Com o dedo na ferida

Avesso às entrevistas, o mais importante crítico literário do País, Antônio Cândido de Mello e Souza, abre uma exceção e aceita receber ISTOÉ em seu apartamento em São Paulo para conversar sobre o livro de Flávio Aguiar.

Falante, chama a atenção para a questão da terra e para a força do MST, segundo ele, único instrumento capaz de mudar a política agrária do Brasil.

ISTOÉQual a importância do livro de Flávio Aguiar e onde a obra se encaixa na questão agrária atual?

Antônio Cândido – Estamos vivendo no Brasil um momento cruciante na questão da terra, da qual estão pendentes os mais graves problemas para o País, nunca resolvidos satisfatoriamente em termos modernos. O livro põe o dedo no problema crucial de nosso tempo: o problema da terra, o direito do homem sobre a terra, a maneira pela qual o homem tem ou não acesso a ela. O ponto de vista de Flávio é muito interessante porque faz isso através da literatura. Não é um livro de sociologia ou de economia. São textos literários. Isso é importante porque as críticas literárias do nosso tempo chamam a atenção sobretudo para o texto enquanto texto. O livro lembra que a literatura comunica alguma coisa. É a presença da realidade através da palavra. Flávio lembra que a literatura tem um compromisso com a realidade.

ISTOÉ E sob o ponto de vista político?

Antônio Cândido – É uma antologia de textos literários com significado político relevante, mas não é sectário. Ele apresenta a visão da terra tanto do lado do oprimido como do lado do opressor, além de oferecer uma perspectiva histórica. Apresenta as diferentes modalidades de descrever a relação do homem com a terra desde o descobrimento. Portanto, é mostrada a mentalidade do séculos XVI, XVII, do tempo da escravidão, do tempo do trabalho livre e assim por diante. Não há ponto de vista preferencial, o que lhe dá amplitude política. Foram usados textos de autores de formação ideológica diversa. Inclusive, há um do líder fascista brasileiro, Plínio Salgado. É o que se chama de tour d’horizon, quer dizer, algo que é visto de vários ângulos.

ISTOÉ – O que está faltando para que se mude o cenário agrário, no momento que temos um político que se diz social-democrata na Presidência da República?

Antônio Cândido –
Faltava o que está acontecendo agora. Não podemos esperar das classes dominantes que elas resolvam os problemas sociais, porque estão visceralmente empenhadas em que a situação permaneça de acordo com os seus interesses. No momento, estamos vendo um movimento – que Celso Furtado considera fundamental para o nosso século no Brasil – que é o MST. Pela primeira vez a sociedade brasileira está sendo obrigada a enfrentar o problema dos que têm direito à terra e não o vêem respeitado. E as transformações só ocorrem quando os interessados reivindicam. Por isso, devemos ter esperanças. Não porque as classes dominantes sejam clarividentes, mas porque as classes dominadas estão se levantando.

ISTOÉ – O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra está sendo bombardeado de todos os lados…

Antônio Cândido – Mas é claro. O movimento contraria frontalmente a nossa tradição de origem oligárquica. Em todos os países do mundo, a terra é o último setor a ser atingido pela transformação porque é o que há de mais conservador. A terra não tem tempo. Como dizia o grande historiador Fernand Braudel, o tempo histórico em função da terra se confunde com o tempo geográfico porque o ritmo das estações é sempre o mesmo: primavera, verão, outono, inverno…
Quem vem da terra é sempre conservador e quem possui a terra é mais conservador ainda. O que estamos vendo é a abertura dos oprimidos, o que dá esperança para que a sociedade tome consciência da gravidade do problema agrário no País e se liberalize.

ISTOÉ – Por que levou tanto tempo para que surgisse um movimento como o MST?

Antônio Cândido – Porque o Brasil é um país de estrutura oligárquica muito arraigada.

ISTOÉ O sr. continua socialista?
Antônio Cândido – Mas claro.

ISTOÉ – O socialismo não acabou?

Antônio Cândido – Não. Que é isso

 

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