O comunitarismo cristão e a refundação de uma ética transcendental
É na obra filosófica monumental do padre Henrique de Lima Vaz que se expressou na cultura brasileira o esforço mais sistemático de reconstruir as bases de uma ética universal, de fundo transcendental, capaz de responder ao enigma irresolvido da modernidade.

O comunitarismo cristão e a refundação de uma ética transcendental
É na obra filosófica monumental do padre Henrique de Lima Vaz que se expressou na cultura brasileira o esforço mais sistemático de reconstruir as bases de uma ética universal, de fundo transcendental, capaz de responder ao enigma irresolvido da modernidade. Dialogar com este esforço é fundamental para se avançar na formulação de uma ética pública a partir do diálogo entre marxistas e cristãos na cultura petista.

Se na obra de Marx o tema da ética, enquanto esfera relativamente autônoma da práxis, foi internalizado na crítica às dimensões objetivamente desumanizantes do capitalismo, na situação imanentemente revolucionária do proletariado e na programatização da sociedade comunista, nas correntes do chamado comunitarismo cristão a ética teve sempre uma expressão superlativa, explícita, fundante da política. A política sem uma orientação de seus fundamentos éticos seria um espaço sem sentido ou vazio para as diversas tradições do comunitarismo cristão.

Daí que estas correntes cristãs lancem a todos os que lutam contra as barbáries contemporâneas o seguinte desafio: como reencontrar um universo de valores comuns que dêem sentido à existência humana e permitam a construção de uma comunidade ética de âmbito universal? Ora, para os cristãos este fundamento ético deve atender aos critérios da anterioridade e da amplitude em relação à experiência humana histórica, deve preceder e englobar a contingência humana em um Absoluto transcendente, isto é, na fé.

A relação entre fé e política pode, em princípio, percorrer três caminhos. O primeiro seria o de absorver a política pela fé cristã, instituindo a teologia como fundamento da legitimidade do poder político. Este é, por excelência, o caminho de Santo Agostinho em “Cidade de Deus” (413-426), obra teológica de referência em todo um ciclo da vida européia após a agonia do Império Romano, na qual se programatiza a subordinação do poder terreno ao poder espiritual.

O segundo caminho seria aquele de São Tomaz de Aquino (1225-1227) na “Summa Teológica”, obra que já recolhe a herança de Aristóteles em um sistema teológico. Nela se reconhece uma certa autonomia entre o sensível e o espiritual, entre poder terreno e poder temporal. As leis positivas do Estado deveriam especificar e circunstanciar as leis naturais, divinas na origem mas capazes de serem intelegíveis à razão humana. Através destas leis naturais e da noção de justiça é definido o princípio do bem comum em torno do qual devem gravitar os Estados. Em São Tomaz de Aquino, portanto, é o fundamento teológico último que orienta a finalidade da política, já restaurada em sua autonomia parcial.

No Estado liberal moderno que nasce, em Hobbes e Locke, no processo da revolução inglesa do século XVII, a legitimidade do Estado passa a prescindir do fundamento teológico. Diante dele, a ética dos cristãos deixa de ser fundamento universal da legitimidade do Estado e passa a ser simplesmente a expressão de uma tradição na história. Isto é, a partir de seus fundamentos de fé, os cristãos podem apenas reivindicar diante do Estado laico que ele atenda a seus reclames éticos. Enfim, uma “ética na política”, assim como se expressa em todos os terrenos da vida social, como bem sintetizou Marilena Chaui na primeira entrevista do livro “Leituras da crise – Diálogos sobre o PT, a democracia e o socialismo” (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2006). Isto é, não mais uma “ética da política”, que fundamenta a própria legitimidade das instituições políticas, como postula a filósofa.

Ética teológica, ética político-teológica ou ética teológica na política: as duas primeiras relações sendo incompatíveis com o Estado liberal moderno e a última relação sendo insuficiente para fundar uma ética universal da política, como, então, fazer frente ao espírito de cisão dos valores do sentido da vida que expõe dramaticamente a vida moderna aos tumultos da violência e barbárie?

