Edição nº 59 – julho de 2006: A afirmação dos direitos da mulher no governo Lula
Apesar de terem avançado na conquista de posições no sistema educacional e no mercado de trabalho, as mulheres brasileiras ainda sofrem com um grave e onipresente sistema de preconceitos. Em que medida as políticas públicas no governo Lula conseguiram avanços neste plano democrático tão decisivo?
Apesar de terem avançado na conquista de posições no sistema educacional e no mercado de trabalho, as mulheres brasileiras ainda sofrem com um grave e onipresente sistema de preconceitos. Em que medida as políticas públicas no governo Lula conseguiram avanços neste plano democrático tão decisivo?
Nas últimas décadas um dos fatos mais marcantes ocorridos na sociedade brasileira foi a inserção crescente das mulheres na força de trabalho e em posições sociais em que até então elas não estavam presentes. Este contínuo crescimento da participação feminina tem sido explicado por uma combinação de fatores econômicos e culturais. O avanço da industrialização transformou a estrutura produtiva, a continuidade do processo de urbanização e a queda das taxas de fecundidade proporcionaram um aumento das possibilidades das mulheres encontrarem postos de trabalho na sociedade. Por outro lado, os movimentos feministas do final dos anos 60, nos Estados Unidos e Europa, alcançaram o Brasil ainda em anos de ditadura e produziram o ressurgimento do movimento feminista nacional fazendo crescer a visibilidade política das mulheres na sociedade brasileira na luta pela democracia.
Atualmente, por exemplo, em todos os níveis de ensino no Brasil as mulheres têm maioria entre os concluintes. No ensino fundamental, as meninas representam 53,4% dos formandos da 8ª série. Em relação ao número de alunos matriculados, elas somam 49% do total de alunos, segundo dados do Censo Escolar 2002. No ensino médio essa vantagem é ampliada: 56,3% dos concluintes são do sexo feminino. Esse número também é superior à representatividade das jovens estudantes na matrícula, que é de 54,2%. Ainda em termos educacionais, no nível superior as mulheres equivalem a 63% dos concluintes, conforme dados de 2002. Na distribuição da matrícula, elas representam 56,5%.
No entanto, esta conquista de espaços pelas mulheres não tem sido capaz de efetivar uma igualdade entre os gêneros na sociedade brasileira. Uma série de preconceitos e desigualdades persistem e não dão mostras de desaparecer naturalmente. As mulheres brasileiras estão sub-representadas nas camadas mais altas da sociedade e nas instâncias de poder político e sobre-representadas nas camadas de pobres e indigentes. Segundo os indicadores sociais do IBGE (2003), a taxa de participação feminina no mercado de trabalho teve enormes avanços nas últimas décadas, demonstrando a participação crescente das mulheres brasileiras, mas é ainda menor se comparada a masculina. A taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho no Brasil, conforme o PNAD/IBGE de 2003, já é de 50%. As mulheres representam no Brasil 42% da mão de obra no trabalho formal e 57% no trabalho informal. Elas se concentram ainda em trabalhos mal remunerados e precários. As mulheres representam 93,5% dos trabalhadores domésticos, 69% dos trabalhadores na produção para autoconsumo e 55% dos não renunerados. As diferenças salariais dão visibilidade às discriminações de gênero e racial. A desigualdade de rendimentos se mantém em todos os estados e regiões brasileiras. 71,3% das mulheres que trabalham ganham até dois salários mínimos contra 55,1% dos homens. A proporção de mulheres dedicadas aos trabalhos domésticos é de 19,2% e aquelas que não têm remuneração perfazem 5,9%, muito superior aos 0,8% dos homens. Em média, as mulheres brancas recebem 40% menos do que os homens para o mesmo trabalho e as mulheres negras chegam a receber 60% menos.
As maiores taxas de desemprego são femininas (6,7%), enquanto a taxa masculina está em 5,9%. O trabalho doméstico, que absorve muitas mulheres e parte significativa de seu tempo, é considerado inatividade. No geral, são essas as mulheres pobres e negras, das periferias urbanas que também não dispõe de equipamentos sociais (creches, pré-escola ou programas de educação), dificultando ainda mais sua participação na distribuição dos recursos econômicos.
