Para maximizar votos na cena eleitoral, a candidatura do PSOL vale-se de um discurso sectário que iguala o governo Lula aos governos FHC, ao mesmo tempo que atenua e revê várias teses esquerdistas da sua muito recente origem. Este dilema é o sintoma de uma cisão da identidade de um partido que nasce com a ambição de ser à esquerda do PT mas já se alimenta, com prioridade e senso de oportunidade eleitoral, dos sensos comuns cultivados na mídia e na opinião pública.

Para maximizar votos na cena eleitoral, a candidatura do PSOL vale-se de um discurso sectário que iguala o governo Lula aos governos FHC, ao mesmo tempo que atenua e revê várias teses esquerdistas da sua muito recente origem. Este dilema é o sintoma de uma cisão da identidade de um partido que nasce com a ambição de ser à esquerda do PT mas já se alimenta, com prioridade e senso de oportunidade eleitoral, dos sensos comuns cultivados na mídia e na opinião pública.

Por cultivar em sua própria identidade o valor democrático do pluralismo político, por não se auto-proclamar e pretender exaurir em si a representação da esquerda brasileira, o PT só pode respeitar e relacionar-se a partir de um sentimento aberto com o aparecimento na cena política do país da candidatura de Heloísa Helena, apoiada na coalizão PSOL/PSTU/PCB. E não pode deixar de dialogar criticamente com esta candidatura e este partido mesmo diante do fato de seus porta-vozes públicos, quase todos recém rompidos com o PT, expressarem com freqüência opiniões absurdamente sectárias, quando não profundamente desrespeitosas à dignidade de sua história e prática social.

Mas para estabelecer os protocolos deste diálogo público é necessário entender antes o que significa a ascensão eleitoral recente vivida pela candidatura Heloísa Helena, de 4% a 10% das intenções de voto, medida em vários institutos de pesquisa.

É preciso diferenciar analiticamente o nascimento e o primeiro aparecimento público do PSOL da formação do PT e, em uma outra medida, da experiência do PSTU. Se o PT nasceu como um grande espaço de síntese do sindicalismo autêntico, das organizações revolucionárias de esquerda, da intelectualidade socialista e das comunidades eclesiais de base, o PSOL nasceu ancorado em um projeto de cisão do principal partido da esquerda brasileira. Esta identidade de cisão é muito importante para entender a necessidade sectária da identidade do PSOL: a sua origem, o seu crescimento, o seu futuro dependem do fracasso do governo Lula e do PT. Ele não criou propriamente sujeitos políticos novos: apenas pretendeu deslocar forças sociais e parlamentares de esquerda já existentes para um outro campo partidário. Avanços do governo Lula e do PT, de sua força social, eleitoral e principalmente de seu programa ou identidade socialistas, são, nesta medida, impasses intransponíveis ao projeto PSOL. Este projeto depende do fracasso da mais influente e enraizada força partidária de esquerda que o povo brasileiro conseguiu formar ao longo de toda a sua história. Para os principais teóricos do PSOL, isto de fato já ocorreu, o PT exauriu-se enquanto uma força de expressão dos anseios dos trabalhadores e do povo brasileiro. Para alguns deles, isto de fato já havia ocorrido antes mesmo de Lula chegar à presidência da República em 2002.

A adjetivação farta, as comparações desmedidas, a presunção sem substância ou simplesmente o mero insulto ao governo Lula e ao PT são, assim, necessidades para o recente PSOL. São a reiteração pública de sua necessidade, o álibi de seu nascimento. Trata-se, no plano político-cultural, de extrair mais-valia simbólica do PT como estratégia para se auto-nomear como último reduto dos valores do socialismo, dos compromissos autênticos com o povo brasileiro ou simplesmente da honestidade pública.