A resposta a este grande desafio ocupou durante mais de quatro décadas o trabalho do pensamento filosófico daquele que foi certamente o cristão mais erudito do Brasil, o padre jesuíta Henrique de Lima Vaz. Este “homem de 2 500 anos”, herdeiro da tradição dos gregos, da grande tradição latina e da síntese teológica cristã, era também capaz de dialogar com naturalidade e fluência com os pensadores contemporâneos como Weber e Hannah Arendt, Habermas e Charles Taylor. Mas foi a partir de um diálogo muito alto com a grande síntese de Hegel e com a obra de Marx, ao final dos anos cinqüenta, que ele começou o seu longo caminho de maturação até a ” Introdução à Ética Filosófica” (2 volumes, Edições Loyola 2002).

O caminho de Vaz
A aproximação de um “pensamento de 2 500 anos”, nos termos de um curto ensaio, só pode ser entendida como um primeiro encontro, numa linha de aproximações sucessivas. Mas embora em grande medida esta obra de pensamento tenha se feito na solidão do filosofar, no Departamento de Filosofia da UFMG e na Faculdade de Filosofia do Centro de Estudos superiores da Companhia de Jesus, o seu sentido só pode ser estabelecido em relação com o processo de nascimento, radicalização e classicização do comunitarismo cristão no Brasil.

Apesar de sua carta de entrada no mundo da filosofia ter se dado com uma tese doutoral sobre Platão, escrita ainda em latim e jamais publicada, a sua identidade pública funda-se com a publicação de dois ensaios “Cristianismo e consciência histórica”, que aparecem publicados em 1960 e 1961 na revista “Síntese Política Econômica e Social”. Nesta época, ocorre o primeiro encontro no Brasil entre o pensamento cristão e o marxismo, que se realiza na juventude universitária cristã, tem o epicentro no Nordeste, e depois se materializa na fundação da Ação Popular (AP). São os tempos de preparação do Concílio Vaticano II, da formação da CNBB sob a liderança de Dom Hélder Câmara, da educação popular com Paulo Freire, da primeira inserção da Igreja no trabalho pastoral camponês, de engajamento.

A posição do pensamento de Vaz é aqui, emblemática, de todo o seu percurso. É um pensamento anti-tradicionalista mas que não rompe com a tradição cristã, antes pretende recompor a sua identidade singular e imprescindível na modernidade; é um pensamento que reconhece na “razão alargada” de Hegel o esforço sistemático mais alto de reconstruir a reconciliação do mundo e da história cindido entre o projeto do Iluminismo e a fé, mas recusa o seu imanentismo panteísta, isto é, o engenho de configurar o Absoluto como um Espírito auto-formativo inscrito na história; é um pensamento que faz já um diálogo filosófico com Marx, solidarizando-se com a sua intenção de universalidade e de humanização, mas configurando, segundo os próprios termos da dialética, os impasses do materialismo.

Como mostra Emanuel de Kadt em “Católicos radicais no Brasil” (Editora da Universidade Federal da Paraíba, 2003), a influência de Vaz foi fundamental para a redação do manifesto dos estudantes católicos, cuja repercussão foi decisiva para a eleição como presidente da UNE, de Aldo Arantes, militante da JUC da PUC do Rio de Janeiro. Como diz Kadt, “este manifesto, vindo de estudantes de uma universidade católica, chocou a opinião católica estabelecida, não apenas por suas denúncias sobre a universidade burguesa alienante, a natureza de classe do Estado e a vacuidade das liberdades garantidas constitucionalmente, mas também por causa de sua audaciosa teologia da história, que era muito mais “avançada” do que tudo o que era comumente aceito como progressista no Brasil”.

Em “Consciência e responsabilidade”, Vaz postula uma transformação baseada na compreensão das condições reais que se encontram aqui e agora, de suas raízes históricas, a grande contribuição de Marx. Afirma ainda: “o grande pecado do cristão hoje será o pecado de omissão histórica”.

