Igualdade racial – Cotas com qualidade para a escola pública, por Gustavo Balduino
Estamos em uma nação de excluídos, onde ter acesso ao ensino superior ainda é privilégio – apenas 10% da população com idade entre 18 e 24 anos está neste nível de ensino. O Projeto de Lei nº 3627/04, que reserva 50% das vagas nas universidades federais para alunos egressos das escolas públicas, negros e índios, trata de valores culturais e interesses importantes da sociedade. No momento aguarda votação na Câmara dos Deputados.
Em inúmeras Ifes (Instituições Federais de Ensino Superior) o percentual de procedentes da escola pública já é próximo a 50%; em alguns casos, acima. Ocorre que muitos desses alunos concentram-se em cursos de menor demanda. Boa parte é oriunda dos colégios militares, escolas técnicas, colégios de aplicação e Colégio Pedro II que, embora públicos, abrigam alunos já pré-selecionados acadêmica e economicamente. Incluí-los nas cotas seria um privilégio descabido.
Sabemos que a implantação de cotas enfrenta resistência, sobretudo por parte daqueles que confundem mérito com pequena quantidade. A pertinência social do projeto está condicionada à combinação entre o atendimento aos alunos egressos do ensino público, a permanência destes nas Ifes e a manutenção da qualidade.
Um dos argumentos usados contra cotas é a aparente contradição com o mérito. Desconsiderar que o ensino superior forma a elite de um País é ignorar o seu papel estratégico, no entanto, esta elite deve ser intelectual e não econômica.
Mérito e cotas podem ser combinados, por exemplo, beneficiando apenas aqueles que alcançarem uma nota mínima. O reforço acadêmico, que já é usual, permite preencher lacunas na formação dos alunos. Também é necessário criar condições de permanência como subsídios para alimentação, moradia e transporte aos estudantes carentes.
Outro argumento contra é que os governos deveriam cuidar da qualidade do ensino básico público. Embora verdadeiro, não impede que ações afirmativas de caráter sócio-econômico possam vir simultaneamente a medidas de qualificação do ensino público, como o Fundeb.
As cotas sociais podem, inclusive, colaborar para a melhoria do ensino público. A provável migração de setores da classe média colocará neste ambiente usuários mais conscientes e organizados a demandarem dos governos maior atenção e investimentos.
Quanto à questão racial é necessário que a sociedade brasileira reconheça a discriminação ocorrida desde seus primórdios e busque superá-la. A solução passa pela educação cidadã de todos e não pela separação legal entre brancos e negros.
Se assim fosse, qual a justificativa para não estabelecer cotas raciais para todos os concursos públicos? Nas empresas? Nos partidos? E nos parlamentos? Mas, se por hipótese, na tentativa de inclusão, instituíssemos essa regra em todos os ambientes sociais, e de Estado, estaríamos resgatando uma dívida ou segmentando definitivamente a sociedade? O que impedirá restaurantes, ônibus, locais públicos em geral de separar lugares para “beneficiar” negros?
Este talvez seja o caminho mais rápido para a legalização de abomináveis comportamentos racistas e um conseqüente retrocesso nas relações étnicas do povo brasileiro, portanto impróprio e não deveria constar na lei. Já temos uma sociedade dividida em classes, não precisamos dividi-la em cores.
Se o objetivo é a inclusão ou democratização do acesso ao ensino superior, será melhor tratado com a implantação de cotas sócio-econômicas, o que certamente interferirá de maneira objetiva na questão étnica. No Brasil a pobreza tem cor.
O Projeto de Lei merece ser discutido e aprimorado sem preconceitos ou como saída milagrosa da exclusão. No entanto, a lógica da inclusão no ensino superior deve ser de políticas públicas universais como a expansão, interiorização, cursos noturnos e ensino a distância, sempre com qualidade. Ações afirmativas como cursinhos pré-vestibular, bolsas e cotas só podem ser acolhidas como soluções parciais e temporárias.
*Gustavo Balduino, 44, engenheiro mecânico, especialista em planejamento, orçamento e gestão pública pela FGV, é secretário-executivo da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), membro da coordenação de da comissão de educação do programa de governo do candidato Lula.