Um dos grupos sociais mais vulneráveis à pobreza é o de domicílios chefiados por mulheres, categoria social que cresceu significativamente nas duas últimas décadas, particularmente nas regiões urbanas. No caso do Brasil, contavam-se 9,9 milhões de domicílios chefiados por mulheres, dos quais 2,5 milhões (22%) eram pobres. Segundo relatório da OIT 2006 com base na POF 2002/2003, a chefia das famílias para as mulheres brasileiras é uma tarefa solitária já que 81,6% destas não têm companheiros enquanto nas famílias chefiadas por homens apenas 12,3% não tem pares. As mulheres chefes de família, que representam 25% das famílias brasileiras, estão concentradas principalmente no meio urbano, são empobrecidas, uma vez que contam com apenas uma fonte de renda, e essa é até 60% inferior à masculina. Nas famílias chefiadas por mulheres a incidência de pobreza é da ordem de 34% a 35%.
Outro indicador importante da discriminação de gênero no Brasil é a rotina de violência a que são submetidas as mulheres brasileiras. Estas, além de vítimas das diversas formas de violência que atingem a sociedade brasileira, sofrem também com a agressão de gênero, praticada no ambiente doméstico, quase sempre por homens da família. Pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2001 demonstrou os tabus e os medos em lidar com este tema. Quando perguntadas de forma estimulada, 43% das mulheres revelam ter sofrido algum tipo de violência, mas espontaneamente apenas 19% admitem esta realidade. A violência contra a mulher em particular é um fenômeno que atinge mulheres de diferentes classes sociais, origens, regiões, estados civis, escolaridades ou raças.
Todos os indicadores acima informam situações de profundas discriminações contra as mulheres. Mesmo as mulheres apresentando maior taxa de escolaridade do que os homens em todos os níveis educacionais, permanecem as diferenças de acesso ao mercado de trabalho, aos salários e a sua condição de cidadania. Evidencia-se, portanto que as diferenças de gênero, seja na esfera do trabalho, da política, da saúde ou mesmo da educação, ainda são mantidas e reafirmadas pela situação diferenciada do status das mulheres em relação ao dos homens na sociedade brasileira.
A secretaria especial de política para as mulheres
Para além da herança de uma sociedade sexista e patriarcal, esta situação de desigualdade reflete também o descaso com que o Estado brasileiro tratou o tema durante muito tempo. A idéia de políticas públicas dirigidas especificamente às mulheres como forma de garantir equidade nas relações de gênero é relativamente recente no país, apesar de toda mobilização feminista das últimas décadas. Apenas para se ter uma idéia, segundo dados do Fórum Econômico de Davos, o Brasil ocupava em 2003. dentre 56 países pesquisados, a 51a. posição no ranking de países que aplicam políticas de equidade de gênero.
De forma efetiva, poderia-se afirmar que as políticas para as mulheres se inscrevem como questões de Estado com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) criado em 1985 vinculado ao Ministério da Justiça. O CNDM desempenhou papel importante no processo constituinte de 88 através da campanha “Constituinte pra valer tem que ter palavra de mulher”. Experiências importantes foram desenvolvidas também com a participação de movimentos feministas nas Conferências Nacionais de Saúde e com as Coordenadorias e Secretarias da mulher em governos populares das administrações municipais do PT.
No entanto, passo decisivo para a institucionalização de políticas públicas voltadas para as mulheres foi dado no primeiro dia do governo Lula com a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) com status de Ministério. A SPM desenvolve ações conjuntas com todos os Ministérios e Secretarias Especiais tendo como desafio a incorporação da especificidade das mulheres nas políticas públicas e o estabelecimento de condições para sua cidadania.