É ainda visível a influência formadora de Vaz no chamado “Documento base” da AP. Este documento é, sem dúvida, um marco fundamental na história da formação da cultura socialista e democrática, da qual hoje o PT pretende ser o principal representante no país. Há três razões para conferir-lhe um valor histórico transcendente.

Em primeiro lugar, ele solidariza definitivamente o ethos cristão, então em processo de autonomização da estrutura hierárquica da Igreja, com o destino dos pobres e trabalhadores brasileiros. Abre-se com estas palavras fortes e inesquecíveis de uma consciência que se moraliza: “Nosso compromisso único é, pois, com o homem. Com o homem brasileiro, antes de tudo. O que nasce com a sombra da morte prematura alongando-se sobre o seu berço. O que vive com o espectro da fome habitando o seu teto miserável, acompanhando inseparável seus passos incertos, passos de quem caminha na vida sem esperança e sem rumo. O que cresce embrutecido e analfabeto, exilado, longe dos bens da cultura, das possibilidades criadoras, dos caminhos autenticamente humanos de uma liberdade real. O que morre de uma morte animal e anônima, atirado ao duro chão de sua miséria”.

Em segundo lugar, por que situando “o marxismo como expressão mais profunda e rigorosa da crítica ao capitalismo e como interpretação teórica da passagem ao socialismo”, liga a crítica da vulgata materialista à tese da ditadura do proletariado, à ” hipertrofia do poder político, à consagração mítica do aparelho do Partido, o fetichismo ideológico. Afirma: “as concepções materialistas (de consciência-reflexo, de consciência-produto, de consciência-instrumento), anulando a especificidade da consciência, anulam finalmente no homem sua condição de sujeito, de pessoa”. Daí que, fugindo a uma cultura coletivista opressora, o “Documento Base” afirme que “a socialização não se opõe à personalização, o comunitário não se opõe ao livre. Condicionam-se dialeticamente.”

Em terceiro lugar, porque vincula socialismo e democracia de forma estratégica, acentuando que “a socialização da propriedade é o processo de democratizar a distribuição e o uso dos bens decorrentes do trabalho humano, impedir sua função de dominação e, assim criar as bases para uma real democratização do poder.” Abrindo-se às contingências revolucionárias imprevistas, o texto afirma que ” No momento revolucionário, deverá se dar a coalizão das diferentes forças políticas que por uma contingência histórica aceitaram uma participação unificada, num organismo que deve reunir progressivamente as forças populares, acentuando o caráter representativo do poder e abrindo-se ao debate que o tornará expressivo das necessidades e aspirações do povo”.

O tempo desta fecunda fusão entre a consciência cristã e a consciência revolucionária, ancorada em uma crítica marxista do mundo da dominação do capitalismo, foi tragicamente interrompido em 1964 e por seus desdobramentos, que levariam à cisão da AP original, confluindo-se em parte para o PC do B e, em parte, para uma outra organização, que desembocaria, no final dos anos 1970, na formação do PT.

Há nesta conjuntura dramática e autocrítica uma espécie de dobra no pensamento de Vaz, no sentido de desdobrar-se sobre si mesmo, escavando fundo em sua própria cultura, que o fez não acompanhar, embora em uma posição solidária, os passos de radicalização do comunitarismo cristão que levariam à formação da Teologia da Libertação. Este recurso à filosofia parece, como recorda Maurício Marsola em “Modernidade e crise do humanismo”, o recuo de Carlos Drummond após o seu período de máximo engajamento poético: “Minha ilha ficará no justo ponto de latitude e longitude que, pondo-me a coberto de ventos, sereias e pestes, nem me afaste demasiado dos homens, nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. Por que esta é a ciência e, direi, a arte do bem viver; uma fuga relativa, e uma não muito estouvada confraternização”.