Mas a cisão não ocorreu. A esmagadora maioria dos movimentos sociais, das comunidades eclesiais de base, dos militantes revolucionários e socialistas, dos intelectuais, dos parlamentares de esquerda continuam tendo como referência, mesmo que crítica, o PT e o governo Lula. O projeto PSOL passou a depender desesperadamente da performance eleitoral da candidatura Heloísa Helena. Aí outra forte diferença do PSOL com a formação histórica do PT: o seu deslanche eleitoral ocorrido nacionalmente em 1989 deu-se após uma década prodigiosa de lutas sociais e de acumulação política contra a transição conservadora. A votação de Lula em 1989 expressou um fenômeno político-social de ascenso: a votação de Heloísa Helena, mais minoritária e ainda instável, expressa um fenômeno claramente político-eleitoral. De um ponto de vista dos valores da esquerda, tendo em vista a ponderação entre a sua força nas instituições estatais e as forças sociais que movimenta ou que se relaciona, o PSOL, nascido com base principalmente em mandatos parlamentares, com expressão extremamente minoritária em movimentos sociais e centrado na dinâmica eleitoral, é hoje muito mais inserido na ordem do que o PT até a sua chegada ao governo central do país. Em síntese, sua história é, nesta medida, um recomeço para aquém da história do PT.

Em forte medida, esta pequena e instável ascensão eleitoral deveu-se claramente à boa vontade dos principais órgãos de mídia do país, interessados em dar visibilidade e promover a candidatura Heloísa Helena como forma de aumentar as chances de uma disputa de segundo turno nas eleições presidenciais. O PT, em seus primeiros anos de difícil acumulação eleitoral, nunca contou sequer com um pequeno quinhão desta boa vontade midiática. Ele se construiu, na verdade, contra as forças mais poderosas da mídia e, como se demonstrou no ano passado, isto continua sendo verdade. A própria revista Veja, uma das mais reacionárias de toda a história do país, dedicou recentemente à figura de Heloísa Helena duas páginas laudatórias com o título “Uma mulher arretada”. A revista Época de 14 de agosto trouxe a capa e uma matéria escandalosamente apologética à candidata do PSOL. Esta abertura para a mídia foi de fato generalizada no período, inclusive no Jornal Nacional da Rede Globo. Isto não autoriza ninguém a concluir que a candidatura de Heloísa Helena faz o jogo dos conservadores e a negar a identidade de esquerda do PSOL. Apenas permite afirmar que o viés de cisão do PSOL, que o faz dedicar o principal das suas energias a combater o governo Lula e o PT, cria uma área potencial de instrumentalização de sua prática por parte de forças conservadoras.

Uma dinâmica de desradicalização?

Se não trilha o caminho de auto-formação do PT, o PSOL está também já hoje muito distanciado da identidade do PSTU. Na convenção nacional do PSOL, realizada no último dia 28 de maio, a proposta defendida entre outros por Luciana Genro e pelo deputado Babá de uma aliança eleitoral prioritária com o PSTU foi derrotada por 110 votos a 44, sendo priorizada a candidatura a vice-presidente da República do ex-petista César Benjamin. A identidade pública do PSOL está muito distante do obreirismo e do anti-institucionalismo do PSTU, centrado em cultivar um certo ramo da cultura trotsquista e uma tradição extremamente vanguardista na formação de partidos. A coerência heróica da militância do PSTU, formada para atravessar décadas de posições minoritárias ou marginais na grande política e no próprio movimento operário, nutria-se de uma identidade sectária auto-centrada. Não se espere uma tal paciência histórica do sentimento que anima o nascente PSOL.

A coerência, definitivamente, não é o forte do PSOL. Sua identidade já nasce dilacerada entre as imagens sectárias que cercam a cisão com o PT e o anseio de estar no centro da política eleitoral. Não é preciso conhecer mais de perto a militância da companheira Heloísa Helena para saber que a veemência e o destempero verbal com os quais defende os seus pontos de vista, sua premência em imediatamente moralizar o tratamento das questões, não são simetricamente acompanhados por uma fundamentação profunda ou por alguma síntese teórica nova.

