Edição nº 58 – junho de 2006: Crise do projeto nacional liberal-conservador?
Como explicar as grandes dificuldades da candidatura Alckmin? Mais do que refletir impasses eleitorais estratégicos, elas parecem ter raiz em um amplo processo de deslegitimação do projeto neoliberal para o país frente ao que poderíamos chamar de uma expansão da identidade popular. Assim como o amplo favoritismo pode ser um fator de desestabilização emocional da seleção brasileira na Copa do Mundo, levando a superestimar sua capacidade e subestimar a força dos adversários, as posições hoje inequivocamente bastante propícias à reeleição de Lula para a presidência do país podem turvar a visão das dificuldades ainda por superar até outubro.
Como explicar as grandes dificuldades da candidatura Alckmin? Mais do que refletir impasses eleitorais estratégicos, elas parecem ter raiz em um amplo processo de deslegitimação do projeto neoliberal para o país frente ao que poderíamos chamar de uma expansão da identidade popular.
Assim como o amplo favoritismo pode ser um fator de desestabilização emocional da seleção brasileira na Copa do Mundo, levando a superestimar sua capacidade e subestimar a força dos adversários, as posições hoje inequivocamente bastante propícias à reeleição de Lula para a presidência do país podem turvar a visão das dificuldades ainda por superar até outubro. Por isso, trata-se de apurar a capacidade analítica para o fenômeno histórico que está em curso.
Neste final de maio, quatro pesquisas – Datafolha, CNT/ Sensus, Ibope e Vox Populi – indicaram a possibilidade de vitória de Lula já no primeiro turno, no cenário praticamente certo de não lançamento de uma candidatura própria do PMDB e do PPS. Esta hipótese se configuraria mesmo na hipótese destas duas candidaturas. Na pesquisa do Ibope, por exemplo, Lula teria cerca de 63% dos votos válidos contra 24% de Alckmin. A Vox Populi indica 60% dos votos válidos para Lula. Nestas duas pesquisas, Lula chega a 48% ou 49% no primeiro turno.
A posição indicada por estas duas últimas pesquisas incorpora, de algum modo, os efeitos favoráveis da propaganda eleitoral gratuita do PT na TV e rádios e o desgaste sofrido pela candidatura Alckmin frente à onda de violência que paralisou São Paulo por alguns dias no mês de maio. Neste mês de junho, vão ao ar de inserções do PSDB e PFL, podendo ter algum efeito sobre os índices apurados em favor da candidatura Alckmin.
As pesquisas continuam exibindo a mesma estrutura de votação antes aferida em pesquisas anteriores. Do ponto de vista social: são pirâmides invertidas, com Lula crescendo à medida em que se desce na escala de rendimentos e instrução e Alckmin aumentando à medida em que se sobe nesta escala. A pesquisa Ibope, por exemplo, revela que Alckmin tem 34% das intenções de voto contra 28% de Lula entre os eleitores com nível universitário. Alckmin bate Lula com 39% a 35% entre os brasileiros que ganham mais de dez salários mínimos, na pesquisa Vox Populi. Do ponto de vista geográfico: a distância entre Lula e Alckmin vai a 55% no Nordeste, cai a 10% no Sudeste (em grande medida, devido à força de Alckmin em São Paulo) e alcança 19% no Sul.
Do ponto de vista da dinâmica, constata-se um crescimento de Lula em todas as faixas sociais e regiões (inclusive em São Paulo), até mesmo entre as mulheres, eleitores de maior escolaridade e renda e eleitores do sul do país, onde a sua votação era mais fraca.
Espírito do Carandiru
Tem razão o historiador da cultura Nicolau Sevcenco quando afirma que os episódios acontecidos em São Paulo no mês de maio inscrevem-se como marco na vida da maior e mais rica metrópole do país. A explosão de violência dos criminosos e as violações dos direitos humanos, ao que tudo indica, cometidas de forma generalizada contra inocentes da periferia, trouxeram para o centro da vida da cidade o cotidiano da barbárie que o mercado urbano isolou no anonimato. Depois do trauma, a cultura da cidade nunca mais será a mesma.
Se o PCC foi criado logo após o massacre do Carandiru, as atrocidades agora deflagradas pela organização criminosa ocorrem logo após a simbólica absolvição do coronel que comandou o massacre. É como se a violência de corporações se sobrepusesse ao respeito dos direitos humanos, deflagrando dinâmicas selvagens por fora da legalidade do Estado.
