pequenos, o grande debate passou a ser o da escolha do momento para nos aventurarmos pela cidade. Uma primeira grande passeata iria sair da Cidade Universitária, cruzar a ponte sobre o Rio Pinheiros e desafiar os esquemas do secretário da Segurança, hoje deputado estadual, Erasmo Dias. A partir dali, a coisa não parou mais. Eram convocadas para o Largo do Paissandu, para o Parque Dom Pedro, para o meio da multidão, às seis horas da tarde. Em dias de repressão caprichada a ordem era fazer “passeatas-relâmpago”. Juntávamos um punhado de gente e saíamos correndo, gritando “abaixo a repressão”, até as viaturas da polícia chegarem. No dia seguinte, no campus, a tarefa era contar os presos e feridos e verificar quem havia participado de mais passeatas no mesmo dia. Com o passar do tempo fomos nos sofisticando. Já havia esquema de advogados de plantão e sistema de comunicação durante as manifestações. Sem celular, pager ou computador. Apenas um pacote de fichas telefônicas para os manifestantes e um número para ligar “dando os informes”.
Quando estas mobilizações ganharam destaque – e muito – nas páginas dos jornais diários, chegava-nos a certeza de que Lenin estava certo (ou seria Trotski?) num texto sempre evocado, no qual falava que os estudantes “saíam na frente”, eram “os batedores da revolução”. Entendíamos que a divulgação massiva de nossos atos iria influenciar categorias profissionais a assumirem o enfrentamento, em particular, óbvio, os operários.
Coerentes com este raciocínio, as organizações começaram a “exportar quadros” do ME para as fábricas e bancos ou até para o movimento secundarista (isso mesmo: universitário voltava pro colégio para militar!). Também fazíamos de tudo para trazer às nossas assembléias e atos públicos “pelas liberdades democráticas” representantes de outros movimentos ou personalidades. Do “parlamento burguês”, os deputados Airton Soares e Alberto Goldman, do MDB, eram os que assumiam o risco de aparecer. As reuniões anuais da SBPC eram outro fórum que invadíamos, tentando colocar na pauta pontos mais políticos que os ligados ao “progresso da ciência”.
Da USP, o processo cresceu rapidamente para as universidades pagas e colégios da cidade e espalhou-se pelo país. Do Rio de Janeiro, de Brasília, de Belo Horizonte, do Nordeste, de Porto Alegre, chegavam as notícias de movimentos semelhantes, impulsionados por inúmeros outros pequenos grupos políticos que se multiplicavam.
Reconstruído o DCE, queríamos as UEEs e a UNE. Multiplicavam-se as reuniões e encontros semiclandestinos reunindo gente de todo o país. As tendências estudantis ganhavam contornos nacionais. Aí, já vivíamos em função do movimento, com reuniões, viagens e articulações diárias. Quando as forças do coronel Erasmo Dias invadiram a PUC para espancar e prender centenas de estudantes, o Encontro Nacional de Estudantes, que tinha acabado de se realizar, já havia tomado as deliberações principais que iriam levar à refundação da UNE. O disparate que foi a ação policial teve como principais resultados acirrar mais os ânimos do movimento e indignar a maioria da população.
Quando a UNE foi refundada, no histórico Congresso da Bahia, em 79, o ME já havia virado coadjuvante do movimento social.
Em 78, Lula e os metalúrgicos do ABC tinham roubado a cena e davam o passo decisivo que levaria ao fim da ditadura militar. Ao mesmo tempo, outras categorias profissionais também avançavam na retomada de seus sindicatos das mãos dos pelegos e faziam movimentos importantes. Mas, isso já é uma outra história…
A marca ficou
Destes anos, com certeza ficou o exemplo. Ficaram também estruturas, experiências, lições muito úteis para os anos que se seguiram. Nada foi em vão, nunca foi “arroubo juvenil”. A maior fatia das tendências, das organizações e da massa que assumia as mobilizações de rua iria engrossar o caldo que daria origem ao Partido dos Trabalhadores. Gente formada neste período, que começava a seguir suas carreiras profissionais e iniciar uma militância sindical em outras áreas. Aos poucos, a grande maioria destes grupos ia se dissolvendo ou virando tendências no interior do PT. Fora dele, iam dar a base para outros partidos como o PCdoB e o PSTU. Muitos se transformaram em dirigentes partidários ou sindicais, ativistas de movimentos sociais, professores, estudiosos, jornalistas, comprometidos com a defesa da justiça social, da democracia – embora alguns poucos tenham decidido seguir os caminhos do neoliberalismo ou, até, de Fernando Collor. Uma geração inteira se formou e se destacou. Não só no campo político, mas também nas artes, na direção de empresas, milhares de pessoas por todo o Brasil, todos hoje na faixa dos 40, alguns conhecidos, uma maioria incógnita – como ocorria naquela época. Gente que, com certeza, têm algo a ver com o país de hoje.
É fato que, se ainda temos que conviver com massacres no Carandiru e em Eldorado dos Carajás, Candelárias e Diademas, já não temos censura, as eleições são diretas, já não existe a Oban e a Teoria&Debate pode ir às bancas. E se isso está acontecendo, alguma coisa tem a ver com o que ocorreu naqueles tempos. Desprezá-los é mudar a história.
Quando termino este texto, a UNE está encerrando mais um congresso, em Belo Horizonte, e o noticiário sobre ele ocupa apenas uns poucos artigos nos jornais. Não, não é culpa da direção da entidade a falta de espaço, nem ação da censura. Apenas, os tempos são outros. Eu só sei que, como diria Kevin Arnold, aqueles foram anos incríveis. E não voltam mais.
* Celso Marcondes, aos 23, era membro da coordenação nacional da Liberdade e Luta. Aos 43, é publicitário.