Por isto, quando afirmou em entrevista no Jornal Nacional a diferença entre o programa histórico do PSOL e o de sua candidatura, entre a sua identidade de socialista no plano histórico e a sua luta pela democracia no plano imediato, não há por que duvidar da sua sinceridade. Ora, a cultura petista nasceu exatamente para formar uma nova síntese histórica entre socialismo e democracia, para iluminar estas duas dimensões que na experiência histórica do estalinismo e da social-democracia apareceram tragicamente separadas. Esta dificuldade, a de dar um sentido histórico mais nítido ao circunstanciado e complexo ato de governar o país, em uma correlação de forças ainda desfavorável, foi sem dúvida a principal tensão da identidade vivida pelo PT durante o governo Lula. Aliás, esta aproximação entre o programa histórico do PT e a dinâmica do governo Lula em um segundo mandato a ser conquistado organizou o balanço que se fez do governo e suas diretrizes de programa no último Encontro Nacional. O partido que se auto-nomeia do socialismo e da liberdade já teria desertado desta ambição?

Se o programa para um governo não é e nem pode ser o programa histórico do partido, ele, no entanto, afirma seus princípios na correlação de forças dada em uma determinada conjuntura. Mas o PSOL, formado por trotsquistas sectários ou não sectários, comunistas e gramscianos renovadores, lideranças da esquerda da Igreja católica e de esquerda nacionalista não teve ainda tempo para formular uma síntese de um programa histórico. E precisa ter já um programa eleitoral de governo. Qual será este programa? Em que medida ele está à esquerda, de forma conseqüente, do programa do PT ou da candidatura Lula?

Ora, o anseio de mostrar-se palatável, não radical, para uma parcela do eleitorado que rejeita Lula mas não necessariamente rejeita Alckmin, pode acabar por imprimir uma dinâmica de desradicalização programática da candidatura de Heloísa Helena que deslegitima, por sua vez, as críticas sectárias ao governo Lula. O exame dos dez pontos programáticos prioritários alinhavados por César Benjamin, responsável pela redação de um projeto, deixa várias dúvidas a este respeito. Aliás, foi recém divulgada uma carta da direção nacional do PSTU, questionando o fato de ter se abandonado a defesa da suspensão do pagamento da dívida externa e a não duplicação imediata do salário-mínimo (ao invés da sua duplicação ao longo de oito ou dez anos).

No que diz respeito à política externa do governo Lula, quais serão as alterações propostas pela candidatura do PSOL? A prioridade à integração sul-americana proposta já vem exercida largamente pelo governo Lula. Aliás, o PSOL mantém a sua crítica que o governo Lula é ambíguo em relação à Alca, aprofunda a dependência em relação ao FMI, não avança na construção do Mercosul e repete FHC na política externa?

Em relação às políticas sociais, a candidatura do PSOL agora propõe “manter e aprimorar o Bolsa- Família” ( antes este era fortemente rejeitado em função de sua matriz pretensa e limitadamente assistencialista). Um eventual segundo governo Lula certamente fará muito mais do que isto: o desafio é exatamente o de incorporar esta massa de brasileiros e brasileiras, sem vínculos de trabalho formal e com renda insuficiente, em cidadãos com pleno acesso aos meios para formar sua autonomia econômica e política e cultural. A proposta de “revolucionar a educação” não se diferencia muito do que vem sendo elaborado e da prioridade concedida a este tema no programa do PT. A proposta de reajustar o salário-mínimo, sempre incorporando a recomposição inflacionária, mais a taxa de crescimento do PIB e um fator de reajuste de 5%, está no campo ampliado das possibilidades discutidas pela comissão formada por centrais sindicais e o governo Lula. A aceleração do processo de reforma agrária proposto certamente fará parte também do programa Lula, como já vem ocorrendo nos últimos dois anos.

No plano econômico, o que se propõe é a redução rápida dos juros para um patamar de cerca de 4% reais, taxas de crescimento com piso mínimo de 5% ao ano. Não está, deste ponto de vista, distante dos propósitos publicamente emitidos pelo atual ministro da Fazenda do governo Lula, Guido Mantega, em entrevista ao jornal Valor Econômico do dia 7 de agosto, quando propõe como meta de governo se alcançar um patamar de 5% de juros reais e um crescimento da economia no patamar mínimo de 5% ao ano. De fato, o governo Lula, ao diminuir fortemente a vulnerabilidade externa e controlar a inflação, retirou da variável juros a concentração de funções que o arcabouço neoliberal havia orientadamente atribuído a ela. O pré-programa da candidatura Heloísa Helena fala em auditoria da dívida externa e das privatizações sem, no entanto, avançar mais propostas a respeito.