No centro desta história está certamente Alckmin, um conservador cujo governo tem vasta folha corrida contra os direitos humanos. São Paulo, com 40% da população carcerária do país, investiu muito na repressão mas muito pouco na inteligência no combate ao crime, dizem os especialistas.
É como se a cena de São Paulo, extremando um drama que é nacional, tivesse cravado para a consciência brasileira um dilema incontornável: ou se investe, de forma profunda e nova, nas políticas sociais e de distribuição de renda ou as políticas e as tecnologias de repressão ao crime tornam-se impotentes diante de uma escala vertiginosa do número de presidiários que obrigaria, apenas o estado de São Paulo, a construir uma nova e custosa penitenciária a cada mês. Novos Carandirus ou políticas sociais, novos PCCs ou desorganização da base social de cooptação para o crime através de uma vasta incorporação dos jovens à cidadania plena? Com qual opção está Alckmin: ele mesmo não se cansou de responder nestes dias, retomando enfaticamente o bordão dos protocolos da dura guerra ao crime. José Serra, em artigo na Folha de S.Paulo, em tardio posicionamento, chegou mesmo a desenvolver o argumento que a denúncia dos desrespeitos aos direitos humanos neste momento significaria tomar partido contra os policiais e não escolher o lado certo.
Qual discurso, qual rumo?
Quando da definição pela candidatura Alckmin, anotamos que ela teria pela frente três grandes dificuldades: a nacionalização, a atração de partidos de centro-esquerda e a disputa com Lula no eleitorado popular. Estas três parecem ter se tornado impasses no mês de maio: o PDT, ao que tudo indica, terá candidatura própria, o PPS de Roberto Freire não conseguiu manter uma candidatura e não deverá marchar em bloco com os tucanos; Alckmin encontra imensas dificuldades para crescer no Nordeste e mesmo em estados do Sudeste, como Minas Gerais e Rio de Janeiro; no meio popular, mostra escassa capacidade de penetração.
Na verdade, seria mais correto dizer que Alckmin passou o mês de maio em meio a crises permanentes: atritos públicos e desafetos entre caciques do PSDB e do PFL, derrota na escolha do vice do PFL, uma certa retração pública de Aécio e Serra em relação ao “peso” da sua candidatura, recuos em relação a apoios dentro do PMDB, denúncias seguidas de corrupção no governo de São Paulo.
E há, sobretudo, um dilema que resulta da própria identidade de Alckmin: seu discurso de retomada de velhos temas neoliberais - necessidade de arrocho fiscal, privatizações, Alca, repressão ao MST – serve para coesionar sua forte base no grande empresariado mas funciona como uma alavanca para trás em relação à opinião da maioria dos brasileiros.
Expansão da identidade popularA jovem ciência política brasileira no pré-64 elegeu como um dos temas centrais a dinâmica crescente do PTB no eleitorado popular brasileiro, gerando uma incapacidade cada vez maior para os políticos liberais e conservadores construírem uma maioria nacional. No período da ditadura militar, o cientista político Fábio Wanderley Reis retomou este tema, assimilando as tendências de voto entre MDB e Arena, a uma disputa futebolística Fla/ Flu, na qual a simpatia da maioria do eleitorado tendia ao vermelho e preto simbolizado pelo partido oposicionista. Agora, nestas eleições, uma polarização classista em um sentido amplo do termo ou popular volta a se manifestar, confirmando tendências de superação do sentido oligárquico das eleições já anotadas e estudadas por mais de dez anos pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos.
Como se anotou no ensaio do Periscópio passado, “Tempos da esperança nova?”, houve nos últimos anos mudanças importantes na cultura política brasileira com base em forte dinamismo da organização, opinião e esperança populares. Estas mudanças foram, sem dúvida, abaladas pela crise vivida em 2005 mas não detidas ou anuladas. Parece estar em curso um movimento de recomposição, de retomada, de reafirmação de identidades conquistadas ao custo de tanto esforço e tanta história.
A hora, portanto, é a de colocar a candidatura Lula em compasso, em conexão e solidariedade com este movimento de expansão da identidade popular através do aprofundamento de seus compromissos programáticos. É este avanço programático, fazendo a ponte entre o que já se conquistou no primeiro governo e o novo patamar histórico de mudanças que em uma segunda gestão, que pode consolidar a dinâmica possível de vitória contra os neoliberais em outubro de 2006.
Leia nota do PT sobre os eventos envolvendo o MLST