Desde então importantes programas têm sido subsidiados em diferentes setores pelo SPM. Programas como o “Pró-equidade de Gênero”, em parcerias com o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que visa à promoção do compromisso das empresas com a equidade de gênero no mundo do trabalho. Pode-se compreender neste mesmo sentido a Campanha Nacional pela Valorização e Formalização do Trabalho Doméstico empreendida este ano. O programa “Gênero e Diversidade na Escola” em parceria com o Ministério da Educação que visa à formação de educadores, fornecendo elementos para romper com práticas de preconceito na escola. O programa “Mulher e Ciência”, desenvolvido com o Ministério da Ciência e Tecnologia, com o objetivo de oferecer incentivos voltados para a produção de pesquisas e estudos sobre desigualdade entre homens e mulheres. Com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, o lançamento do Pronaf Mulher já beneficiou 322 mil trabalhadoras rurais entre 2004 e 2006. Também no âmbito do MDA foi criado em 2003 o Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia com a tarefa de transversalizar e promover o acesso das mulheres rurais, populações quilombolas e indígenas nas políticas de acesso á terra. Além destas ações, espera-se a aprovação do projeto de lei de Combate contra a Violência à Mulher enviado ao Congresso pela SPM em 2004. Este projeto de lei proíbe a aplicação de penas pecuniárias e institui juizados especiais com competência civil e ainda conceitua e define formas de violência contra a mulher.
A Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
A realização da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres em 2004 (I CNPM) coordenada pela SPM, já com a Ministra Nilcéa Freire, e pelo CNDM significou um novo momento nessa institucionalização ao recolocar para todo o país a discussão sobre a necessidade de políticas para a promoção da igualdade de gênero. Precedida de plenárias municipais e regionais e das Conferências Estaduais, a I CNPM permitiu a participação de mulheres de todo o país além de garantir representatividade e a expressão da diversidade da população feminina brasileira. Os princípios norteadores da conferência consideraram como fundamentais a igualdade e as ações afirmativas com respeito à diversidade de situações e experiências das mulheres brasileiras, bem como a defesa da autonomia e da participação feminina. A idéia de estabelecer diretrizes permitiu condições para que as conquistas desta conferência demarcassem conteúdos para a ação estatal e para a ampliação da legitimidade do movimento feminista como interlocutor das políticas públicas.
Com base nas resoluções e diretrizes da Conferência, elaborou-se o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM). A elaboração do PNPM foi realizada por um Grupo de Trabalho Interministerial composto por 7 ministérios e 2 secretarias especiais mais o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. A partir dele, o governo federal reorientou suas ações nas áreas de saúde, educação, trabalho e de enfrentamento à violência contra a mulher. O compromisso com políticas públicas que acelerem a redução das desigualdades passou a ser uma questão fundamental para o Estado Brasileiro. Constituído por quatro eixos de atuação – autonomia, igualdade no mundo do trabalho e cidadania; educação inclusiva e não sexista; saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos; enfrentamento à violência contra a mulher – o PNPM estabeleceu também 199 ações reeditadas a cada 3 anos, tendo como horizonte a realização da próxima Conferência Nacional das Mulheres. Entre suas prioridades está a elevação em 5,2% na taxa de atividade das mulheres na População Economicamente Ativa, redução em 15% da mortalidade materna e aumento de 12% do número de crianças entre 0 e 6 anos em creches e pré-escolas públicas.
Para acompanhar o desenvolvimento e a execução do PNPM foi instituído o Comitê de Articulação e Monitoramento formado por representantes de 11 Ministérios, a fim de avaliar periodicamente a execução do Plano e promover a articulação entre diferentes órgãos de governo responsáveis por sua implementação.
Apesar de todos estes avanços na institucionalização das políticas para as mulheres, os movimentos feministas têm apontado dificuldades para uma implementação mais efetiva do PNPM. Em texto para a revista Teoria Debate nº 66, a feminista e socióloga Silvia Maria Camurça destaca o contexto desfavorável para a implementação das diretrizes da I CNPM em dois momentos.
Em primeiro lugar a PNPM foi elaborada após a instituição do Plano Plurianual 2003-2007 com forte ajuste fiscal, o que acabou afetando o orçamento de algumas políticas sociais. A este respeito, a Articulação de Mulheres Brasileiras expressou recentemente a preocupação com os cortes orçamentários sofridos pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.
Em segundo lugar, a crise política a partir de meados de 2005 causou um impacto muito negativo tanto na implementação dos programas públicos quanto na organização dos movimentos feministas. Este momento de impasse na máquina pública e nos movimentos sociais se refletiu no trabalho de implementação do PNPM.
Enfrentar estes obstáculos, lutar pela continuação e consolidação dos espaços institucionais abertos para a participação da mulher brasileira durante o governo Lula são algumas das tarefas a serem realizadas pelo movimento feminista brasileiro, que já possui a garantia da realização da II Conferência Nacional de Políticas para a Mulher em 2007.