Se antes o pensamento de Vaz operava na vanguarda de destradicionalização da consciência cristã, diante do seu processo de radicalização vivido na Teologia da Libertação, ele se voltará não propriamente para a retaguarda mas para o fundo. “A recente adoção, por parte de alguns representantes da prática historiográfica na Igreja, de um modo de pensar ideológico que se exprime freqüentemente numa fraseologia pseudo-marxista nada tem a ver, portanto, com o encontro entre ciência histórica e tradição eclesial”, diz ele no ensaio “Política e história” de 1987. As palavras duras : ” Capturada nas linhas de força da ideologia da práxis revolucionária e do seu mito de um começo absoluto ou de uma história qualitativamente nova, a prática eclesial dos grupos mais avançados nessa linha inspirou uma escritura ideológica da história da Igreja que dissolve, aqui também, o topos da historia magistra vitae (com a profunda significação que ela adquire no tempo da Igreja) e, por conseguinte, abandona a própria idéia da tradição. A historiografia torna-se ato político de crítica e rejeição de um certo passado da Igreja e práxis instauradora de uma Igreja qualitativamente nova.”

Agora imerso no tempo próprio da reflexão filosófica, Vaz problematiza de forma muito mais aguda a relação entre as consciências contemporâneas da modernidade e a consciência cristã. Não se trata mais de trabalhar com a linha que estabelece a continuidade entre o tempo teológico-político e o tempo da modernidade, identificado na recorrente reprodução dos grandes arquétipos cristãos (por exemplo, a filosofia da história que culminará no comunismo como expressão secularizada da caminhada da humanidade para o Reino de Deus). Trata-se de colher dramaticamente a falência dos “humanismos antropocêntricos” em contraponto ao universo de sentido do “humanismo teocêntrico”. Diagnostica como central a categoria do niihilismo ético, “o enigma de uma civilização tão prodigiosamente avançada na sua razão técnica e tão dramaticamente indigente na sua razão ética”.

O desafio da inteligência de Vaz está agora voltado para entender “este imenso abalo sísmico no subsolo da história espiritual do Ocidente, do qual emergiu o até então desconhecido continente da primeira civilização não-religiosa da história”. Está em busca do tempo axial, em que a civilização do Ocidente formou a sua primeira afirmação de sentido, o período histórico que vai dos fins da civilização grega e do nascimento de sua filosofia, do humanismo greco-romano à descoberta decisiva da transcendência humana na síntese que gerou o cristianismo. Este o caminho de Vaz: em diálogo com a alta cultura da modernidade, através do método de Hegel, da dialética que vai do particular ao universal através do singular, reconstruir a síntese teológica-filosófica de São Tomaz de Aquino em uma ética universalista.

Qual é o lugar, então, hoje deste pensamento que constrói sua identidade em uma relação histórica de vanguarda com o nascimento do comunitarismo cristão no Brasil e, depois, se classiciza em uma busca de sentido na tradição? A primeira tentação é a de afirmar que este pensamento, em sua inflexão filosófica e temporalidade própria, teria perdido relação orgânica com a cultura social brasileira contemporânea e, em particular, com as identidades mais visíveis da práxis do comunitarismo cristão. Teria se transformado em um arcaísmo e se particularizado no interior de uma instituição.

Esta seria, no entanto, uma resposta ingênua e superficial. A noção de transcendência, central em toda a construção filosófica de Vaz, é vital na formação da civilização brasileira. Não são, por outro lado, as reiteradas expressões da idéia de “bem comum” matriz de uma incessante criação e inovação de direitos na cultura democrática do país? Não é a própria CNBB sede de uma síntese permanente entre o comunitarismo cristão e a tradição católica? Deste ponto de vista, o trabalho do pensamento de Vaz no campo da filosofia seria a correspondente, no plano da cultura e da razão, da liderança construtiva de dom Hélder Câmara que, através da CNBB, deu singularidade à presença da Igreja Católica brasileira diante da Igreja romana.

Se isto é verdade, o pensamento do padre Vaz está no centro de uma síntese ética que a civilização brasileira, em seu processo de auto-formação, ainda não foi capaz de cumprir. Dialogar com este esforço, que fez presença nas origens da cultura do socialismo democrático no Brasil, será o tema do próximo ensaio.

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