Os pontos programáticos prioritários alinhavados pelo coordenador do programa da candidatura Heloísa Helena nada falam dos temas do combate à opressão das mulheres. E se posicionam contra a adoção de quotas de promoção dos negros. Estão, nesta medida, aquém da cultura petista e do próprio governo Lula que tem dado inovadora ênfase no tratamento destas questões.

No que diz respeito ao combate à corrupção, tema que justamente tanto indigna a candidata a presidente, chama a atenção a superficialidade da ênfase colocada pelo coordenador do programa à erradicação dos cargos de confiança como modo de sanar este grave problema. A corrupção, no entanto, é sistêmica no Estado brasileiro, exige reformas políticas do sistema partidário eleitoral, aumento qualitativo dos mecanismos de controle interno e do controle público externo, além de uma renovação da legislação penal, conferindo-lhe maior rigor punitivo e mais agilidade processual.

Não deixa de ser também discutível a afirmação do coordenador de programa que um eventual governo Heloisa Helena imporá a sua vontade política ao Congresso Nacional com o apoio da mobilização da sociedade, não sendo uma “crise institucional” julgada como necessariamente negativa. Ora, que o exercício de uma governabilidade transformadora exige, num patamar qualitativamente novo do que aquele acionado pelo governo Lula, a mobilização da sociedade e da opinião pública é certo. Mas a experiência histórica já demonstrou à saciedade quem se aproveita e que tragédias históricas rondaram governos de esquerda que voluntaristicamente procuraram operar sem considerar a correlação de forças no plano institucional. A cultura socialista democrática do PT vem propondo historicamente combinar democracia representativa com democracia participativa e é muito mais avançado, no plano democrático, lutar por reformas políticas que tornem estas instituições mais representativas e porosas à soberania popular. Aliás, a cultura da democracia participativa, tão forte na cultura do PT e que se manifestou apenas setorialmente na experiência do governo Lula, não é tratada pelo coordenador do programa da candidatura Heloísa Helena, cuja inteligência de forte impregnação nacional e social tem exatamente em relação à dimensão democrática uma explícita dificuldade.

Princípio de cisão na cisão?

Se certos vetores liberais que compareceram com maior força no início do governo Lula tivessem se encorpado e ganhado uma posição hegemônica na experiência, se tivessem galgado uma posição dominante na cultura petista, poderia haver alguma coerência entre o diagnóstico sectário do governo Lula proposto pelo PSOL e o programa em vias de desradicalização da candidatura Heloísa Helena. Mas ocorreu o contrário disso: a dinâmica do governo Lula vem realçando, de modo cada vez mais nítido, as suas dimensões democráticas e populares e o recém realizado Encontro Nacional do PT aprovou, quase por consenso, posições muito firmes e afins às tradições do socialismo democrático.

O diagnóstico de que o governo Lula “é uma continuação técnica do governo FHC”, ou que ambos “são a mesma farsa neoliberal”, como afirmou a companheira Heloísa Helena em entrevista à rádio CBN no dia 26 de junho passado, era antes sectário e unilateral. Hoje, analisada a experiência de conjunto do governo Lula, o diagnóstico simplesmente perdeu contato com a realidade. Não tem poder de convencimento público senão para consciências conformadas no mais estreito sectarismo. Quantas das lideranças públicas do PSOL defenderiam o voto nulo em um hoje ainda incerto segundo turno entre Lula e Alckmin?

Assim, o princípio de cisão do PSOL arrisca tornar-se, ele próprio, um princípio de cisão da própria experiência do PSOL. Uma cultura sectária não sobrevive à prioridade concedida à lógica de maximização de votos, nestas condições em que a disputa de votos se dá.

Para a experiência do PT e do próprio governo Lula, seria melhor que a cultura partidária do PSOL se dessectarizasse e fosse capaz de dialogar, mesmo num plano de posições esquerdistas, com os desafios reais e históricos de transformação do país. Nesta dimensão da luta de classes, seria possível, então, em uma cultura de respeito na diferença, estabelecer afinidades práticas e lutas comuns contra os que exploram e oprimem o povo brasileiro.

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